entrevista por Luiz Mazetto
Mais conhecido por seu trabalho seminal com o Slint, David Pajo possui um currículo de dar inveja a qualquer um que goste de rock alternativo. A lista de artistas com quem o guitarrista norte-americano já tocou, seja como integrante fixo ou como convidado, inclui Tortoise, Zwan, Interpol e Yeah Yeah Yeahs, apenas para citar alguns.
Além disso, Pajo também possui uma extensa e prolífica carreira solo, que inclui mais de uma dezena de trabalhos, assinados como Pajo, Aerial M ou Papa M. Foi com esse último projeto que o músico esteve no Brasil em outubro de 2019, quando realizou dois shows, ambos em São Paulo, como parte do Balaclava Festival.
Na entrevista abaixo, feita justamente durante essa passagem de David pela capital paulista, no hall do hotel em que ele estava hospedado, o guitarrista fala, entre outras coisas, sobre o Slint e a possibilidade de um novo disco da banda, seu amor pelo metal extremo, sua admiração por guitarristas virtuosos como Eddie Van Halen, como foi fazer uma turnê com o Danzig nos anos 1980, e os discos que mudaram a sua vida. Confira abaixo!
Como sou do Brasil, gostaria de saber se você conhece algum artista brasileiro.
Apenas os mais antigos e clássicos, como Os Mutantes, Tom Zé e João Gilberto.
E você também curtia bandas brasileiras de metal como Sepultura e Sarcófago, por exemplo?
Ah sim, claro. E o Sepultura… mesmo quando eu não estava interessado, tipo virava meus olhos, eu os escutava mesmo quando dizia que não gostava de metal (risos). Sabe o que quero dizer? Tipo, eu ainda escuto Slayer. Mas isso é especial, como o Sepultura. Eles eram diferentes.
Ainda sobre metal. Nos anos 1980, você tocou no Maurice, que era uma banda com um pé no metal e que acabou se dividindo entre o Slint e o Kinghorse posteriormente, certo? Recentemente escutei a demo da banda que vocês fizeram para o Samhain, em 1985 – e que está disponível no Bandcamp. Por isso, queria saber: vocês acabaram tocando com o Samhain nos EUA naquela época?
Nós acabamos fazendo shows com o Samhain, em 1985, eu acho – ou 1986, não consigo lembrar qual ano. Abrimos os shows deles no meio-oeste dos Estados Unidos. E nós éramos todos muito jovens. Tenho muitas histórias, eles são meus heróis. Ainda amo o Misfits, mas prefiro o Samhain. Apenas porque era mais dark/obscuro… Mas sim, nós acabamos fazendo shows juntos e ele (Danzig) me mostrou… Porque nós fazíamos um cover de “Last Caress” em nossos shows – e isso foi antes do Metallica. E ele me mostrou a maneira certa de tocá-la. Tipo, eu estava sentado em um estacionamento e ele me mostrou. Foi muito legal, você sabe, ter o Glenn Danzig te mostrando como tocar “Last Caress” da maneira certa (risos). Mas sim, tenho muitas histórias dessa turnê.
Não sei se isso aconteceu, mas gostaria de saber qual foi a importância do Maurice no seu desenvolvimento como músico e, mais tarde, em criar o início do som que vocês acabariam tocando com o Slint?
Ah, totalmente. Tenho outras gravações que fizemos. E quero colocá-las no Bandcamp, porque elas realmente mostram… Tipo, uma vez que você as ouvir vai entender a transição do Maurice para o Slint. Porque as músicas que estávamos escrevendo estavam lentamente se tornando mais e mais parecidas com o Slint. Até que o vocalista e o baixista tiveram de sair da banda, sabe? Porque eles estavam como… O vocalista estava como: “Eu nem consigo cantar nisso”. Acabou virando algo em que muitas das músicas, ou algumas das músicas, não eram agressivas – ou tinham guitarras com som limpo. Mas sim, quero documentar essa transição. Porque na demo você não consegue realmente escutá-la. À medida que nós mudamos, as novas músicas se tornaram menos e menos pesadas. E então eles saíram e montaram o Kinghorse, que acabou tendo um disco produzido pelo Danzig pela Caroline Records. E eu e o baterista (Britt Walford) formamos o Slint. Nós tomamos duas direções bastante diferentes. Então sim, você não consegue perceber a transição pela demo, mas ela faz muito sentido quando você pode ouvir essas músicas. Porque nós ainda tínhamos músicas pesadas, mas nós meio que tiramos os “elementos thrash” e entramos em uma abordagem mais lenta e pesada.
Você viveu por muito tempo em Louisville, Kentucky, certo? Pensa que as cidades em que viveu acabaram tendo algum tipo de influência na maneira como você toca ou vê a música? Seja em Louisville ou em Los Angeles, onde vive atualmente, por exemplo.
100%. Porque Louisville é realmente isolada, sabe? Mas sempre teve uma boa cena punk e uma boa cena musical. Tipo, eles tinham bandas punk nos anos 1970; eles tinham meio que uma cena mais artística que era toda… Havia uma banda chamada Malignant Growth, com a qual todos crescemos. Eles abriram para o Minor Threat algumas vezes. Até hoje, eles são tipo a melhor banda de hardcore. Porque eles são incríveis pra cacete. Há uma história de boa música (na cidade), mas é algo realmente insular. Todos meio que suspeitam de forasteiros, de bandas de fora (risos). No sentido de que eles realmente apoiam as bandas locais.
E vocês ainda tem bandas muito boas na cidade (Louisville) até hoje, como Coliseum e Young Widows, por exemplo.
Sim, o Young Widows. Penso que é quase uma tradição agora, em que sempre foi… pelo menos para as bandas boas… Tipo, quanto mais estranho você fosse, quanto mais você mesmo você fosse, melhor – e então mais pessoas gostavam. Mas se você estivesse apenas meio que copiando o Black Sabbath e fosse algo realmente óbvio, então você apenas seria motivo de risadas. Pelo menos dos meus amigos (risos).
E você ainda fala com os caras do Slint? Vocês ainda têm um bom relacionamento?
Nos falamos por mensagens e ainda enviamos coisas engraçadas uns para os outros e tudo mais. Falo com eles pelo menos umas duas vezes por semana.
E todos ainda vivem no Kentucky?
Eles estão todos em Louisville. O que meio que torna impossível para nós fazermos música novamente (risos). Quero dizer, porque todos eles estão lá e tem vidas e famílias e então eu estou muito longe. Então teria de ser algo pré-planejado. Não é como quando éramos jovens e tínhamos todo o tempo do mundo.
E vocês já pensaram em fazer música nova juntos? Ou há um sentimento de apenas de deixar as coisas como estão – quero dizer, vocês lançaram um disco que todo mundo ama até hoje e ainda é falado?
Falamos sobre isso. Penso que na última turnê, de 2014, falamos bastante sobre isso. Principalmente porque estávamos comentando que não queríamos mais sair em turnê a não ser que tivéssemos material novo (risos). Tipo, o “Spiderland” (1991) tem apenas seis músicas e o “Tweez” (1989) nem isso. Então não é como se tivéssemos uma grande seleção. Estávamos apenas tocando essas faixas de novo e de novo. E penso que seria mais excitante tocar algo novo. Mas sei que não seria um “Spiderland” ou… nem sei como soaria. Sinto que com esse grupo de pessoas seria legal. E seria algo bom. Mas não sei como soaria. E acho que trabalhamos em algumas coisas, apenas um pouco, mas… É, seria preciso… nós todos teríamos de nos comprometer com isso e fazer acontecer. Para que eu fosse para lá por alguns meses e ensaiássemos todos os dias – ou mudar para lá. Então é, isso nunca realmente saiu do papel.
Voltando um pouco ao metal. Recentemente, você fez uma turnê com o Papa M abrindo para o Sunn nos EUA. Além disso, você tocou no mais recente disco do Goatsnake, “Black Age Blues” (2015), em que gravou a intro da primeira música (“Another River to Cross”) – que ficou incrível, por sinal. Por isso, queria saber se você já conhecia o Greg Anderson (Southern Lord, Sunn, Goatsnake) há bastante tempo? Vocês já eram amigos?
Eu sabia sobre eles. Acho que cruzamos caminhos quando ele era jovem – mas não me lembro muito bem. Ele se tornou um grande amigo. Quando o conheci, acho que por volta de 2005, durante uma turnê do Slint, apenas mantivemos contato. Até fizemos tatuagens iguais do “Spiderland” – fomos juntos ao tatuador e fizemos as tatuagens juntos. Então sim, ele é um amigo muito próximo. E agora o Stephen (O’Malley, também do Sunn) também é, após fazer essa turnê com eles. E adoro ficar fazendo perguntas pra eles, sabe? Tipo o Stephen com black metal… Eles conhecem tanto sobre música, então podemos apenas ficar realmente sendo “geeks” neste sentido (risos).
Você tocou com o Interpol e o Yeah Yeah Yeahs, duas das bandas mais importantes da então chamada “nova cena rock” do início dos anos 2000, que também incluía nomes como The Strokes e White Stripes. Por isso, queria saber sua opinião sobre essa cena cerca de 20 anos depois?
Eu estava meio que ausente quando essa cena estava acontecendo. Vi o Interpol em uma das primeiras turnês deles e gostei, porque eles me lembravam… Sabe, o primeiro disco deles é incrível e era assim que eles soavam. E gostei muito deles. Mas penso que toda aquela onda de Nova York, da cena de Nova York, e o White Stripes e tudo mais, eu apenas estava em uma viagem diferente. De novo, acho que talvez eu seja um esnobe (risos). Mas eu apenas estava ouvindo música antiga, não estava ouvindo música atual. E lembro de escutar o Strokes e pensar algo como: “Ah, eu podia escutar o Lou Reed ou o Velvet Underground”. Provavelmente não é uma comparação justa, mas apenas sentia que eu estava mais… Tinha tanta música antiga que eu ainda não tinha descoberto que eu estava tipo “Não posso ser perturbado com coisas novas agora (risos)”. Sabe o que quero dizer? Então realmente não prestei atenção. E então tocar com eles foi realmente legal porque pude aprender os detalhes das músicas, o que há por trás, e a composição. E agora me sinto um idiota de novo, por não apreciar na época. É algo como “Perdi tantos shows bons”. Mas também vi muitos shows bons (risos). Todo mundo passa por fases com as suas músicas. Penso que naquela época também estava voltando, sentia que tinha deixado passar coisas no metal, porque estava em outra viagem e aconteceu toda aquela cena death metal que perdi. Eu meio que conhecia black metal, gostava das bandas maiores, como Burzum, Darkthrone e tudo isso – e o Emperor também, com certeza. Mas não cheguei a explorar de verdade. Então por volta do início dos anos 2000, eu queria voltar para isso. Eu estava apenas como “Uau, tenho todas essas músicas para descobrir, perdi tudo isso”. Então sim, penso que essa cena, de Nova York, não era onde a minha cabeça estava na época (risos).
Você já lançou discos solos sob muitos nomes diferentes, como Aerial M, Papa M e também como David Pajo. Por isso, queria saber se isso te ajuda a meio que separar as ideias de um modo melhor quando está escrevendo, a meio que fazer mais sentido para esses projetos?
É exatamente isso. Se eu sentisse que há uma boa chance… Tipo, se eu quisesse apenas delinear um período de tempo, há o som do Aerial M, que eu descreveria apenas como duas guitarras, baixo e bateria. Som instrumental, com afinação padrão, plugado diretamente nos amplificadores, sem efeitos. Tipo, eu penso apenas “O que você pode fazer com esse setup?”. Esse era meio que o meu experimento. E então com o Papa M é mais algo do tipo “Vamos tentar… vamos fazer sons estranhos. Vamos tentar qualquer coisa”. Tipo, um som meio que “qualquer coisa vale”. Então eu senti que isso não… que tinha de ser um novo nome, porque era diferente do Aerial M e eu estava usando afinações diferentes. É, apenas parecia que o lance do “M” era apenas… você sabe, há sempre uma linha. E essa é a linha. Mas acho que recentemente senti que meio que voltei para o modelo do Papa M. E apenas queria fazer música instrumental. Tipo, ainda não terminei com as afinações e coisas estranhas, sabe (risos)?
Legal! Aliás, você cantou muito bem no show de sexta-feira com o Papa M em São Paulo (no Breve).
Ah, obrigado! Deus! A minha voz mudou ao longo dos anos. Sinto que costumava ter uma voz meio doce, inocente. E agora é apenas algo como “whisky e cigarros” (risos) – (nota: neste momento, David faz meio que uma voz mais grossa, de forma engraçada). É um latido (risos). E eu tive uma tentativa de suicídio que ferrou o meu pescoço. Tenho uma cicatriz e tudo mais, é por isso que tenho essa tatuagem cobrindo tudo. Mas isso também mudou a minha voz, então sou realmente hesitante em cantar. Mas fiquei feliz que você disse isso, porque, na verdade, essa foi a primeira vez que fiz isso ao vivo, com essa nova voz (risos).
Ainda sobre o show de ontem (no Breve). Uma das coisas que mais me chamaram a atenção é que, mesmo você tocando algo mais experimental, com arpejos e tudo mais, há sempre um tipo de simplicidade nas músicas. Isso é algo que você faz de forma consciente – digo, buscar isso quando está compondo/tocando?
Com certeza. Porque estou meio que voltando ao lance da virtuose… mais uma vez (risos). Porque quando comecei a tocar, aprendi todos os solos do Eddie Van Halen, aprendi – ou tentei aprender – o máximo que consegui do primeiro disco do Rising Force (Yngwie Malmsteen). E isso era tudo que eu fazia quando era criança, apenas sentar lá e ficar tocando de forma virtuosa. E acho que, uma vez que o Maurice começou a mudar, eu entrei em algo como… quase “anti-tocar guitarra”, “anti-virtuosismo”. Algo do tipo “O que eu poderia fazer com apenas uma nota?”. Apenas tornar as coisas tão simples quanto possível. E, na verdade, é mais difícil para mim. Tipo, há uma parte em “Good Morning, Captain” (do Slint), em que a música para e ficam apenas uns harmônicos, e eu sabia tudo de cor, de trás para frente. Mas preciso tocar essa parte de maneira muito igual, o espaço entre as notas é muito importante e a velocidade com que eu movo os dedos para frente… Tipo, exige toda a minha concentração (risos). Mas com os lances mais virtuosos você pode quase desligar o seu cérebro, uma vez que tenha praticado o bastante – então você apenas corre as escalas para cima e para baixo. E isso exigiu muito mais… Eu percebi que, para mim, é algo do tipo: quanto mais simples, mais difícil – ou mais focado. Então sim, penso que no Slint eu tinha essa abordagem, em que eu não queria tocar… Não apenas eu não queria tocar de forma virtuosa, mas não queria tocar a guitarra como uma guitarra. Então faço coisas como palhetar atrás das notas nos trastes, usar harmônicos sempre que possível, ou apenas tocar uma nota no riff todo ou algo assim – uso muito cordas soltas. Nós tínhamos uma música que, quando era tocada ao vivo, nós apenas batíamos nas guitarras e esse era… Eu só queria fazer coisas desse tipo, ser o oposto do Eddie Van Halen (risos). Que eu ainda amo, aliás. Adoro todos os guitarristas virtuosos. Acho que é uma parte tão grande de como eu toco hoje em dia que apenas nem percebo que é simples, sabe (risos)?
Isso é algo que sempre gosto de perguntar. Por favor, me diga três discos que mudaram a sua vida e por que eles fizeram isso.
Ah, putz. Quero dizer, o “Out ot Step” (1983), do Minor Threat, com certeza. Sinto que se disser qualquer coisa vou acabar esquecendo outros discos importantes. O primeiro disco do Van Halen também foi importante. Esses dois são discos de rock, mas acho que diria esses dois. E também o “It´s Alive” (1979), do Ramones. Acho que seriam esses dois, pelo menos para aquelas épocas, mas isso não quer dizer que ainda os escuto hoje em dia. Provavelmente apenas por causa das memórias, mas apenas os ouvi demais.
Essa é a última pergunta. Do que tem mais orgulho na sua carreira?
Tenho orgulho do Slint, certamente. Sabe pelo que sou muito agradecido? Não é tanto que eu não ligava para o que as outras pessoas pensavam, mas eu… E percebi isso porque estou morando em Los Angeles… e ver todas essas pessoas ambiciosas que estão tentando ficar famosas com a música e tudo mais. Não apenas eu nunca tive essa vontade, mas não me importava realmente se algo estava na moda ou era legal. Apenas gostava do que gostava. Quando era moleque, lembro de roubar o disco “Black Metal” (1982), do Venom. Eu não tinha dinheiro, então apenas os roubava (risos). Também tinha uns EPs do Mercyful Fate e coisas do tipo. Não conhecia ninguém que gostasse dessas coisas, mas eu adorava. Sinto que durante toda a minha vida nunca tive problema em apenas ser eu mesmo e meio que gostar do que eu gostava – sem ligar para o que as outras pessoas pensam. E sou muito agradecido por isso, porque sinto que há uma cultura agora que é muito autoconsciente, em que você precisa saber que algo é legal antes de as outras pessoas descobrirem. E para o bem e para o mal, apenas sempre fui eu mesmo (risos). Em uma época em que a música agressiva era algo realmente legal e parte da cultura underground, o Slint estava ficando mais e mais calmo e tocando de forma mais e mais melódica. E não era algo legal naquela época para a maior parte do mundo, mas o nosso pequeno grupo de pessoas gostava. Sinto que apenas não nos importávamos, estávamos fazendo aquilo porque nos deixava felizes, e penso que isso é… Então sou agradecido por apenas… Não sei se há uma coisa específica da qual tenho orgulho, mas apenas tenho orgulho de… E nem sei se orgulho é a palavra certa, mas apenas sou feliz de sempre ter feito o meu lance, não importando se fosse legal ou não. E muitas vezes era realmente brega (risos). Você precisa fazer o que quer que seja legal para você, que te deixe animado.
Luiz Mazetto é autor dos livros “Nós Somos a Tempestade – Conversas Sobre o Metal Alternativo dos EUA” e “Nós Somos a Tempestade, Vol 2 – Conversas Sobre o Metal Alternativo pelo Mundo”, ambos pela Edições Ideal. Também colabora coma a Vice Brasil, o CVLT Nation e a Loud!