Zona para Respiradores #02, por L. Lyra
Uma luz que nunca se apaga, um rugido que nunca se cala
(ouça uma playlist inspirada na coluna)
Um amigo, português, comenta o texto da semana passada: bonito o Moreira citar o Caetano: “haja o que houver há sempre um homem para uma mulher”. Depois acrescenta: oh, não, é da Gal.
É muito bom ter amigos que sabem mais e melhor, mas o portuga está errado. O verso é de “O Grande Amor”, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Em agradecimento deixo a interpretação da Carminho:
Biscoito fino, sim. Enquanto me perco nestas investigações, outra amiga pergunta se deve terminar de ver “Nostalgia” (1983), de Andrei Tarkovsky. Vontade de abandonar tudo, né, minha filha.
Vou ouvindo o que aparece de novo. Caroline Polachek:
Este trecho dos 1min49s aos 2min05s é de levantar os pelinhos do braço.
Depois deste verdadeiro acontecimento que é ouvir a Polachek avançar a canção só no gogó, procurei a original: mais um pop banal cheio de ruídos e batidas e etc (a versão da playlist é um remix). Existe uma espécie de beleza na introspecção que é difícil de encontrar quando um músico está rodeado de outros músicos e tem de dar tudo de si naqueles três minutos sem mais ninguém pra dar apoio.
Marissa Nadler liberou um novo álbum de covers, por enquanto no Bandcamp. Tem Metallica, Alex Chilton, mas minha preferida é este cover do Bob Dylan encharcado de reverb e coros fantasmagóricos.
Numa outra chave, mais desconcertante, The Tallest Man on Earth tocou uma das versões mais inusitadas de “Fade Into You” (Mazzy Star), com direito a banjo e muitos erros:
Uma interpretação sui generis. O que num acaso youtubístico levou direto a esta outra (do melhor rock do mundo? outro dia falaremos sobre os roqueiros argentinos):
Entretanto uma pausa para ouvirmos Aldir Blanc. Hoje vou nesta parceria com o João Bosco, que escreveu em seu Instagram um lindo testamento à memória e à existência do amigo:
Envolto nisto tudo recebo d’além mar um poema do padre José Tolentino Mendonça, que recentemente assumiu o Arquivo Secreto do Vaticano e a Biblioteca Apostólica. Alguma coisa o gajo deve saber, afinal ele também gosta de ouvir The Smiths. O título do poema é “Crisântemos Tardios”:
A vida exige de ti ainda mais escuro
um revés, este passo em falso
uma quantidade de perguntas
no uníssono do golfo
alicerces arruinados
diante das soberbas formas
por isso quando entrares
em Alexandria ou em Tebas
sentirás o que sente um sonâmbulo
às voltas da noite interminável
não admira que as mãos te tremam
nessa região sempre mais desconhecida
onde a aurora sem dissimular te espera
com um quinhão de esplendor
O filme do Tarkovsky tem umas duas horas que parecem duas vidas. Há uma cena belíssima e entediante na qual um poeta tem de atravessar uma piscina com uma vela acesa sem deixar que a chama se apague.
Os crisântemos são da cor amarela.
Ouro, vela, aurora, esplendor: tudo se conecta.
Não poderia encerrar sem recordar o poeta Michael McClure, um dos responsáveis pelos beats ser o que são. Sua leitura na Six Gallery, em 5 de outubro de 1955 é um dos eventos-chave de nossa era. Como Allen Ginsberg, McClure também considerava Dylan o poeta mais puro e se tornou amigo dele graças à admiração de sua esposa Joanna. Dylan o presenteou com uma auto-harpa nos anos 60, o que despoletou sua vontade de fazer música. Certamente você já ouviu “Mercedes Benz” na voz de Janis Joplin, apenas uma das composições de McClure a chacoalhar o planeta. Mas nenhuma destas informações guarda a força de Michael McClure e seu eterno rugido para os leões: