Três discos portugueses: Esteves, O Manipulador, Capicua

Resenhas por Pedro Salgado, de Lisboa

“Esteves”, Esteves (Azáfama)
Inspirado pela singularidade de Sydney, onde viveu durante dois anos, Tiago Esteves (vocalista da banda lisboeta Trêsporcento) revisita as suas memórias da cidade australiana através de temas que evocam o amor e a perda numa perspectiva simultaneamente dramática e libertadora. Apoiado na guitarra acústica, Esteves desenvolve um folk sugestivo com influências de Nick Drake e Mark Eitzel, entre outros, onde a harmonia dominante é complementada pela tentativa de enfatizar os sentimentos. A aposta numa interpretação emotiva e a tentativa de tirar proveito da vertente mais solene do piano e das cordas são outros aspectos notórios do seu conceito artístico. Nos melhores momentos deste álbum homónimo encontram-se a imaginativa “Fiji” (clipe no fim do texto), o single “Vista de Cima” (no qual Esteves assume abertamente a sua vulnerabilidade e envereda por um registro poético), enquanto a faixa “Grande Salto” exibe uma inquietação sonora e revela contornos épicos. Globalmente, “Esteves” é um trabalho bem resolvido e representa uma estreia solo positiva do vocalista dos Trêsporcento.

Nota: 7 (ouça no Spotify)

“Doppler”, O Manipulador (Saliva Diva)
Quarto álbum d’O Manipulador, a one-man-band do baixista Manuel Molarinho (integrante do Baleia, Baleia, Baleia, Burgueses Famintos e Daniel Catarino), “Doppler” aborda a percepção e o efeito que o tempo e a distância provocam. Ao longo do trabalho, composto por nove canções autobiográficas e reflexivas, o músico português realiza uma viagem sonora que abarca o rock, o blues e a música psicodélica e onde a vertente experimentalista acompanha grande parte do percurso. Molarinho mostra-se focado vocal e instrumentalmente e esse aspecto evidencia-se no disco, bem como a sua capacidade de desenvolver ambientes intimistas que favorecem diversas leituras e avivam a imaginação. Em faixas como “Bloody Tongue” sobressai o ímpeto roqueiro imprimido por Manuel, e na psicodélica “Downtown” o destaque vai para a contenção rítmica e repetição frásica que cede lugar a uma cadência animada. A parte final inclui outros momentos fortes, como é o caso da magnífica “Voices In Your Head”, onde Molarinho concilia eficazmente a sua lírica noturna com o experimentalismo sonoro, enquanto a derradeira “It’s You” sugere uma aproximação ao pop requintado e fecha o álbum com distinção. No geral, a diversidade de soluções apresentadas em “Doppler” comprovam a qualidade interpretativa de Molarinho e, acima de tudo, validam o seu inegável talento como criador e aventureiro musical.

Nota: 8 (ouça no Spotify)

“Madrepérola”, Capicua (Universal Music Portugal)
Gravado durante e depois da gravidez de Ana Matos Fernandes (Capicua), a questão da maternidade, bem como o feminismo, as redes sociais, o estado atual do hip hop e a posição da rapper na música portuguesa constituem uma parte decisiva da temática de “Madrepérola”. A frase “Ostra feliz não faz pérola”, do autor e pensador brasileiro Rubem Alves, integra o número de abertura de um álbum no qual Capicua revela maior agilidade interpretativa e acutilância nas suas rimas, beneficiando igualmente dos excelentes tapetes sonoros edificados por beatmakers como Ride, Stereossauro, Pedro Geraldes, D-One e Branko, entre outros. Fruto dessas características e da forma como Capicua se supera e soa mais afirmativa, o disco revela mais intensidade e conta ainda com o contributo valioso de outros artistas convidados. Embora o trabalho valha pelo seu todo, destacam-se vários temas. É o caso da animada “Circunvalação”, alusiva à cidade de Ana Matos, o Porto; a releitura emotiva de “Parto Sem Dor” (um original de Sérgio Godinho); a dançável faixa-título (com a participação da rapper brasileira Karol Conka e clipe no final do texto); o feminismo aquático de “Último Mergulho” (que inclui a cantora portuguesa Lena D´Água) e a universalista “Mátria”, na qual Capicua se reencontra com os seus companheiros do projeto Língua Franca (Emicida e Rael) e o rapper Rincon Sapiência. Pela forma como renovou a sua mensagem, dotando-a de maior urgência, a rapper portuense atingiu um nível de excelência no terceiro e melhor álbum da sua carreira.

Nota: 9 (ouça no Spotify)

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.