Cinema: “Atrás da Estante” resgata história da comunidade gay e pornografia nos EUA

por Renan Guerra

Foco em um simpático casal de idosos, ele de sorriso fácil, ela uma judia fervorosa, ambos donos de uma das mais importantes lojas de pornografia gay de Los Angeles e um dos mais badalados pontos de cruising da cidade nos anos 80 – para quem não é “entendido”, cruising é basicamente pegação gay em locais públicos. A saga começa em 1976: o casal estava procurando uma maneira de sustentar sua jovem família quando respondeu a um anúncio no Los Angeles Times: Larry Flynt estava procurando distribuidores para a Revista Hustler. Uma década depois, o casal se tornaria o maior distribuidor de pornô gay nos EUA. Esse é o plot inicial de “Atrás da Estante” (2019), filme de Rachel Manson, que está sendo oficialmente lançado na Netflix, mas o documentário vai muito além.

Rachel, a diretora, é artista multimídia e cantora, bem como filha do casal Karen e Barry Mason, os donos da icônica loja. Talvez por isso, “Circus of Books” (título original do filme e também o nome real da livraria +18) é, essencialmente, um filme sobre família, sobre memórias afetivas e sobre aceitação. Por outro lado, é interessante como ele, ainda assim, é um filme extremamente instigante em diferentes tópicos, como a queda e ascensão do mercado de pornografia nos EUA; o eterno cerceamento de liberdades perpetrado pela direita cristã; a relação da comunidade gay masculina com o pornô; as relações entre religião, família e sexualidade; a devastação do HIV/AIDS; e a decadência de determinados marcos de uma geração gay.

As gerações mais novas – e aqui me incluo nessa – nasceu em um mundo com acesso diverso e intenso à pornografia e conteúdos dos mais diversos possíveis, de submundos inimaginados, porém Karen e Barry construíram o seu negócio em um universo no qual ser gay ainda era ser outsider e no qual a pornografia era muitas vezes ilegal. Com histórias pregressas curiosíssimas – Karen era jornalista especializada em direito penal; já Barry trabalhou com efeitos especiais em Hollywood, tendo créditos em títulos como “2001 – Uma Odisséia no Espaço” e na série “Star Trek” –, o casal acabou se tornando um dos primeiros distribuidores de revistas para um nome fundamental na história da pornografia mundial, Larry Flint.

Em determinado momento, Karen e Barry compram a livraria Book of Circus, numa era pré-AIDS, em que a pornografia gay estava se tornando um negócio super rentável e um nicho a ser explorado. O espaço era um point gay lucrativo e essa grana que entrava possibilitava o sustento da família, que mantinha as aparências sempre a dizer “ah, somos donos de uma livraria” e o assunto “negócios” se encerrava aí. De criação rigorosa, a judia Karen sempre teve uma relação curiosa com o seu próprio negócio, numa espécie de respeito pelo sustento da família, porém de negação do universo hardcore no qual estava envolvida. É nessas dicotomias e complexidades que o filme de Rachel Mason ganha em nuances e tensões, pois ele é basicamente um filme sobre aceitação, do tipo que os filhos gays podem ver ao lado da mãe, mas ao mesmo tempo ele é um importante retrato de um universo gay que não existe mais.

Porque ninguém mais compra DVDs, muito menos de pornografia (a oferta de conteúdo adulto on-line é tão alta que é raro que se reveja um filme diversas vezes, por exemplo). Gays não precisam mais de espaços restritos para comprar conteúdos como livros ou revistas – em qualquer megastore se acham edições belíssimas de Tom of Finland, por exemplo. E o modo de se relacionar de gays também mudou: Grindr, Scruff e outros apps criaram novos hábitos sexuais na comunidade e o cruising se tornou quase uma espécie de fetiche aqui e acolá. Por isso mesmo, o mundo da Circus of Books não existe mais e é por isso que o documentário “Atrás da Estante” é um relato crucial, que resgata a história dessas pessoas que influenciaram e auxiliaram a comunidade de diferentes formas.

Com produção de Ryan Murphy (“Glee”, “Pose”, “American Horror Story”), “Atrás da Estante” conta com participações de Larry Flint, da drag queen Alaska Thunderfuck (que foi uma das funcionárias da loja) e de Jeff Stryker, uma estrela pornô dos anos 80. Lançado no ano passado no Festival de Tribeca, o documentário chegou agora ao catálogo da Netflix – provando mais uma vez que essa é a tag mais interessante do serviço de streaming – e é uma indicação perfeita para quem busca uma história comovente, curiosa e extremamente afetuosa.

A Circus of Book é um desses pequenos espaços que remontam a história da comunidade gay e que dizem muito sobre o nosso presente nos lembrando que precisamos preservar o nosso futuro, sem jamais esquecer do passado.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.

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