Festival GRLS! celebra mulheres, a música e coloca em pauta debates importantes

Texto por Renan Guerra
Fotos por Fernando Yokota

O Festival GRLS! apresentou sua primeira edição com uma meta forte: ser um espaço de celebração feminina, que colocasse as mulheres em primeiro plano, apresentando shows, debates e espaços de troca. Realizada no Memorial da América Latina, em São Paulo, durante os dias 7 e 8 de março – esse último onde se marca o Dia Internacional da Mulher –, a primeira edição do festival acertou em estrutura e organização e pautou diversas discussões que seguem após a realização do evento.

Foto: Helena Yoshioka

Um dos principais debates sobre o festival foi a questão do line-up, discutida desde sua divulgação e que retornou a baila durante o final de semana e também agora no pós-evento. As duas grandes atrações internacionais – Kylie Minogue e Little Mix – possuem um público amplo na comunidade gay (e aqui estamos falando apenas do G dentro do LGBT) e esse público se fez presente massivamente nos dois dias de evento. Essa questão levantou diversos questionamentos na internet: que possíveis atrações femininas internacionais poderiam levar um grande público feminino para um festival em que os ingressos tinham preços bem salgados? Como fazer um festival com line-up feminino e público feminino? Por que, historicamente, as artistas pop femininas têm, em sua maioria, um público gay masculino? Essas são questões complexas e que devem pautar uma segunda edição do festival, mas que não tiram os méritos dessa primeira edição de GRLS!

Foto: Fernanda Tine

Se entre o público o que mais se via eram homens gays, por outro lado víamos mulheres em todas as frentes do GRLS!: na produção, no palco, nas bandas, nos debates, nas vendas e na segurança. As mulheres estavam produzindo, trabalhando e construindo esse festival. E um dos principais pontos de construção coletiva desses dois dias foram os Talks organizados pelo Canal GNT. Com curadoria da produtora cultural Ísis Vergílio, da jornalista Renata Simões e da produção do GNT, as mesas de debate trouxeram nomes importantes como Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Gaby Amarantos, Fernanda Lima, Didi Couto, entre muitos outros, em uma soma de mais de 8 horas de conteúdo durante os dois dias.

Foto: Helena Yoshioka

Comandado por Astrid Fontenelle, o GNT Talks colocou nomes diversos para debater temas fundamentais como feminismo, liberdade, carreira, construções sociais, racismo, transfobia, diversidade religiosa e convivência em eras de cancelamento. Como definiu Cris Naumovs (foto acima) em uma das palestras, esses seriam debates de “temas civilizatórios”, que parecem até mesmo óbvios, mas cada vez mais necessários de serem discutidos no panorama atual de nossa sociedade. Esses dois dias de Talks possibilitaram um pluralidade de vozes e de encontros que deram a tônica das intenções da organização do festival. Além dos Talks, o festival também contou com o espaço Conexões, uma área envolvendo selos, coletivos e ONGs com oficinas, imersões e bate-papos. Nesse espaço estavam as mulheres do SÊLA Musical, do Girls Camp Rock e do RAMA.

Foto: Bleia Campos

SÁBADO – 07/03
Um ponto a se celebrar no Festival GRLS é como a produção deixou muito claro que o evento era construído dentro de todas as possibilidades de ser mulher: mulheres cis, trans, não-binárias, queers. Essa diversidade era reforçada em diferentes chamadas durante o evento e também nos nomes que eles colocaram para falar e cantar. Isso fica claro já no show de abertura do primeiro dia: Linn da Quebrada. Artista trans forte e combativa, Linn levou um show enérgico para o palco, calcado na música eletrônica, que fez o público dançar muito mesmo sob o sol forte que tomava o concreto do Memorial. Linn apresentou seu show “Pajubá”, que tem marcado o encerramento da divulgação de seu celebrado primeiro disco, de mesmo nome, como havia apresentado recentemente no CCSP.

Linn da Quebrada / Foto: Fernando Yokota

A segunda mulher a subir no palco foi Gaby Amarantos, em show que marca uma espécie de retorno da artista, que lançou “Treme”, seu primeiro e único álbum lá em 2012. Gaby falou no palco que está em produção de seu segundo disco, um projeto independente, e aproveitou a apresentação para cantar alguns de seus singles mais recentes, como “Xanalá”, uma parceria com Duda Beat, e “Q.S.A”, lançada ao lado de Jaloo. Com looks poderosos, Gaby dançou, fez coreografias e cantou versões repaginadas de clássicos do funk e do pop nacional – um saldo de sua participação no programa “Saia Justa”, do GNT, onde a cada episódio ela ressignifica canções populares que são machistas ou misógnias. Além disso tudo, a artista paraense levou para o palco as dançarinas do coletivo de mulheres indígenas Suraras do Tapajós, que mostraram como se dança o treme, e também as bailarinas do coletivo Turmalinas Negras.

Gaby Amarantos / Foto: Fernando Yokota

O furacão Ludmilla foi a terceira mulher a subir ao palco no sábado – ela entrou no line-up na sexta-feira à noite, em substituição da rapper Tierra Whack, que não compareceu ao evento por motivos pessoais não divulgados. Ludmilla é artista pop do primeiro escalão nacional e isso fica provado em um show absurdo: projeções poderosas, luzes estroboscópicas, coreografias impecáveis e uma sequência de hits. “Cheguei”, “Fala Mal de Mim”, “Sem Querer”, “Não Encosta” e “Verdinha” fizeram o público se esbaldar. Além disso, Lud também cantou faixas voltadas para o pagode, ritmo no qual ela prometeu lançar logo, logo um EP.

Ludmilla / Foto: Fernando Yokota

Em ação da Heineken, a banda As Bahias e a Cozinha Mineira cantou sobre uma espécie de trio elétrico no intervalo entre o 3º e o 4º show. As meninas apresentaram alguns covers, com canções de axé, pop e MPB, contando ainda com a participação de Josyara. Com repetidos problemas no microfone, foi quase difícil de ouvir com qualidade a voz de Assucena e Raquel Virgínia, as vocalistas da banda; mesmo assim, a força ao vivo de ambas é tanta que contagiou o público que se aglomerou no espaço.

As Bahias e a Cozinha Mineira / Foto: Helena Yoshioka

20h30 da noite, 15 minutos antes do programado, Kylie Minogue subiu ao palco e causou furor no público, que correu para seus lugares. A estrela pop australiana não vinha para o Brasil há 12 anos e por isso ela fez um setlist especial para o país, contendo hits como “In My Arms”, “Slow”, “Love at First Sight”, “Dancing” e “Come Into My World”. Kylie trouxe todo seu aparato técnico: palco cheio de detalhes, com espelhos, adereços cênicos, estrutura para a banda, um grupo robusto de dançarinos e tudo que um show pop tem direito – indo na contramão dos artistas que cada vez mais têm vindo para o Brasil acompanhados de estruturas mínimas. Kylie Minogue trocou de look cinco vezes, se divertiu no palco e até cantou “Your Disco Needs You” a capella depois que os fãs gritaram alguma coisa em português e ela entendeu como um pedido de música.

Kylie encerrou o primeiro dia de shows com uma celebração de amor, de alegria e mostrou uma força inspiradora no palco. Um showzão pop que os fãs brasileiros esperavam há anos.

Kylie Minogue / Foto: Helena Yoshioka

DOMINGO – 08/03
Se no sábado o sol fervia o concreto do Memorial da América Latina, o domingo preparou uma grande chuva antes dos shows começarem. De todo modo, isso não diminuiu o ânimo dos fãs da girlband Little Mix, que chegaram cedo com looks especiais e já estavam guardando seus lugares na grade quando o primeiro show do dia começou.

Público / Foto: Helena Yoshioka

As mulheres do Mulamba subiram ao palco pontualmente às 15 horas e foram recebidas calorosamente pelos jovens que guardavam seus lugares para as atrações posteriores. Foi um momento bonito de se ver: o respeito deles perante uma banda que muitos desconheciam. Com seu show forte e político, o Mulamba cativou o público, fazendo com que a audiência cantasse e gritasse frases de impacto. Canções como “Mulamba”, “P.U.T.A.” e “Espia e Escuta” trouxeram perspectivas fortes de ser mulher para abrir o palco no Dia Internacional da Mulher. A banda repetidas vezes reafirmou seu show como um espaço de encontro para todas as mulheres, inclusive convidando uma mulher trans da plateia para subir ao palco e dançar junto delas em uma música que homenageia Dandara dos Santos, mulher trans torturada e assassinada de forma brutal em 2017.

Mulamba / Foto: Fernando Yokota

Além disso, o Mulamba também encontrou espaço para pontuar outros temas complexos, como a demarcação das terras indígenas e a especulação imobiliária. Foi simbolicamente forte, por exemplo, a execução da faixa “Vila Vintém”, que fala sobre ocupações de moradia, quando a imagem que se tem no Memorial, logo ao lado direito onde estava o palco, são três prédios abandonados há anos e que parecem já comuns a essa paisagem de São Paulo.

MC Tha / Foto: Fernando Yokota

MC Tha foi o segundo nome a subir ao palco e trouxe toda a sua mística do disco “Rito de Passá” (2019) para um show poderoso, que mostrou a evolução da cantora no palco. Bem desenvolta, contendo seu nervosismo e emocionada com o público, Tha marcou naquele momento o seu crescimento enquanto um dos nomes mais interessantes da nova geração. Faixas como “Coração Vagabundo”, “Clima Quente” e “Bonde da Pantera” colocaram o público pra dançar mesmo com a chuva que começava a cair novamente. Acompanhada apenas da percussionista Rayra Maciel e da multiinstrumentista Malka Julieta, Tha dominou a plateia e ainda deu de presente ao público uma versão poderosa de “Jorge da Capadócia”. Fato é que MC Tha elevou as expectativas e agora parte para uma turnê na Europa e retorna ao Brasil em abril, quando se apresenta no próximo Lollapalooza.

Iza / Foto: Fernando Yokota

Já anoitecendo, foi a vez de Iza subir ao palco e trazer consigo a chuva – e não estamos falando de pouca chuva. Mais uma das grandes estrelas do novo pop nacional atual, Iza desfilou seu mar de hits enquanto o público era lavado debaixo de muita chuva. “Pesadão”, “Ginga”, “Evapora” e “Brisa” dividiram setlist com covers diversos de gente como Skank, Gilberto Gil, Rihanna, Pabllo Vittar e Natiruts. No momento em que Iza cantava “Dona de Mim”, o telão do festival exibiu duas vezes a imagem de uma mulher negra na plateia que cantava a canção aos prantos, em momento emocionante, que mostra a força e o poder de Iza.

As Bahias e a Cozinha Mineira / Foto: Helena Yoshioka

Depois de toda a chuva, a ação que estava planejada novamente com As Bahias e a Cozinha Mineira teve que ser adaptada: elas não poderiam ficar na parte superior do “bar-trio-elétrico”, por isso elas subiram no balcão do bar e ali mesmo fizeram o show, apenas em voz e guitarra. Com a companhia da cantora Urias, as três reafirmaram a força das mulheres trans na música e embalaram o público com covers poderosos de faixas como “Verdinha”, “Faraó Divindade Do Egito”, “Amor de Que” e “Espumas ao vento”. Se de um lado o novo esquema foi improvisado, por outro o som ficou com uma qualidade superior ao do primeiro dia, deixando a voz das cantoras em primeiro plano.

Little Mix / Foto: Fernando Yokota

Para fechar à noite, foi a vez da girlband inglesa Little Mix subir ao palco, para o delírio de um mar de fãs. Durante o evento, muitas vezes se ouvia que as meninas seriam uma espécie de “Spice Girls contemporâneas” e a força delas ao vivo pareceu apenas reafirmar essa equiparação. Sem a integrante Perrie Edwards, que não veio por estar doente, o Little Mix ainda conseguiu mostrar uma força descomunal que emocionou os fãs que há anos esperavam por elas. Com produção impecável e coreografias surreais, as três integrantes Jade Thirlwall, Leigh-Anne Pinnock e Jesy Nelson cantaram hits como “Salute”, “Shout Out to My Ex”, “Woman Like Me” e “Touch”. Era encantador de ver a emoção das três integrantes, que repetidas vezes falaram que esse era o melhor show delas, com a melhor plateia – um clássico dos artistas gringos quando descobrem o público brasileiro.

Foto: Helena Yoshioka

Com o encerramento de Little Mix, o GRLS! fechou uma maratona de dois dias de debates, shows e informação, em um espaço muito organizado e com uma estrutura quase impecável, com muitos banheiros, muitas sinalizações e boas informações. De todo modo, a divisão entre pista premium e pista comum pode, de algum modo, ser questionada, já que estruturalmente separou demais uma parte do público do palco – a organização de pista premium comumente usada nos festivais Popload, por exemplo, poderia ter sido mais eficaz. No final das contas, o saldo é muito positivo para o GRLS! e todos os debates posteriores falam que há sim o que se aprender e debater sobre um futuro line-up, mas há uma concordância de que eventos desse tipo precisam seguir existindo. Que venha o próximo.

Foto: Helena Yoshioka

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/

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