Texto por Dri Cruxen
Fotos de Miguel Serrão
Quando o Psicodália anunciou que não ia acontecer este ano, muita gente lamentou, chorou e xingou muito na internet. O festival é, desde 2006, o principal destino pra quem acompanha a cena independente do país e quer vivenciar o carnaval (de uma maneira diferente) na região Sul.
Mas nem tudo estava perdido. Aproveitando a brecha das datas e de olho na efervescente cena multicultural brasileira e latino-americana, novos festivais (Bradamundo, Libélula [edição Carnaval], Morrodália e Saravadália) surgiram com a missão de substituir o consagrado Psicodália no carnaval e pós-carnaval 2020. Assim nasceu o “Circuito Psicodália de Carnaval”, trazendo várias opções de rolês criados com a benção do próprio Dália.
Paisagem linda, ingresso barato com tudo incluso, e que ainda valia para duas pessoas (promo de última hora), excursões saindo de várias cidades do Sudeste/Sul do Br, camping, passeios diários para os cânions/praia, tenda de cura (espaço com terapias holísticas e yoga), oficinas diversas – desde estêncil, malabares, até de cosméticos naturais –, intervenções teatrais, atividades infantis e um monte de shows, tudo isso em pleno feriado de carnaval. Tem como ser ruim? Não tem como. Mas calma, claro que nem tudo foram flores.
Na sexta-feira (21) à tarde, quando a maioria do público chegou ao Parque Municipal de Eventos da cidade de Santa Rosa do Sul/SC, local da primeira edição do Bradamundo Festival, o vento Sul resolveu chegar também e deu as “boas-vindas” com um vendaval que dificultou a nível hard a montagem das barracas. E estava frio, muito frio, isso em pleno verão, coisa que nem a gaúchada presente achou normal.
No meio desse cenário siberiano que lembrou a 1ª edição do SWU, aquela friaca e ninguém preparado para o frio (só quem viveu sabe), o Bradamundo iniciou os trabalhos com discotecagem animada, mesmo com muita gente ainda montando acampamento. O rock pesado deu as caras nessa primeira noite com as bandas locais Barba Rala e Ponto Nulo do Céu. Mas em se tratando de carnaval, os queridinhos do público foram o Bloco da Laje, coletivo de Porto Alegre que no pré-carnaval arrastou mais de 20 mil pessoas pelas ruas da capital.
Com performance circense, divertida e ao mesmo tempo ácida, letras afiadas, “não pode fumar um, não pode dar o cu”, trecho de “Cordão da idade Média”, evocação de Jesus mulher em “Pregadão” e alfinetada no Messias eleito com beijo gay. Na canção “Recanto Africano”, o grupo homenageou o povo preto e reivindicou justiça: “quem mandou matar Marielle?”. A performance alto astral foi prato cheio pra crente infartar com tamanha heresia. Damares precisava estar lá pra ver.
O sábado de carnaval começou quente e com perrengues. Não tinha água suficiente pra tomar banho, nem pra cozinhar e nem pra lavar louça na cozinha comunitária improvisada. A escassez da água foi um problema corriqueiro. Era muita gente pra pouca água. Mas ok. O lance era focar nas coisas boas que o festival tinha a oferecer: as oficinas diárias rolando desde cedo, toda aquela área verde, ar puro, os balanços pendurados embaixo das árvores, que faziam a gente voltar a ser criança, as redes pra balançar e tirar aquela soneca pós-almoço, slackline pra testar o equilíbrio, a bateria improvisada que garantia uma jam pra quem estava passando perto, a galerinha artsy pintando mural, rostos e corpos, música boa tocando o tempo inteiro, a lojinha do festival e das bandas, ou seja, a vibe era muito boa pra gente ficar reclamando da falta d’água.
Outra coisa que merece receber elogios foi a comida servida no Brada. Teve almoço bom todos os dias sendo vendido a R$15 pila, com salada à vontade. Além do almoço, estavam sendo vendidos sanduíches, pastéis, salgados, tudo com preço ok e sempre com opções vegetarianas e veganas. Pra quem queria beber por lá, tinha café orgânico, chopp artesanal e bar com uma carta de drinks interessantes, o melhor Moscow Mule que já provei, inclusive.
A produção havia previamente liberado a entrada de bebidas e apenas limitou a cerveja (02 caixas/pessoa). O refil de água custava 1 real, bastava ter uma garrafinha ou copo próprio pra encher, já que o festival, seguindo a tendência eco sustentável, não disponibilizava nenhum descartável. Isso valeu para pratos, talheres e copos.
Perto área de lanches tinha banheiro não-químico com espelho, para felicidade dos make up lovers e ao lado foi montado um pequeno stand com tomadas para carregar celular. O sinal 4G funcionou perfeitamente, logo, fazer stories era quase que obrigatório. Os passeios para a praia próxima, Passo de Torres, e pro cânion Malacara também fluíram bem diariamente. Foram disponibilizados transporte e guia para ambos, e aos interessados, bastava colocar o nome na lista no dia anterior, sem nenhum ônus a mais, e acordar cedo pra garantir lugar no ônibus.
Voltando a falar dos shows, a segunda noite foi marcada pela rima das minas. As rappers catarinenses Versa, Preta e Anarima fizeram um show potente e mostraram que a cena do hip hop está cada dia mais interessante e propensa às vozes femininas. A mulherada chegou com muita força, “lugar de mulher é onde ela quiser”, principalmente no rap, que é um ambiente com histórico machista.
“Puxa a fumaça, abre as pernas e relaxa. Eu prefiro sozinha do que mal acompanhada”, cantou Versa, enaltecendo o prazer feminino que toda mulher deve ter consigo mesma. No outro palco, Eli Almic, a Mc de maior destaque no Uruguai nos últimos tempos, também mostrou seu rap feminista, cru e crítico, cantado com muita alma e vigor.
E teve mais uruguaios naquela noite. Os bem falados Cuatro Pesos de Propina contagiaram a plateia com seu mambo-hardcore, mostrando a relevância do rock latino, que está sempre se reinventando.
O domingo de carnaval já começou colorido. Uma bandeira LGBTQ enorme foi posta em frente a um dos palcos principais. O glitter e as fantasias carnavalescas já tinham virado o look nos corpitchos da galere. Esse terceiro dia de festa prometia botar todo mundo pra dançar até o chão, com os ligados no 220v da Francisco El Hombre e as divas natalenses Potyguara Bardo e Luisa e os Alquimistas, figurinhas carimbadas da cena potiguar. Elas foram trazidas para Santa Catarina via intercâmbio Festival DoSol / Bradamundo, que ilustra a união dos festivais independentes de Norte a Sul do país.
A cantora Potyguara Bardo fez história também na última edição do festival Mada, outro renomado festival da cena de Natal/RN, fazendo um dos shows mais aclamados. Antes dos protagonistas da noite, a festança começou cedo com o pop dançante de Jesus Luhcas seguido pela drag Lólly, que debutava no Bradamundo.
Uma gig que chamou bastante atenção, pela performance e iluminação, foi o das meninas catarinenses da Napkin. O palco Floresta, bucólico e intimista, onde os artistas novatos tocavam, ficou pequeno pro tanto de gente atraído pela sonoridade única delas. O duo reivindicou o protagonismo feminino e deixou claro que toda sua equipe era formada por mulheres, desde rodie até produção.
Depois da surpresa boa que foi o Napkin, já abrindo os shows dos palcos principais, outra banda que sempre agrada pela qualidade sonora é a Terno Rei, que fez um concerto lindo e pontual, apresentando músicas do seu ótimo disco, “Violeta”. Bem indie, levinho e perfeito.
No palco ao lado, pleníssima, a drag Potyguara Bardo encantou todo mundo com sua mistura holística de ritmos brasileiros com sotaque nordestino, muito reggae, MPB e mensagem de elevação espiritual. Não é à toa que seu disco “Simulacre” (2018) foi tão elogiado pela crítica especializada. No finzinho do show, a artista chamou ao palco sua conterrânea Luísa (e os Alquimistas) pra cantar o hit “Plene”, feat. das duas.
Luísa e os Alquimistas com seu álbum “Jaguatirica Print” também incendiaram o público, que já estava com os ânimos elevados pós show da Francisco El Hombre. A plateia segurou a energia e dançou até o chão todas as músicas da cantora dreadlocks.
E o que foi a catarse coletiva do baile da Francisco El Hombre? Uma maratona de pulos, rodinhas e coreografias, sempre com energia elevadíssima, discurso politizado com o lema “Educar e Resistir” e entrega completa dos fãs. No meio da música “Bolso Nada”, hino anti-fascista inspirado no excrementíssimo presidente da república, na parte refrão que diz “esse cara escroto, muito escroto”, quando a galera mandou o grito “ei Bolsonaro, vai tomar no cu”, o vocalista Matteo pausou o show e pediu para pararem de mandar o presidente tomar no cu, “afinal, tomar no cu não é xingamento, tomar no cu é uma delícia. Se o Bolsonaro tomasse no cu seria uma benção”, completou. O final do show “Rasgacabeza” foi marcado por um fã fantasiado de coelhinho no palco e pela plateia ensopada, já que é impossível permanecer um segundo parado no show.
A gente piscou e já era segunda-feira. É impressionante como se perde a noção do tempo quando se está imerso em uma viagem cultural. Pessoas diferentes, de diversas idades, lugares, com seus cachorros e crianças, se conhecendo, se respeitando, se ajudando, dividindo espaço, banheiro, cozinha, energia, e tudo fluindo bem; quase como uma simbiose coletiva.
No quesito música, a segundona também foi marcante. Teve o suingue carioca do Braza, sempre bom, o rap rock reverberado do Machete Bomb e uma mini Oktoberfest quando o Terra Celta subiu ao palco. Mas o destaque da noite ficou pra presença da Ekena. A cantora fez uma apresentação cheia de sentimentos, verbalizou sobre amor próprio, sobre encontrar o eu de cada um, fez versão de Zezé de Camargo e Luciano e cedeu lugar de fala para as mulheres que quisessem subir ao palco.
A rapper Preta, que havia se apresentado na segunda noite, pediu investimentos para si e cobrou dos produtores olharem mais para as mulheres cantoras, criando festivais mais inclusivos e que fortalecessem a cena local. A apoteose do show veio com a canção “Todxs Putxs”, talvez a composição mais necessária feita por Ekena, que funciona como um clamor de descarrego e resistência ao machismo e fala da luta feminina, que é diária. Assistir aquele mar feminil que subiu ao palco cantando juntas “mulher, a culpa que tu carrega não é tua, divide o fardo comigo dessa vez”, esse é o exemplo de sororidade que a gente gosta de ver e aplaude de pé.
Já era madrugada quando o palco floresta se iluminou de um jeito fúnebre. Todo mundo que estava perto parou e prestou atenção. Começava a performance musical teatral “O Céu de quem nos colocou no Inferno”, que encenou o sepultamento de Bolsonaro queimando no fogo do inferno. “É impossível permanecer são vivendo nesse caos”. No meio da apresentação, em off, ouviu-se o depoimento de uma mulher trans que contou em poucas palavras a luta que é viver em um país governado por um fascista e relatou a baixa expectativa de vida de uma pessoa trans em meio a tanto ódio. Impactante, necessário. Nós estamos comemorando o carnaval, brincando, cantando, mas nosso país está doente, e não dá pra ignorar isso. O Brasil é o lugar que mais se mata pessoas gays e trans no mundo. É bizarro, é vergonhoso, é inadmissível.
A terça-feira de carnaval e último dia de Bradamundo começou com chuva. Dá pra imaginar o caos que ficou o camping, cheio de barracas alagadas. Mas ok. Como canta o Braza na música “Fé no Afeto”, “se chover deixa molhar”.
O estrago causado no camping não atingiu outras áreas, já que a praça de alimentação e os dois palcos principais laterais eram cobertos. O público acabou ficando mais concentrado nessas áreas e se achegou um pouco mais no início da noite ao ouvir os tambores das Mulheres de Aidê, grupo de percussão de Floripa, formado quase inteiramente por mulheres negras. A energia contagiante, o axé e o protagonismo feminino se fez evidente com essas mulheres que, além de beleza, batuque e alegria, estavam ali passando uma mensagem de engajamento, força e luta.
Outro exemplo de mulheres guerreiras que tocaram nesta mesma noite é a banda curitibana Mulamba. Com discurso potente e corajoso, suas letras abordam temas femininos relevantes, que precisam de voz, espaço e respeito. O show foi uma aula de como romper com o patriarcado e liberdade feminina. A bailarina Maria Glória Poltronieri Borges, a Magó, que foi estuprada e assassinada em janeiro, (mais um caso de feminicídio em meio aos milhares que o Brasil registra por ano) foi homenageada com cartaz “MagoPresente”.
Mesmo depois de finalizado o show, os fãs continuaram cantando em uníssono a canção “Espia Escuta”, que já virou hino da luta feminina contra o machismo sistêmico. “Espia, escuta, na esquina, na calçada. É a mulherada ficando embucetada”. Que momento, senhoras e senhores!
Nessa mesma noite, o ápice da qualidade técnica aliada com a sonora perfeita foi atingida no concerto conjunto da cantora paulistana que cresceu na Bahia, Luiza Lian, junto com os também paulistanos, Bixiga 70. Não tinha como competir. Luiza e seu brilhante álbum “Azul Moderno”, que tem viajante show de luzes dividindo o palco com a finesse da música instrumental do Bixiga, coisa linda de se ver. O show uniu o trabalho autoral de ambos e apresentou o single “Alumiô”, parceria entre os dois artistas.
Madrugada adentro, carnaval acabando, chuvinha rolando. Dormir nessa última noite de Bradamundo definitivamente não era prioridade. No meio da última gig do festival, os psicodélicos Aminoácidos convidaram a cantora Cau Russo, da banda paranaense Sala de Estar a subir ao palco. Com alcance vocal surreal, sua voz ecoava com tanta alma e leveza que é difícil achar palavras para detalhar o quão hipnotizante foi. Aquela mulher travesti de 1,90m deixou toda a plateia, e não era pouca gente, boquiaberta.
A quarta feira de cinzas começou bem cinza e chuvosa. Às 06 da matina o festival encerrou suas atividades com o Bailinho Lado C, discotecagem de vinil, que tocou a madrugada toda e manteve acesa a energia das pessoas que decidiram permanecer acordadas. No set, muita música brasileira boa e pop retrô. E ninguém passou frio na pista de dança.
Foram 5 dias intensos de Bradamundo. O festival teve sim problemas técnicos e estruturais, que são comuns em se tratando de primeiras edições. Os produtores ainda estão testando formatos e vendo o que dá certo e o que precisa ser melhorado. A questão da escassez de água, por exemplo, é um ponto que precisa ser solucionado, bem como o funcionamento dos palcos laterais principais (palco Brada e palco Mundo). Esse modelo de palcos tão utilizado nos grandes festivais só fazem sentido quando há dinamismo nas apresentações, coisa que não aconteceu. Os intervalos grandes e atrasos entre os shows dispersaram o público.
No entanto, nem tudo são críticas. É importante enaltecer as mais de 250 pessoas que trabalharam na raça dia e noite pra fazer esse festival acontecer. Apontar os erros é muito fácil. A gente sabe das dificuldades que os festivais independentes enfrentam para se tornarem realidade (sem patrocínio ou apoio governamental). O clima de colaboração, o pensamento coletivo, a convivência em harmonia ao longo desses 5 dias, tudo isso já se sobrepõe a qualquer erro de caráter estrutural. E em 2021, que venha o Bradamundo 2ª edição! Nem deu tempo de ficar com saudade do Psicodália (que retorna em 2021).
– Dri Cruxen é uma jornalista nômade digital, que desde 2011 viaja pelo país em busca de vivenciar um pouco da cultura brasileira. Acumula festivais de música na bagagem desde o SWU e ama comer em restaurantes veganos. Todas as fotos por Miguel Serrão (exceto as indicadas)