entrevista por Leonardo Vinhas
“O Campo é uma banda de rock do interior de SP que bebe tanto nas fontes dos anos 1970 como dos 1990” é uma frase boa para colocar em apresentações de banda, mas que também não conta quase nada sobre esse quarteto de Taubaté (130km da capital paulista), que consegue a façanha de ser retrô e antihipster ao mesmo tempo.
As duas primeiras faixas de seu epônimo álbum de estreia já servem como um resumo de tudo o que você vai encontrar nas seis canções restantes: guitarras à frente das harmonias, preferência pela linguagem instrumental, detalhes psicodélicos, timbres “naturais” (e uma belíssima produção), vocal tímido e pouca ourivesaria na construção de refrões. Poderia ser chamado de “grunge tardio”, se a banda não tivesse tão clara a opção pela clareza em detrimento da sujeira. E ainda, ninguém ali quer viver do passado. Só quer soar, como diz seu release, “sem máscaras e seminua”.
Há, por exemplo, o dado lisérgico. Mas ao contrário da turma que emula Tame Impala ou da que insiste em fazer ruído e chamar de psicodelia, O Campo prefere ter clareza e deixar que a cabeça gorda não ocupe mais espaço que aquele pedido pela canção. E, salvo “Compasso”, que é definitivamente datada, as canções foram registradas com o apreço pelas referências do passado, mas com a proposta de soar como feitas hoje. Como se verá na entrevista a seguir, houve a intenção consciente de fazer um disco para o tempo presente, e não reverenciar o passado.
A formação atual – Leo Santi (guitarra e voz), Michel Renó (guitarra), Murilo Marroco (baixo) e Mario Gascó (bateria) – está junta desde outubro de 2018, mas o embrião da banda, ainda como trio, nasceu em fins de 2017. Enquanto os guitarristas residem na terra de Monteiro Lobato, a cozinha mora em São Paulo, e o disco (que pode ser baixado de graça aqui) foi gravado nos intervalos de tempo que a distância permitia. A gravação e a mixagem aconteceram toda no Bangue Estúdio, em Taubaté, mas a masterização foi feita em Nova Iorque. O resto eles mesmos contam a seguir.
Curioso vocês citarem as décadas de 1970 e 1990 como referência, porque existe certo consenso de que os 90 foram o primeiro momento em que o rock e a música pop mainstream olhou em massa para o passado. O grunge era todo um revisionismo.
Michel Renó: A gente bebeu muito dessa fonte, é uma questão de gosto. A gente se educou musicalmente ouvindo muito os anos 90, que bebia demais dos 70. Hoje em dia eu entendo os 80, mas eu achava uma bosta naquela época (risos). A gente tenta, mas é natural, é o gosto de todo mundo. O que a gente tem feito agora nas canções novas é tentar inovar um pouco, trazer mais camadas, usar algumas coisas de eletrônica. A gente gosta da coisa nova. Não procuramos fazer nem nada do passado nem contemporâneo, mas todo mundo tem dito que soa atual. Tipo, você ouviu a nova do Pearl Jam (“Dance of The Clairvoyants”)? Eu gostei, mas achei estranha, ainda não me habituei a ouvir a voz do Eddie Vedder ali.
Leo de Santi: Quando eu fiz as primeiras músicas da banda, eu estava ouvindo muito Boogarins, que traz muitos elementos de lá de trás, mas é uma coisa do momento, o que eles fazem não pertence ao passado. Foi uma referência.
Os Boogarins (que colocaram dois discos no Top 50 da década no Scream & Yell) também não são muito de facilitar, no sentido de fazer canções estruturadinhas, com parte A, refrão, parte B, refrão… As canções já nascem assim, mais fluidas, ou são resultados de jams?
Leo de Santi: Como eu sou da formação mais antiga, posso dizer que é um misto de tudo. Antes de se sermos uma banda, fazíamos jams, mas as primeiras músicas não surgiram delas. Eram letras que ganharam música. A música mais antiga é “Reparei”, e a segunda mais antiga é a “Espelho”. A primeira não segue uma forma pop, a segunda sim. Então as coisas não tem um critério claro, é um processo mais livre.
Michel: Nas novas, a gente está se preocupando mais. Acho que tem um lado bom nesse de estruturar, mas nossa característica é um som mais solto mesmo.
O fato de ter cada metade da banda vivendo em duas cidades diferentes já dificulta, e Taubaté, apesar de ter uma movimentação local, não está exatamente em um circuito de circulação das bandas. Como vocês fazem para levar a banda para fora do Vale do Paraíba?
Michel: A gente tem apostado bastante no nosso próprio trabalho de produção. Somos uma banda nova, que conseguiu fazer um disco e um clipe (“Ciudad”) em pouco tempo. A internet ajuda muito a buscar isso, ela é fundamental. Antigamente, as coisas eram mais regionais e não tinham tantas pontes. Quando havia, eram mais difíceis.
Leo: No meu ver, desde que começamos com O Campo, temos tocado em um circuito do Vale do Paraíba. Tem os estúdios que também são locais de shows, como o próprio Bangue e o Wasabi (em São José dos Campos, sob a responsabilidade de Diego Xavier, guitarrista do BIKE). O Hocus Pocus (também em SJC) também abre espaço para alguns autorais… Mas a gente opta por não fazer tanto show, para produzir mais coisas, expandir nosso trabalho criativo.
Michel: Tem mercado pra tudo. O que falta pro músico é esse profissionalismo, saber se organizar. Muita banda não tem gestão. Nos projetos que participei e participo, vejo muito isso. A Rude Dog Ska Ensemble (nota: excelente sexteto de ska no qual Michel toca e que participou da coletânea “Sem Palavras II”, do S&Y) tem ótimos músicos, o público gosta dos shows, mas a gente não consegue se organizar para rodar. Por isso que com O Campo temos um produtor pra vender show, e a gente se preocupa mais livremente com a música.
Leo: No ano passado, a preocupação era o disco. Porque temos dois integrantes em SP, dois em Taubaté, e a gente gravava o disco quando dava. Agora a gente tá atrás de show mesmo, tanto com o produtor quanto com editais de festivais.
M: O BIKE é um exemplo bem legal de alcance e de trabalho bem feito. Mas tiveram um timing também, esse novo momento do rock psicodélico ajudou. Não foi proposital, era o som deles, mas calhou de vir no tempo certo. A gente tá surfando um pouco essa onda, mas não somos diretamente ligados a esse tipo de som, e nem é nossa praia.
E vocês estão preocupados por não serem parte de nenhum hype, ou não estão nem aí?
Leo: Meio cagando e andando, meio preocupados. Preocupados não com o hype em si, mas com a questão de manter a banda ativa para continuar existindo. Eu compus recentemente uma canção meio torta, e o Michel mudou o mapa dela, deixou mais acessível. Mas não é como se a gente fizesse isso procurando uma estética específica.
Michel: Eu que gravei e mixei o disco, e entrei na banda nesse processo. Por trabalhar com produção, sempre me preocupo com esse mesmo sentido que o Leo falou. A gente não fica preso, mas não pode simplesmente pensar que vamos fazer os sons sem nos preocuparmos se as pessoas vão ouvir. No processo de produção do disco, a gente quis estruturar mais, mas não fazer uma estrutura padrão.
Ter um estúdio à disposição deve ajudar a se sentir mais livre na criação, não? (Michel é proprietário do Bangue, onde o disco foi gravado).
Leo: Porra, ajuda demais.
Michel: A gente consegue ter mais calma, e precisa desse tempo. Tem que estar muito inspirado para rodar tudo em duas horas.
Leo: Recentemente, a gente foi pra uma chácara, armou o som às quatro da tarde e só parou às três da manhã. Isso é importante. Mas é preciso dizer que nunca ficamos horas no Bangue, mesmo com o Michel efetivo na banda. O legal do Bangue foi isso de poder experimentar na gravação, como trazer as percussões ( a cargo de Nhô Frade, do Grupo Paranga), por exemplo. A gente fritou muito ali.
Michel: Isso foi crucial.
Experimentaram também na questão das letras – ou ausência delas? Afinal, tem faixa em português, em espanhol e instrumental.
Leo: Sobre ter o verso em espanhol, isso foi por acaso. Teve músicas em que o instrumental veio antes, outras vieram da letra. As conversas foram fazendo as letras. “Sem Hora” era uma quase inteiramente instrumental, só tinha um refrão. Mas na hora de gravar, o Michel disse que merecia uma letra, e eu finalizei ali. “Compasso” também foi isso, por sugestão do Michel nós trouxemos a letra. “Ciudad” era outra que não tinha letra, e eu tava viajando pro Uruguai, pra Cabo Polonio, e mostrei ela para um amigo meu, o Guillermo, que me deu os primeiros versos, e o resto fizemos juntos. Antes, o segundo verso era dobrado em português, mas aí fizemos uma “dinâmica de grupo” e escrevemos o resto da letra. Como tudo, é meio livre.
Michel: Entra o que a gente acha que a música pede. A gente gosta do instrumental, mas pensamos que também não dá para alienar o público, precisamos ter canções.
E não só canções, mas álbum, certo? Porque, mesmo entrando em uma nova era do single, dá para sacar que vocês investiram muito em fazer um álbum.
Leo: Fazia diferença para nós. Por mais que os singles estejam aí, acho que o álbum tem uma vida maior, uma utilidade maior. E nunca vai deixar de ter. O single é importante, pode fazer a banda estourar, mas o álbum dura mais. Trabalhar só single não dá! Todas as bandas fodas do Brasil estão fazendo álbuns. A gente nunca vai deixar de fazer álbuns, de pensar no trabalho do começo ao fim.
Michel: O single tem a estratégia, você tem sempre alguma coisa nova. Mas o álbum tem tudo isso que o Leo falou, e o lance old school com o qual a gente se identifica. Voce consegue englobar mais coisas, trabalhar um conceito maior. Tanto que lançamos em CD também.
Leo: É super legal ter o físico, como arte. Dá para vender nos shows, as pessoas gostam de ter, mesmo sem ter aparelhos onde ouvir. Dias atrás um cara da Noruega veio pelo Bandcamp perguntar se tinha como comprar o disco físico.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.