Texto por Anna Beatriz Lisbôa
Muita gente ouviu falar de “1917” pela primeira vez no Globo de Ouro, enquanto o filme surpreendia ao faturar os prêmios de melhor drama e melhor direção para o inglês Sam Mendes. O longa-metragem ambientado na Primeira Guerra Mundial (1914/1918) chegou de forma limitada aos cinemas norte-americanos no dia de Natal e alguns dias depois já dava demonstração de força no início da temporada de premiações.
Até agora, tem dado tudo certo para “1917”. De lá para cá, o filme confirmou seu favoritismo no Oscar 2020, levando as premiações máximas dos sindicados Director’s Guild of America (DGA Awards) e Producers Guild of America (PGA Awards). Com orçamento estimado em US$ 100 milhões, o filme já faturou US$ 200 milhões em bilheteria, somando-se mercados doméstico e internacional.
O aspecto mais alardeado do longa-metragem tem a ver com a opção de Mendes por contar a história – inspirada pelos relatos de seu avô veterano de guerra – por meio de um plano contínuo. Ou pelo menos simular essa sensação, já que existem cortes discretos na montagem.
Esse triunfo técnico de Mendes tem servido de chamariz para o público, mas tem polarizado opiniões, com críticos menosprezando o artifício como mero exercício espetaculoso que distrai das limitações do roteiro.
Essa má vontade não parece totalmente justificada. A façanha fotográfica chama a atenção, sim, e contou com um orçamento generoso dispensado a um diretor com prestígio na indústria. Mas também foi possível graças a um impressionante exercício de concisão do roteiro (sem arestas) e interpretações precisas dos relativamente desconhecidos protagonistas, Dean-Charles Chapman e George MacKay, e do estrelado elenco de apoio.
A história é simples: dois soldados ingleses são encarregados da missão de alertar uma tropa de aliados sobre uma armadilha preparada pelo inimigo e que pode custar a vida de 1600 homens, entre eles o irmão de um dos informantes. Eles precisam atravessar uma perigosa “terra de ninguém” a tempo de impedir o início da batalha fatídica.
A câmera segue no encalço dos protagonistas e nos coloca em meio ao caos confinado das trincheiras, enquanto vemos os protagonistas interagirem entre si e com outros soldados e oficiais. Esses personagens secundários vão ficando para atrás na narrativa, que avança com obstinação. Lembra a estrutura imersiva de um vídeo game em terceira pessoa, mas sem novas chances para refazer a missão.
O filme exala morte na medida em que os protagonistas atravessam descampados cheios de armadilhas. Heroísmo e patriotismo, sentimentos comumente evocados no gênero, passam longe enquanto vemos os soldados rastejarem junto a cadáveres de homens e animais em decomposição.
Com uma construção espacial meticulosa, o filme alterna a agorafobia (pânico do espaço aberto) da terra de ninguém e a tensão claustrofóbica de adentrar em bunkers desconhecidos, distribuindo aqui e ali elementos do cinema de terror, como o gore e até alguns jump scares. A câmera, terceiro personagem na missão, por vezes descola-se dos rapazes para nos revelar uma trilha de horror e destruição até onde a vista alcança.
A ilusão do plano sequência incrementa a urgência e faz do relógio um inimigo a mais, já que o tempo fílmico foi desenhado de forma a confundir-se com tempo real (à exceção de uma elipse clara na história). Ao contrário de épicos como “O Resgate do Soldado Ryan” (Steven Spielberg, 1998), a guerra é experimentada de um ponto de vista subjetivo, sendo reduzida às suas unidades mais básicas: no caso, dois jovens cabos, cuja missão é justamente impedir uma batalha, indo de encontro à lógica geral do conflito com o inimigo.
“1917” é um trabalho que faz completo sentido na filmografia de Sam Mendes, exibindo a habilidade do diretor em desenvolver, tanto dramas íntimos, como fez em “Beleza Americana” (1999) e “Foi Apenas um Sonho” (2008), quanto sequências espetaculares de ação (franquia “007”).
Dito isso, o ranço de “filme de prestígio” representante do status quo é palpável. Até a insistência do diretor para que o longa seja visto nos cinemas soa como uma alfinetada aos serviços de streaming que buscam o reconhecimento da indústria.
“1917” recebeu 10 indicações ao Oscar, juntamente com outros títulos também centrados em versões de masculinidade clássica (ainda que crepuscular): “Era uma vez em Hollywood”, de Quentin Tarantino, e “O Irlandês”, de Martin Scorsese. “Coringa” lidera entre os mais indicados, concorrendo a 11 categorias.
Entre os títulos que concorrem a melhor filme, o contraponto perfeito para a visão de Mendes seria “Adoráveis Mulheres”. Também ambientado durante a guerra (de Secessão americana, no caso), o filme de Greta Gerwig tem como foco os efeitos do conflito no ambiente doméstico.
Apesar das seis indicações, a visão inovadora de Gerwig para o clássico literário norte-americano não foi reconhecida pela Academia, que a deixou de fora da disputa de melhor direção. Ela teria feito história ao ser a primeira mulher a ser indicada duas vezes na categoria. A construção dos espaços afetivos de “Adoráveis Mulheres”, bem como a coreografia minuciosa das cenas envolvendo o elenco em conjunto, é tão impressionante tanto quanto a jornada estoica da câmera de Sam Mendes.
– Anna Beatriz Lisbôa (@annalisboa) é jornalista cultural e crítica de cinema de Brasília, atualmente morando em Belo Horizonte. Mestre em Estudos de Cinema e Audiovisual Contemporâneos pela Universitat Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha).