Cinema: “Retrato de uma Jovem em Chamas”, de Céline Sciamma

Texto por Renan Guerra

Quarto longa-metragem da cineasta francesa Céline Sciamma, “Portrait de la jeune fille en feu” (no original, 2019) acompanha a delicada descoberta do amor de duas mulheres no século XVIII. Marianne (Noémie Merlant) é contratada para pintar a jovem Héloïse (Adèle Haenel) em um retrato que irá definir o seu futuro casamento com um jovem milanês rico. Em um casarão afastado do mundo, à beira mar, as duas mulheres acabam por descobrir uma relação inesperada e única.

Adèle Haenel e Noémie Merlant tem uma química e uma força explosivas na tela. Luana Bajrami, a empregada da casa e a terceira ponta desse encontro de mulheres, é cativante em seu olhar, em sua singularidade e em sua sinceridade – a atriz tem apenas 18 anos e encara cenas fortes com uma maturidade e uma perspicácia angustiantes. Valeria Golino (atriz greco-italiana do excelente “Respiro” e que já teve passagens por Hollywood, em filmes como “Rain Man” e o besteirol “Top Gang”) é o contraponto e mostra aqui uma sisudez complexa, em uma personagem tão interessante quanto as protagonistas: uma mãe solitária em uma casarão a beira de grandes falésias que busca um bom casamento para a filha e assim um retorno para qualquer lugar distante dali. Há uma cena pontual de Valeria com Noémie que é de uma delicadeza, de uma simplicidade e de tanta complexidade que encanta e nos faz sorrir de forma única.

O que se conclui logo de cara é que o filme de Sciamma é essencialmente um filme de amor. Em seu cerne ele é uma história de amor impossível, porém como uma boa pintura clássica, ele vai nos revelando olhares sobre diferentes questões: a existência feminina, a existência lésbica, a amizade, a arte, o belo, entre muitos outros subtextos. “Retrato de uma Jovem em Chamas” é, em grande parte, sobre existências negadas, sobre subjetividades apagadas, sobre amores sufocados. E aí as duas questões se entrelaçam: ser mulher e ser lésbica.

Para além da história de amor lésbico, há no filme uma representação muito bem estabelecida sobre a amizade feminina. Muitas vezes tenta se repetir e reforçar uma máxima tosca de que amizades entre mulheres são difíceis, que há rivalidades e outras bobagens, e o filme de Sciamma busca, de forma natural, filmar a construção dessas amizades e dessas relações para além de qualquer clichê. Aqui as mulheres se reúnem em torno da fogueira, conversam, fazem seus chás, jantam juntas, se ajudam e fazem coisas banais de qualquer amizade.

Por essas bandas do Brasil até surgiu uma discussão (quase anacrônica para 2020) sobre a perspectiva de muitos homens heterossexuais não gostarem do filme. A bola foi lançada por Marina Person em texto na Folha de São Paulo – a discussão contrapunha um texto pra lá de preguiçoso de outro colunista do próprio jornal. Enfim, é possível sim que mulheres e pessoas LGBT se identifiquem de forma mais íntima com o filme, já que ele é contado por uma perspectiva a margem, de quem constrói as suas relações a sua maneira, apesar das conjunturas, apesar das limitações, por outro lado, ele é uma história extremamente delicada e verdadeira e qualquer pessoa pode se identificar ou não com isso, bem distante desse binômio homem-mulher. Ainda assim, no agregador Metacritic, o filme somava 29 resenhas, todas positivas, sendo que 21 delas haviam sido escritas por homens (o que, de certa forma, isola o colunista preguiçoso brasileiro).

Discussões ultrapassadas à parte, o que fica claro é que Sciamma tem uma clareza, uma lucidez em abordar tudo com tanta veracidade, com tanta sinceridade em cada take. “Retrato de uma Jovem em Chamas” não abdica em nenhum momento de sua estética, de um estilismo gráfico, de uma busca pela perfeição e pelo belo e, apesar disso, mantém-se humano e tocante. O som do filme, por exemplo, é um espetáculo: quase não há música e o som ambiente é basicamente composto pelas ondas do mar e pelos estalos das lareiras dentro do casarão.

A criação sonora é tão simples e tão eficaz que nos transporta para aquele espaço, é como se ouvíssemos a respiração de cada uma das personagens e como se a qualquer momento fosse a nossa vez de conferir se a lareira precisará de mais lenha. As marés, por exemplo, nunca se tornam um ruído em cena, pelo contrário, elas compõem uma ambiência complexa: o ir e vir das ondas simboliza de forma muito forte as tensões do proibido, do quase ultrapassar barreiras. Para além dos silêncios, a música surge em três momentos bem pontuais, de formas distintas e muito fortes no que diz respeito ao impacto que a música e a arte nos causam. É muito belo e forte como a diretora capta em sua história o impacto da arte sobre quem a recebe. A ópera, os quadros e a poesia são forças de encanto e transformação na história.

“Retrato de uma Jovem em Chamas” é, talvez, uma espécie de carta de amor para essas coisas que nos encantam: o outro, as artes, as pessoas, a passagem de tempo. O filme, curiosamente, não foi o escolhido da França para o Oscar, já que o país optou por “Os Miseráveis”, de Ladj Ly – que figura agora entre os cinco concorrentes finais da categoria de Filmes Estrangeiro da Academia. De todo modo, o filme de Sciamma angariou indicações em prêmios como o Independent Spirit Awards, Critics’ Choice Awards e o Globo de Ouro, além de ter ganho a Palma Queer no último Festival de Cannes – aqui no Brasil, o filme saiu como vencedor do último Festival MixBrasil.

No final das contas, é curioso como o cinema é recheado de filmes de amor, desde comédias românticas até dramas amargurados, mas são raras às vezes em se atinge esse ápice de compreender o amor e sua tensão com tamanha destreza, com tanta maestria como Sciamma o faz aqui. O que fica é que “Retrato de uma Jovem em Chamas” é grandioso, é complexo e é, sobretudo, belo. É o cinema em seu ápice!

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.

One thought on “Cinema: “Retrato de uma Jovem em Chamas”, de Céline Sciamma

  1. Renan, fiquei muito incomodado com a generalização feita pela Marina Person. A questão foi colocada num grupo do qual participo, de autores. Pensei em argumentar, mas sabia que a ala feminina cairia em cima sem dó; teu texto me satisfez justamente por isso, lembrar que esse reducionismo é complicado.

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