Em Salvador: Luiza Brina, Julia Branco, Aíla e Livia Nery mostram a força das mulheres

 Texto, fotos e vídeo por Nelson Oliveira

Cada vez mais a Bahia e sua capital, Salvador, têm sido destinos frequentes de artistas de outras partes do país durante o verão. Mesmo aqueles e aquelas que chegam ao Estado para passar férias na Chapada Diamantina ou nas praias do baixo sul acabam encontrando agenda para dar vazão à troca de experiências que o atual e fervilhante cenário cultural baiano tem proporcionado. No último final de semana, nos dias 10 e 11 de janeiro, foi o que ocorreu com as mineiras Luiza Brina e Julia Branco, a paraense Aíla e a baiana Livia Nery, que saiu de São Paulo para visitar Salvador e trouxe a tiracolo o paulistano Curumin.

Um dos pontos mais célebres para trocas de experiências culturais em Salvador é o bairro do Rio Vermelho, conhecido por sua noite diversificada, com bares e casas dedicados a diferentes gêneros musicais. Um dos mais interessantes e longevos deles é o Lalá Multiespaço, que há sete anos combina galeria de arte, restaurante e salas para shows em seus quatro andares localizados de frente para o mar. Na sexta, o Lalá recebeu Luiza Brina, Julia Branco e Aíla, que fizeram apresentações de cerca de 40 minutos cada.

Luiza Brina

A primeira a entrar em cena foi Luiza Brina, que levava a Salvador uma versão reduzida do show do ótimo álbum “Tenho Saudade Mas Já Passou” (2019), escolhido como um dos 50 melhores de 2019 pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, a APCA. Se o seu trabalho de estúdio conta com diversas parcerias (Fernanda Takai, Tuyo e César Lacerda, diretor artístico do disco), Brina se apresentou apenas com sua voz e seu violão. No entanto, o modelo compacto combinou perfeitamente com a intimidade caseira do Lalá, que fornece esteiras e almofadas para que o público possa se acomodar.

Nesse ambiente de show entre amigos, a multi-instrumentista acabou levando para toda a apresentação a sensibilidade e delicadeza já mostrada em sua versão de “Queremos Saber”, canção de Gilberto Gil que regravou em formato acústico, tal qual a original, em seu último álbum. Num repertório que incluiu “De Cara”, “Estrela Cega da Turquia” e “Oração 11” como destaques, a mineira trabalhou de forma preciosa os volumes de seu instrumento e de sua voz cristalina, com belos agudos e sílabas minuciosamente pronunciadas – algo comum às cantoras de seu estado, como Julia Branco. Julia, inclusive, participou do show em “Quero Cantar”, composição criada em parceria com Luiza.

Julia Branco e Luiza Brina

Luiza Brina continuou no palco para a apresentação seguinte, já que ela também tocaria violão, junto com o baiano Dandê, na banda de Julia Branco, cantora de passagem pela banda Todos os Caetanos do Mundo. A parceria das duas mineiras começou quando Brina arranjou, ao lado do produtor Chico Neves (“Lado B Lado A”, do Rappa, “O Dia em que Faremos Contato”, do Lenine, “Maquinarama”, do Skank, “Hey Na Na”, dos Paralamas, e “Bloco do Eu Sozinho”, do Los Hermanos) as canções do excelente “Soltar os Cavalos”, álbum visual lançado em 2018.

Ainda que não tenha contado com banda completa, programações e toda a estrutura de iluminação que baseia os shows da turnê do seu primeiro disco solo, Julia não se acanhou. Pelo contrário, a cantora, que também é atriz, cresceu. A sala do casarão se tornou o espaço em que ela pode dividir, face a face, os questionamentos íntimos, infinitivamente pessoais, de suas próprias composições e soltar a sua bela voz – que é o principal instrumento e encanto de seu disco – com as tais sílabas minuciosamente pronunciadas. Afinal, como ela mesma menciona em “Eu Toco”, “Não é só canto / É: Eu canto”.

Dandê, Julia Branco e Luiza Brina

Julia Branco capturou a plateia e a levou para um mergulho nos delírios surreais de “Peixes” e para navegar nas paisagens sonoras de “Quero Ser Livre” e “Sou Forte”. O tão poderoso quanto delicado lirismo dos cavalos que a mineira solta com suas poesias musicadas faz com que manifestos, como “Eu Sou Mulher”, “Presta Atenção”, “Meu Corpo” e “30 anos” – esta última, uma parceria com Letrux –, sejam como flechas recebidas de peito aberto, sobretudo pelo público feminino, que se sente representado pelas composições. A sensação de acolhimento – tão necessária em tempos de lutas e resistência constantes – proporcionada pelo repertório do show acabou ficando mais forte por conta do tamanho do espaço, que concentrou bem as emoções e manteve o público em plena sintonia com a cantora.

O conjunto de sensações que Julia Branco proporcionou também arrebatou Caetano Veloso, presença ilustre na plateia. No intervalo entre o segundo e o terceiro show, o veterano da música popular brasileira fez questão de elogiar pessoalmente as apresentações de Julia Branco e Luiza Brina – pouco depois, deixou o Lalá à francesa juntamente com o cineasta Guel Arraes. Caetano foi homenageado por Julia naquela noite com uma versão de “Reconvexo”, que cantou acompanhada de Jadsa Castro. As duas gravaram a faixa neste mês de janeiro, ao lado da baiana Caru e da potiguar Juliana Linhares (Pietà) e devem lançá-la nas plataformas digitais nas próximas semanas.

Aíla, Julia Branco e Luiza Brina

Depois de dois shows feitos para o público assistir sentado, a produção do Lalá mudou a configuração da sala: as esteiras e almofadas saíram de cena porque a terra iria tremer com a paraense Aíla, que já fizera uma participação no espetáculo de Julia Branco. Curiosamente, em pleno verão de Salvador, houve certo esvaziamento do espaço para um momento mais dançante, o que indica que a maior parte do público foi até a casa com a intenção de ver Julia e Luiza Brina.

Mesmo com menos pessoas no salão do que anteriormente, Aíla fez um show animado, puxado por hits como “Lesbigay” e “Proposta Indecente”. A inédita formação de sua banda foi uma surpresa agradável: acompanhada pelos baianos João Paulo Deogracias – coautor de “Treme Terra”, lançada no segundo semestre de 2019 – nos beats e Aline Falcão nos teclados e sintetizadores, a paraense pode estar encontrando o caminho mais interessante para seu terceiro disco, que produz nesse momento. Teremos coisa boa vindo por aí, misturando tecnobrega a batidas da música popular periférica baiana, como o arrocha e o pagodão.

Aíla

Aline Falcão e João Deogracias também integram – junto ao baterista Bruno Marques – a banda de Livia Nery, que encerrou o fim de semana comandado pela força das mulheres compositoras no Commons Studio Bar, uma das mais tradicionais casas de show de Salvador. No sábado, Livia mostrou potência, um domínio de palco em crescente e, mais habituada ao “inferninho” da Commons do que ao Teatro de Arena do Sesc Pelourinho, fez um show mais vigoroso do que o último que havia feito na cidade (em novembro, na 5ª edição do Festival Radioca).

Russo Passapusso, Lívia Nery e Curumin

Livia Nery lotou a casa, que tem capacidade para 300 pessoas. Na noite quente de sábado, tirou o público para dançar com “Instinto”, “Beco do Sossego”, “Macaca” e “Vinte Léguas”, além de “Estranha Melodia”, faixa-título de seu elogiado álbum de debute, produzido por Curumin e lançado pelo selo Máquina de Louco, tocado pelos integrantes do BaianaSystem.

Em seu primeiro show no ano, Livia contou convidou o produtor do disco e Russo Passapusso, um dos cabeças do Baiana, para subirem ao palco. De seu repertório, Curumin trouxe “Bora Passear”, “Boca de Groselha” e “Afoxoque”, na qual dividiu os vocais com Passapusso. A dupla ainda fez um medley com “Sonar”, faixa de “O Futuro Não Demora”, do BaianaSystem (outro dos grandes discos do ano).

Mas, sem dúvidas, o destaque da noite foi mesmo Livia Nery. Ensandecida por suas músicas e sua simpatia, a plateia pediu bis de forma incessante e se derreteu com “Vulcanidades”, “Ave Sal” e, novamente, “Estranha Melodia”. No fim do show, Livia lamentou por ter um repertório ainda curto, já que tem apenas um disco gravado. Mas, ao mesmo tempo, se despediu com a certeza de que há um público consistente e apaixonado à espera de mais um grande trabalho.

– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE. O vídeo de “Afoxoque” é de Carine San

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