Teatro: Espetáculo “Pretoperitamar – O caminho que vai dar aqui” celebra de forma distinta o legado de Itamar Assumpção

Texto por Renan Guerra

2019 marca os 70 anos de Itamar Assumpção, figura fundamental da Vanguarda Paulista e compositor único em sua forma de desenhar e desvendar a vida. Essa data foi marcada pelo projeto Itamar 70, que durante o ano relançou discos, levou um palco especial à Virada Cultural, prevê ainda para 2020 um Museu Virtual e foi celebrado recentemente com o Troféu APCA de Projeto Especial do Ano, na categoria Música Popular. O espetáculo “Pretoperitamar – O caminho que vai dar aqui” é uma espécie de coroamento dessas comemorações que buscam mais do que resgatar a obra do artista, mas sim ressiginificá-la e desdobrá-la em novas obras.

De todo modo, não leve o caráter de resgate como um ponto de partida da peça, pois “Pretoperitamar” não é um espetáculo para iniciantes no universo de Beleléu. É importante saber um beabá: de onde ele veio, o que fez, para onde foi, o que sonhou e, essencialmente, uma base de seus princípios enquanto artista. Quem cai de paraquedas nesse mundo pode se assustar. O didático documentário “Daquele Instante em Diante”, de 2011 (assista na integra aqui no Scream & Yell), é uma boa aula introdutória para essa peça. O excelente material gráfico distribuído antes do espetáculo é outro bom guia para essa jornada.

É preciso ter claro que nada no espetáculo é simples, tudo aqui aparece em símbolos: as orquídeas (a banda de apoio de Itamar e as plantas em si), a família, as cidades, as inspirações e as aspirações. Tudo é símbolo e é fácil perder-se. Essa construção é o charme e também o pecado do espetáculo: quando nos pega, faz o mergulho completo, porém quando nos repele, nos afasta ainda mais do que é apresentado no texto. A própria formatação do espetáculo é complexa: misto de show, peça de teatro, ópera pop ou outro subgênero ao gosto do espectador, “Pretoperitamar” mescla cenas e simbologias que nem sempre obedecem uma narrativa lógica, mas sim muito mais subjetiva. Talvez falte polidez, talvez o texto precisasse de cortes, de edições e até mesmo de concessões. E talvez se fosse assim não seria tão Itamar Assumpção: obtuso, complexo, inesperado.

As construções cênicas são sábias, criando um diálogo com as duas plateias do teatro do Sesc Pompéia (quem conhece, sabe), que é um objeto cênico por si – e aqui inclui-se também o simbolismo desse palco, tão fundamental para a Vanguarda Paulista e para a carreira de Itamar. Além disso, o elenco diverso consegue segurar as complexidades do espetáculo: Fabricio Boliviera, Tulipa Ruiz, Thalma de Freitas, Denise Assunção e Claudia Missura são destaques num projeto que ainda inclui nomes como Grace Passô (direção e dramaturgia), Ana Maria Gonçalves (dramaturgia), Curumin (programação musical), Saulo Duarte (guitarra) e Anelis Assumpção (coordenação geral, concepção e pesquisa).

Entre os personagens, a documentarista interpretada por Claudia Missura é uma força, que dá a carga teatral que em alguns momentos quase se perde nos números musicais. Já Frabicio Boliviera fica em uma corda bamba, pois ele tem a força e a gana, mas falta alguma coisa para a sua completa fusão ao universo de Assumpção – algo que vimos que ele era capaz na excelente cinebiografia “Simonal” (Leonardo Domingues, 2019). Mesmo assim, os joguetes entre Boliviera, as cantoras e o dançarino Allyson Amaral funcionam de forma cativante. No desenrolar da peça, talvez o elo mais fraco seja o personagem de Negro Leo – chamado simbolicamente de “aquele que recebe” –, que nem sempre funciona e em determinados momentos parece sobrar no palco, inclusive em seus momentos musicais.

Entre erros e acertos, “Pretoperitamar” acaba pendendo mais para o espectro positivo, pois revisita a figura de Itamar ao seu modo, de maneira não óbvia e que foge do lugar comum; o que deixaria o artista orgulhoso. É em sua sanha antropofágica que o espetáculo melhor se sobressai: é destrinchando a obra e a vida de Itamar Assumpção que se constroem novas leituras de seu legado e de sua importância. Por isso tudo, esse é um espetáculo que deve ser visto e debatido em suas complexidades; dando atenção aos seus símbolos e se abrindo a sua comunicação.

A peça fica em cartaz até 19 de janeiro, no Sesc Pompeia, em São Paulo, e vale a atenção de quem busca todos os sentidos, de quem faz fazer sentido!

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.

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