Bailão de Àttooxxá e Rincon Sapiência vocalizam temas políticos através do groove

 Texto e fotos por Nelson Oliveira

A noção de que o corpo humano é uma ferramenta de uso político já é, há algum tempo, trabalhada por áreas do conhecimento como sociologia, dança, artes cênicas ou performáticas. Fora da academia, muitas vezes sem acesso a tal arcabouço teórico, há quem coloque isso em prática. No sábado 16 de novembro, a baiana Àttooxxá e o paulistano Rincon Sapiência se apropriaram desses conceitos para levantarem e empoderarem o público na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador.

O “Bailaum Black Bang” abriu a segunda edição do Concha Negra, projeto que visa garantir o lugar da música afrobaiana na programação mensal do TCA. Até meados de fevereiro, o espaço receberá gêneros como batuque, afoxé, samba-reggae, reggae, ijexá, axé e jazz, numa programação que inclui clássicos como Ilê Aiyê, Olodum, Margareth Menezes e Lazzo Matumbi e integrantes da estrondosa nova cena local, como Baco Exu do Blues, Luedji Luna, Larissa Luz e Afrocidade. Em seu princípio, a iniciativa deu oportunidade à bass culture, ao rap e a atualizações de ritmos periféricos extremamente populares em Salvador, como o pagodão e o arrocha.

Por volta das 20 horas, o Àttooxxá subiu ao palco de uma Concha Acústica que ainda estava distante de sua lotação de 5 mil espectadores e viria a ter cerca de metade de seus degraus coloridos ocupados. O público, contudo, não se espalhou pela célebre semiarena soteropolitana e ficou concentrado nas áreas centrais e mais próximas da banda. Os objetivos? Sentir os graves mais de perto, fazer coreografias e groovar até o último segundo da noite.

Afinal, desde que foi formado e chegou até a atual composição, entre 2015 e 2016, o grupo formado por Rafa Dias (dj e produção musical), Oz (vocal e bateria), Raoni Knalha (vocal) e Chibatinha (guitarra) tem como principal virtude fazer o seu público dançar, sem se importar com a busca por grandes reflexões através das letras. Seus versos costumam falar de amor, flertes ou, como em parte significativa da produção do axé e do pagode baiano, remetem a coreografias. Contudo, há uma dimensão política no som dos caras: são negros cantando sua autoestima principalmente para negros e obtendo destaque na cena local, disputando espaço entre o independente e o mainstream.

Além disso, o Àttooxxá conquistou um grande público feminino ao longo dos anos – na Concha, a presença de mulheres também era majoritária. Com o tempo, elas perceberam nas apresentações do grupo que podiam dançar com liberdade, sem importunações machistas, qualquer tipo de reprovação ou hiperssexualização. O uso do corpo como política, sobretudo para as mulheres negras, portanto. Um espaço ideal para Rincon Sapiência, o Manicongo, que faz “luta e bundas balançarem”.

Logo depois de o Àttooxxá começar com “Black Bang”, Rincon entrou no palco sem ser anunciado, surpreendendo a plateia. E não saiu mais. Carismático, arriscou até passos de quebradeira em diversos momentos do show, ao lado de Raoni e Oz ou do grupo de dança Ballet Vip, que foi chamado para participar da coreografia de “Faz a Egypsia (Are Baba)”. Os baianos pretendem trabalhar esta canção durante o ciclo de festas do verão e, claro, no carnaval.

Além da faixa, lançada no início de outubro, o Àttooxxá também tocou outras canções já célebres de seu repertório, como “Assim Dá Não”, “Caixa Postal”, “Desce” e “Protetor Solar”. Claro, também agitou a plateia com “Elas Gostam (Popa da Bunda)”, gravada com Psirico e vencedora do Troféu Bahia Folia de 2018. Sem qualquer pudor com a mistura de ritmos, como acontece no carnaval de Salvador, a banda também promoveu versões de hits do pagode local e um medley de canções de kuduro, como “Kalemba” e “Hangover”, do Buraka Som Sistema, e “Procura o Brinco”, de Titica.

O convidado de honra do bailão teve tratamento especial. Os versos de Rincon Sapiência ganharam arranjos específicos para a apresentação: mais pesados e percussivos, tiveram um groove digno da quebradeira local. Por isso, “Mete Dança” e sua “sequência de teile e zaga”, rap-pagodão que Manicongo compôs com referências ao ritmo mais popular das periferias baianas, foi o maior destaque do show.

“Só Vem”, gravada em colaboração com o grupo baiano para o álbum “Luvbox” (2018), “Ponta de Lança” e “Meu Bloco” – as duas últimas, do repertório de Rincon – também foram cantadas a plenos pulmões pela plateia. Ainda houve tempo para uma versão de “Melanina”, canção de Drik Barbosa, parceira tanto de Manicongo quanto de Àttooxxá. Na última semana, com participação da trupe nordestina, a rapper paulistana lançou a love song “Tentação”.

Ao fim da apresentação, que durou cerca de 1h40, não havia sequer um ser que não estivesse banhado por suor. Mas o público, sedento por mais, cantou que não ia embora, ao ritmo de “Seven Nation Army”. A banda entrou no clima e até arriscou acordes do clássico dos White Stripes antes do bis, mas foi só: via de regra, por não ter cobertura e ser vizinha a prédios residenciais, a Concha Acústica precisa estar esvaziada antes das 22 horas. Assim, ficou a lembrança de mais uma passagem cheia de carisma de Rincon por Salvador e a promessa de que o verão será novamente agitado pela batida pesada do Àttooxxá.

– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE.

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