por Nelson Oliveira
Quando se fala de rap feito em Salvador, pode vir à cabeça dos brasileiros atentos ao gênero o nome de Baco Exu do Blues, que despontou a partir da faixa “Sulicídio”, gravada com o recifense Diomedes Chinaski e lançada no álbum “Bacanal”, em 2016. O Radioca desse ano não teve rappers baianos, mas eles brilharam na semana passada em shows da Virada Sustentável.
Em Salvador, o festival de sustentabilidade aconteceu pelo terceiro ano e marcou uma crescente. Em 2016, teve programação bem reduzida, com destaque para espetáculos de Margareth Menezes (BA) e da orquestra Neojibá (BA); não ocorreu em 2017; e, em 2018, teve formato mais interessante, com atrações como Tássia Reis (SP), Larissa Luz (BA), OQuadro (BA) e ÀTTØØXXÁ (BA). Na última semana, a Virada Sustentável realizou mais de 300 atividades socioculturais e ambientais em 50 espaços espalhados pela cidade, sempre com entrada gratuita.
No quesito música, os eventos relacionados ao rap e à cultura hip-hop eram abundantes e chamavam mais a atenção. Entre eles, a apresentação de Djonga (MG) se sobressaía em relação às demais – ao menos no papel. Na prática, o discurso foi outro. Os artistas locais do gênero roubaram a cena e mostraram que a Bahia tem uma produção riquíssima e com público fiel. E que quer o “gourmetizado” Baco muito longe dali.
No sábado, enquanto Tulipa Ruiz e João Donato encerravam a noite de Radioca, o Largo Pedro Arcanjo, no Pelourinho, a menos de 2 km da Chácara Baluarte, recebia a fúria do Rap Nova Era, com participação de Vandal, DaGanja e Galf AC – em suma, a nata do coletivo Ugangue. E muito, mas muito bate-cabeça, rodinhas, moshs, cerveja e água voando para todos os lados, praça lotada (cerca de 1500 presentes) e tudo o que uma verdadeira celebração do gangsta prometia.
Formado por Dj Kbça, Moreno e Ravi, o Nova Era lançava seu terceiro trabalho, “Renovação”, que sucedeu a mixtape “Não Tente Contar Com a Sorte” (2011) e o disco “Brutality” (2015). Oriundo da comunidade anteriormente conhecida como Cidade de Plástico (ou CDP), rebatizada como Guerreira Zeferina após obras da prefeitura, o trio canta a realidade do Subúrbio Ferroviário de Salvador em faixas como “Sem Refrão” e “Vai Cair”, que provocou catarses no show, com oposição entre as figuras de Lula e Bolsonaro – o primeiro, exaltado; o segundo, xingado pelos MCs.
Vandal entrou em cena para cantar em “Vida Longa”, track de que participa em “Renovação” e praticamente tomou o show para si. Se alguém que acompanhava a carreira do rapper deixou Salvador entre 2011 e 2012 e voltou agora para a Bahia nem poderia imaginar que ele é aquela mesma pessoa. Ou seja, o cara que pulava de palco em palco para soltar os mesmos versos (“Vandal é foda ou não é? É sim ou não é? É de verdade ou não é? É sim ou não é?”) e sempre colava nos shows do BaianaSystem para fazer um feat durante o medley de “Terapia” e “Jah Jah Revolta”.
De verdade, Vandal sempre foi mesmo. Agora, o sucesso também é real: o tempo passa e é a galera do rap soteropolitano que fica emocionada com a crescente na carreira do rapper que cresceu na Cidade Nova. Desde que lançou a mixtape “TIPOLAZVEGAZH”, no finalzinho de 2015, é sucesso atrás de sucesso e idolatria na quebrada – durante o show, a galera colava na beira do palco para cumprimentá-lo e trocar uma ideia rápida durante os intervalos.
Faixas como “Novah Salvadorh” estão na boca e nos quadris dos amantes do estilo na capital. “Balah Ih Fogoh”, então, é um hino cantado a plenos pulmões. E assim foi na Pedro Arcanjo, num esquema sem qualquer divisão real entre palanque e chão: muita gente guardou mochilas no palco e volta e meia os MCs recebiam pertences caídos em meio ao público e os devolviam aos donos. Para completar, alguns fãs com deficiência física compareceram ao Pelourinho (que não é o local mais acessível para cadeirantes) e assistiram ao showzaço lado a lado com seus ídolos.
Após essa abertura catártica do fim de semana do rap no Centro Histórico, o domingo tinha como destaque o já citado Djonga, no Largo do Pelourinho, e também o show do novíssimo Edgar (SP), num palco montado no Largo Quincas Berro D’Água. A abertura para o paulista ficou a cargo de Underismo (BA), coletivo com oito jovens integrantes de Salvador.
Assim como Vandal, eles roubaram a cena. As emoções do público variavam entre a idolatria e uma enorme proximidade com os quatro MCs. Como se fossem amigos que curtissem muito a farra e o flow que a turma estava levando ali em cima – e às vezes embaixo. Incrementando as rodinhas e o bate-cabeça, um cara chamou a atenção do grupo quando encontrou espaço para dar saltos mortais durante o pogo.
Nesse ritmo, depois de levar a plateia à loucura com “Sodikeke” e, principalmente, o single “Pretx Chave”, sobrou pouco para Edgar. A psicodelia e as mensagens proféticas de “Ultrassom” (2018) exigem certa dedicação para serem compreendidas e geram reflexões que o público não estava interessado em ter naquele fim de domingo. Para os presentes, a noite era de vísceras, coração acelerado e de sangue quente, não de elocubrações.
O contexto já era negativo e, para piorar a situação do artista, seu conceito de show em nada colaborava. Edgar entra num palco pouquíssimo iluminado (salvo as projeções), coberto por um disfarce e uma máscara feitos de trapos e materiais recicláveis. Além disso, seu flow e timbre de voz pouquíssimo comerciais dentro do rap não empolgaram os fãs do Underismo. A primeira impressão com o paulista é, lógica e desejadamente, de estranhamento. Contudo, muitos não toparam pagar para ver e se dirigiram para a concentração do show de Djonga. Quem ficou viu uma performance interessante em “Felizes Eram os Golfinhos”, “Liquida” e “Go Pro”.
No Largo do Pelourinho, a espera para a entrada de Djonga era grande. A organização do festival esperou outros eventos terminarem para liberarem a entrada do mineiro no grande palco montado no topo da ladeira. Até isso acontecer, um dj set voltado para o rap baiano entrou em ação – e Vandal novamente se destacou na seleção das faixas e na boca do povo.
Por volta de 21h30, com 40 minutos de atraso, Djonga entrou em cena com “Hat-Trick” e o público de Salvador abriu alas para o rei. O show de “Ladrão” estava bom, apesar de alguns problemas no som, e o rapper de Belo Horizonte dava o seu melhor. Contudo, era muito difícil apreciar o que ocorria no largo.
Ao contrário de outros eventos da Virada Sustentável, a Defesa Civil não apareceu para controlar a lotação do espaço. Com uma concentração acima do aceitável no topo da praça, só quem estava em locais específicos do largo pode curtir o aguardado headliner. Para piorar, o empurra-empurra favoreceu furtos e algumas confusões, o que passou longe de acontecer nos outros eventos do festival.
Apesar da falha logística da produção do evento, que não contou com a popularidade de Djonga, a Virada Sustentável terminou com a ratificação do rap como um dos grandes fenômenos musicais de massa em Salvador, lado a lado com o pagode. Muitos identificam o pagodão como expressão do hip hop baiano e os artistas da periferia local sabem bem disso, por curtirem Igor Kannário ou Fantasmão e também por acrescentarem elementos do ritmo em suas tracks. Um joga o outro para cima e Salcity ferve.
– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE. O crédito das fotos coloridas são Virada Sustentável / Divulgação. As fotos P&B são de Nelson Oliveira