Em sua 5ª edição, Festival Radioca amplia o alcance e se supera

 por Nelson Oliveira

Consolidado como um dos principais festivais independentes da Bahia e do Nordeste, o Radioca ganhou uma expansão considerável. Em cinco dias, o Teatro Castro Alves, a Arena do Teatro Sesc-Senac Pelourinho e a Chácara Baluarte receberam um total de 6 mil pessoas para assistir a 16 shows – de veteranos, como Lazzo Matumbi (BA) e João Donato (AC), e bandas que estão há pouco tempo na estrada, como Tuyo (PR) e Dônica (RJ).

Foi a primeira vez que o festival teve mais do que três dias de duração e caráter itinerante. Vale destacar que, mesmo concorrendo com um megaevento gratuito no final de semana, o Radioca teve grande público nesses dias, o que mostra a força adquirida pelo festival e o sucesso de sua produção.

Com a curadoria do jornalista e DJ Luciano Matos, dos músicos Ronei Jorge e Robertinho Barreto (BaianaSystem), e da produtora Carol Morena, que também assina a coordenação geral do festival, o Radioca levou a Salvador cinco artistas que nunca haviam tocado na cidade. Um deles, Amaro Freitas (PE), foi o responsável por abrir os trabalhos, numa quarta-feira com programação introspectiva e sofisticada.

Amaro Freitas / Foto: Rafael Passos

O virtuoso pianista recifense subiu ao palco da Sala Principal do Teatro Castro Alves com seu trio, ao lado de Hugo Medeiros (bateria) e Jean Elton (baixo), e apresentou o elogiado álbum “Rasif” (2018), com destaque para as faixas “Trupé” e “Dona Eni”. Em seu trabalho autoral, Amaro foge do óbvio ao combinar jazz com ritmos nordestinos, como o maracatu, o baião e o frevo, e no palco não deixa por menos. O pernambucano quebrou o protocolo ao, algumas vezes, deixar o piano de lado para reger o público acomodado nas poltronas da casa.

Tiganá Santana / Foto: Rafael Passos

O segundo a se apresentar na noite de estreia foi o baiano Tiganá Santana, que fazia o primeiro show da turnê do álbum “Vida-códigos” (2019), lançado pelo selo sueco ajabu! e com canções em português, kikongo, espanhol e francês. Como sempre, o espetáculo do artista se sobressaiu pela qualidade técnica de execução: a grave e afinadíssima voz de Tiganá cresceu com a sua banda, formada por Sebastian Notini (percussão), Aline Falcão (piano, acordeão e voz), Leonardo Mendes (violão e guitarra) e Ldson Galter (baixo).

Tim Bernardes / Foto: Rafael Passos

Encerrando o primeiro dia de Radioca, Tim Bernardes apresentou “Recomeçar” (2017), sua estreia em projeto solo. O paulistano, que já tocara em Salvador como vocalista d’O Terno, ainda não havia levado a turnê do seu disco para a capital baiana e era a atração mais aguardada daquela quarta. Tim subiu ao palco sozinho e não decepcionou os fãs: tocou as belas “Tanto Faz”, “As Histórias do Cinema”, “Recomeçar” e repetiu o já corriqueiro medley de “Changes”, do Black Sabbath, e “Paralelas”, de Belchior. No bis, encantou o público mais uma vez com “Volta”.

Foto: Rafael Passos

Provando que Salvador não é só verão e carnaval, o Radioca apostou no clima intimista também em sua segunda noite, que acontecia na Arena do Sesc-Senac, no Pelourinho. A quinta-feira teve a leveza de Livia Nery (BA) e Luiza Lian (SP), que apresentavam, respectivamente, os shows dos álbuns “Estranha Melodia” (2019) e “Azul Moderno” (2018).

Livia Nery / Foto: Nelson Oliveira

Primeira a subir ao palco, Livia Nery é uma veterana de Radioca, embora tenha lançado seu primeiro álbum neste ano. A cantora e compositora baiana participava do festival pela segunda vez, já que integrou o line-up de 2017, pouco depois de gravar o compacto “Vulcanidades”. Se naquela ocasião a soteropolitana estreava em shows com banda, agora ela tinha a ótima companhia de João Paulo Deogracias (baixo e synth bass), Aline Falcão (de novo ela, agora nos teclados) e Bruno Marques (bateria).

Além de “Estranha Melodia”, que dá nome ao seu disco de debute e à própria “Vulcanidades”, Livia Nery fez a plateia cantar junto em “Instinto”, “Beco do Sossego”, “Sintoma de Amor”, “Macaca”, “Vinte Léguas” e numa versão de “Mel Mulher”, do Olodum. O momento mais tocante da apresentação, porém, veio com “Ave Sal”, faixa em que se destacam os falsetes e o teclado de Aline Falcão. A canção foi inspirada por mergulhos na praia do Porto da Barra e fez Livia lembrar das manchas de óleo que contaminaram o Nordeste e celebrar a dedicação dos nordestinos para “limpar a sujeira do país com as próprias mãos”.

Luiza Lian / Foto: Nelson Oliveira

Luiza Lian se apresentou na sequência para um teatro mais vazio, embora ávido pelas experiências proporcionadas pela paulistana e sua “banda visual”, que fizeram um dos melhores shows de todo o festival. No palco estavam apenas Luiza e Charles Tixier, produtor de seus dois últimos álbuns – “Oyá Tempo” (2017) e “Azul Moderno”, um dos melhores de 2018 –, mas o espetáculo contava ainda com o trabalho silencioso de Amanda Amaral (iluminação), Diogo Terra (laser) e Bianca Turner (projeção).

Com o auxílio dessa turma, Luiza tomou o teatro de assalto e ficou tão confortável em cena que chegou a deitar no palco e conversar sobre a sua relação com o mar e com os orixás, tão caros a Salvador. Canções com temática mais explicitamente afrobrasileira, como “Sou Yabá”, “Iarinhas”, “Pomba Gira do Luar” e “Oyá Tempo” foram bastante aplaudidas pelo público. Outros pontos altos na íntima e delicada apresentação da paulistana foram as catárticas “Mil Mulheres” e “Mira”.

Foto: Rafael Passos

Na sexta-feira, nada de shows no Radioca. A programação do festival teve uma roda de conversa com Livia Nery, Josyara (BA) e Tulipa Ruiz (SP), que conversaram com o público sobre seus processos de produção musical e deram palhinhas para os presentes na Arena do Sesc-Senac. No fim de semana, os espetáculos aconteceriam em dois palcos montados nos vastos quintais da Chácara Baluarte, um casarão do século XIX com vista para a Baía de Todos os Santos.

O espaço localizado no Santo Antônio Além do Carmo recebeu mais do que o evento musical. O Radioca levou stands de arte, paisagismo, impressos e moda, feira de vinil, praça de alimentação, bares, espaços de convívio e um estúdio para entrevistas ao vivo com os artistas. Uma estrutura robusta – a maior já montada pelo festival – e que funcionou muito bem, sem oferecer atrasos para os shows ou perrengues para o público presente.

Foto: Rafael Passos

Os shows de sábado e domingo foram uma verdadeira celebração guiada pela libertação do ex-presidente Lula – Mestre Anderson Miguel (PE), Tuyo, Afrocidade (BA), Tulipa Ruiz e João Donato, Abayomy (RJ), Illy (BA) e Céu (SP) felicitaram o petista, juntamente com o público. A primeira apresentação do fim de semana também teve carga política. Os jovens da Tangolo Mangos (BA) trouxeram um som com influências de lo-fi, neopsicodelia e ritmos brasileiros, como bossa nova e baião, e letras politizadas. Em “O Erro de Townshend” – quarta faixa de “Mangas a Caminho da Feira, No. 1”, que teve pós-produção feita por Rob Grant, responsável por finalizar trabalhos das bandas australianas Tame Impala e Pond –, o grupo soteropolitano utiliza falas de Jair Bolsonaro para criticar o autoritarismo.

Mestre Anderson Miguel / Foto: Nelson Oliveira

Poucos minutos depois de a sessão de rock psicodélico acabar no palco Natura Musical, o palco Devassa recebeu Mestre Anderson Miguel, em show que contou com a participação de Siba (PE), produtor de “Sonorosa” (2018), trabalho de estreia do cirandeiro. Siba cantou o hit “Bagaceira”, mas os pontos altos da apresentação (redondíssima) foram mesmo com as canções do jovem mestre – de apenas 23 anos. A nostálgica “No Hoje e Na Hora”, parceria com Jorge Du Peixe (Nação Zumbi), só não cativou mais a plateia do que o menino José: trajado com roupa típica de maracatu, ele subiu ao palco no fim do show, durante parte da faixa que dá título ao álbum de Anderson.

Tuyo / Foto: Nelson Oliveira

A noite caía e, com ela, chegava a hora de um dos shows mais aguardados do festival. A Tuyo e seu eletroacústico etéreo nem precisavam conquistar um público já ensandencido, mas a simbiose entre os presentes e a banda se intensificou por conta do carisma e dos gracejos de Lio Soares, que contrastam com as letras românticas e sofridas do trio formado por ela, sua irmã, Lay, e seu marido, Jean Machado – nos shows, eles ganham a companhia de Gianlucca Azevedo, produtor do EP “Pra Doer” (2017) e do álbum “Pra Curar” (2018). Vidrada, a plateia cantou todas as músicas ao pé da letra, com destaque para “Vidaloca”, “Conselho do Bom Senso” e “Solamento”.

Afrocidade / Foto: Nelson Oliveira

A energia continuou alta no quarto show do sábado, que também esteve entre os melhores do Radioca e, certamente, foi o mais dançante de todos. Originária de Camaçari, cidade da região metropolitana de Salvador, a Afrocidade é uma das mais empolgantes realidades da nova cena baiana, é bastante elogiada por Caetano Veloso e ainda nem lançou seu primeiro álbum – até o momento, só tem um EP e uma gravação ao vivo no Estúdio Showlivre.

Assim como o BaianaSystem, que foi uma das bandas que deu pontapé ao atual ciclo do estado, o grupo se dedica a questões sociais e à denúncia da opressão cotidiana ao povo (principalmente negro) das periferias urbanas, mas tem linguagem própria. Pagodão, arrocha, samba-reggae, fricote, hip-hop, ritmos jamaicanos e afrobeat: todos esses ritmos influenciam o trabalho da big band, que conta com dez integrantes (entre os quais, dois bailarinos) e mais três instrumentistas em apresentações ao vivo.

Afrocidade / Foto: Nelson Oliveira

Com muito vigor, a Afrocidade colocou o público para “meter dança”, abrir rodinhas e descer até o chão num show que é um verdadeiro happening e conta com performances vigorosas da percussão – comandada pelo baterista e diretor musical Eric Mazzone –, dos bailarinos Guto Cabral e Deivite Marcel e do carismático vocalista José Macedo. Nessa toada, a banda apresentou canções do álbum vindouro e hits locais, como “De Quebrada”, “Que Swingue É Esse?”, “Tá Mó Barril” e “Eu Vou No Gueto”.

João Donato e Tulipa Ruiz / Foto: Nelson Oliveira

A proposta de line-up para todos os gostos, que é uma das marcas mais fortes do Radioca, ficou em evidência novamente quando Tulipa Ruiz e João Donato sucederam a Afrocidade no principal palco do festival. A primeira noite na Chácara Baluarte terminou com um show mais intimista, mas que acabou aplaudido pelo mesmo público que caiu na quebradeira dos baianos. Com companheirismo e reverência, a cantora entrou no palco de braços dados com o pianista e bailou em volta dele durante quase toda a apresentação – que teve como pontos altos canções do repertório de cada um dos dois, como “Manjericão”, “Proporcional”, “Tafetá”, “Só Sei Dançar Com Você”, “A Rã” e “Emoriô”, que encerrou os trabalhos.

Jessica Caitano / Foto: Rafael Passos

Num domingo de tempo tão firme quanto o sábado, o Radioca recebeu seis artistas. A primeira, ainda à tarde, foi a pernambucana Jessica Caitano, que esquentou as turbinas para o restante do festival. Ao lado de Chico Correa, a rapper fez um pocket show em que trouxe o single “Faz a Linha”, embolada produzida em parceria com o dj paraibano no final de 2018.

Abayomy / Foto: Nelson Oliveira

Depois do rap-repente sertanejo de Jessica, o festival deu espaço para o afrobeat da Abayomy (RJ). O show apresentou faixas de um álbum inédito da orquestra e também clássicos de trabalhos anteriores, como “Malunguinho” e “No Shit”, que colocaram a plateia para dançar enquanto a tarde caía e a chácara ia lotando. A farra da Abayomy também contou com as participações de Jorge Dubman (baterista da Ifá) e de Saulo Duarte (PA), que balançou os presentes com o carimbó engraçadinho de “Mistério no Olhar”.

Illy / Foto: Nelson Oliveira

O terceiro show do domingo trouxe a gravidíssima Illy (BA) para o palco Natura Musical – mais acanhado do que o Devassa, mas igualmente aconchegante. Assim como ocorrera com Tuyo, no dia anterior, o público se apinhou para curtir a apresentação da baiana, que empolgou com “Fama de Fácil”, “Só Eu e Você Na Pista” (parceria com Duda Beat e Tomás Tróia), “Ela” e a rebolativa “Djanira”, que encerrou a apresentação correta em alto nível.

Donica / Foto: Nelson Oliveira

Com a lua brilhando no céu, foi a vez da Dônica subir ao palco do Radioca. Embora consistente e tecnicamente correta, a apresentação da banda carioca foi a que menos agitou a plateia nos cinco dias de festival. Os rapazes apresentaram canções em voz e violão do álbum novo, o que contribuiu para que o clima não esquentasse muito, e a intensa “Carrossel”, do álbum “Continuidade dos Parques”, se sobressaiu no show morno.

Lazzo Matumbi / Foto: Rafael Passos

No penúltimo show do festival, o clima voltou a esquentar com a voz mais inconfundível da música baiana – e se você pensou em alguém como Ivete Sangalo, errou feio. Lazzo Matumbi, veterano do reggae local e conhecido como “a voz da Bahia”, levou ao Radioca algo que a Afrocidade fez no dia anterior: a reflexão sobre o racismo no estado mais negro do país.

Aos 62 anos, Lazzo ainda não é suficientemente reconhecido fora de Salvador, mas desfila uma série de hits locais em seu repertório, como “Do Jeito Que Seu Nego Gosta”, “Me Abraça e Me Beija” e “Alegria da Cidade”, que escreveu com Jorge Portugal, ex-secretário estadual de Cultura. Fruto da mesma parceria, “14 de Maio” é uma composição recente, que dialoga tanto com o clássico que ficou conhecido na voz de Margareth Menezes quanto com “Abolição” – canção que abre a pérola “Atrás do Pôr do Sol”, lançada em 1988 e cuja reedição está sendo produzida através do Natural Musical.

Céu / Foto: Rafael Passos

Headliner do ótimo line-up do Radioca, Céu encerrou o festival com o show da turnê de “APKÁ!”, trabalho que lançou em setembro. A paulistana balançou com “Coreto”, single e hit instantâneo do novo álbum, e viu o público cantar junto canções igualmente recentes, como “Off”, “Corpocontinente”, “Pardo” e a dançante “Forçar o Verão”. Claro, também houve espaço para faixas dos discos anteriores, como “Cangote” e “Amor Pixelado”, além do bis com “A Nave Vai”.

Cinco dias para comemorar cinco anos de existência, múltiplos espaços, artistas de diferentes gêneros e a concorrência com a Virada Sustentável, que atingiu público similar e teve Djonga, no auge de sua popularidade, como grande destaque – gratuitamente e a poucos quarteirões de distância. Essas foram as provas de fogo para o Radioca, que está amadurecido e as superou com excelência. O festival, que há muito deixou de ser apenas uma extensão do programa homônimo da Educadora FM, do qual se originou, tem vida própria e já é um dos principais eventos culturais do estado e da região Nordeste. Para 2020, se programe: é um must-go no calendário musical do país.

– Nelson Oliveira é graduado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, atua como jornalista e fotógrafo, sobretudo nas áreas de esporte, cultura e comportamento. É diretor e editor-chefe da Calciopédia, site especializado em futebol italiano. Foi correspondente de Esportes para o Terra em Salvador e já frilou para Trivela e VICE.
– Rafael Passos (www.facebook.com/rafaelpassosfotografo) é fotógrafo do Festival Radioca

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