Música: “Iara Ira”, o caminho sinuoso de Duda Brack, Júlia Vargas e Juliana Linhares

Texto por Renan Guerra

Quando se fala em cantoras brasileiras, o argumento mais medíocre que há para desmerecê-las é dizer “ela é apenas intérprete”, como se houvesse qualquer demérito nisso. Alguns dos nossos maiores artistas nacionais são intérpretes – Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Gal Costa – e construir um repertório e interpretá-lo de forma sábia, única e inteligente é uma arte. Duda Brack, Júlia Vargas e Juliana Linhares sabem disso. As três artistas têm produções autorais, incluindo aí composições e tantas outras coisas, mas em seu show “Iara Ira” elas resolveram fazer um trabalho de garimpo e de construção de um repertório que comunica algo através delas, por elas.

O espetáculo construído pelas três, idealizado por Philipe Baptiste sob a direção musical de Thiago Amud, foi apresentado no Rio de Janeiro algumas vezes e gerou certo burburinho, quem viu repercutiu e quem não viu ficou numa curiosa expectativa. O projeto Joia Ao Vivo é que traz agora esse encontro-espetáculo em disco. O projeto é um desdobramento da gravadora Joia Moderna, do DJ Zé Pedro, em parceria com Marcio Debellian (diretor do excelente documentário “Fevereiros”), em proposta que prevê quatro álbuns gravados como se fossem ao vivo no estúdio LabSônica, no Rio. Esses trabalhos buscam preservar encontros musicais – tanto que os próximos nomes a serem lançados serão Letrux + Mãeana, Zé Manoel + Josyara e Marina Iris, com participações das escritoras Ana Maria Gonçalves, Conceição Evaristo e Elisa Lucinda.

“Iara Ira” chegou às plataformas digitais no final de agosto e é um disco que pede nosso tempo, nossa atenção, pois não é nada simples. O repertório construído pelas três artistas é amplo, caudaloso e leva o ouvinte para diferentes cenários, que são completados pelas escolhas estéticas do disco, que vão do mínimo, do jogral de vozes quase a capella até as dissonâncias do noise rock. Nada aqui é óbvio e isso é um grande risco. Mesmo quando os caminhos poderiam ser comuns, como quando elas decidem regravar “Mãe da Manhã” (Gilberto Gil) e “Da Maior Importância” (Caetano Veloso) – ambas famosas na voz de Gal Costa –, as três cantoras vão pra outro lado, inesperado, com jogos de vozes, sobreposições sonoras e uma firmeza em sustentar no peito esse repertório.

Há no disco um resgate histórico de autores e composições dos anos 70 e 80 que foge completamente do óbvio do universo das brasilidades, que parece sempre presa a um mesmo grupo de autores. “Iara Ira” aposta em canções como “Gira das ervas” (Luhli, Lucina, Mário Avellar e Maria Maria), “Ausência” (Ednardo) e “Casa Forte” (Edu Lobo), por exemplo. Dos anos 90, elas pegam canções desconhecidas das novas gerações, como as pinçadas do universo de Guinga, de onde veem “Coco do Coco” e “Contenda”. A primeira, aliás, aparece em medley curioso e bem amarrado com “Painho Mainha”, sucesso brega da Companhia da Lapada.

Do obtuso universo de Carlos Careqa, também dos anos 90, elas trazem “Cortei o Dedo”, um dos momentos mais altos do disco, com mais de cinco minutos de uma canção que cresce e se transforma para além da original. Desse universo underground da MPB, elas ainda trazem a excelente e quase desconhecida “Madrigal” (Paulo Monarco, Dandara e Bruno Batista), com seus pungentes versos a dizer “o meu único desejo é morrer cantando / o meu único desejo é sempre cantar”. O repertório ainda conta com “Minervina” e “Mana”, canções de domínio público, que surgem em versões fortes e renovadas. Um dos pontos mais marcantes do disco fica a cargo de Duda Brack em versão assustadoramente fascinante de “Coquetel Molotov” (Ian Ramil), com pegada roqueira, a gritar os versos “o mundo é um skinhead e eu sou um gay”.

No final das contas, é curioso como Duda, Júlia e Juliana conseguem criar um panorama muito próprio e pessoal da música brasileira, que vai bem além do samba, da Bahia e outros tantos clichês. Uma fluminense, uma potiguar e uma gaúcha conseguem criar uma trilha que passeia desde o Brasil rural até o caótico país das capitais, desdobrando temas como sexualidade, religiosidade, misticismo, desigualdade social e amor. É um caminho sinuoso, num disco de mais de uma hora, em que as três artistas se mostram de forma tão segura e firme que nos faz pensar que “Iara Ira” é acontecimento que demorará a ser compreendido como merece. Esse é disco pra se ouvir agora e se seguir ouvindo por um bom tempo.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz

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