por Leonardo Vinhas
Ao longo de mais de 40 anos de carreira, Walter Franco lançou apenas seis álbuns. Mesmo assim, sua obra é uma das ricas da música brasileira, não cabendo nos rótulos de “MPB”, “rock” ou “vanguarda” – embora ele certamente transitasse por tudo isso e por mais.
Franco compôs dois dos riffs mais poderosos do rock brasileiro: “Feito Gente” (1975) e “Canalha” (1980) – a primeira é considerada por Luis Carlini como a “canção definitiva” do rock feito em território nacional, um “troféu” que seu autor carregava com alegria e orgulho. Compôs também ainda temas delicados e de apelo pop, como “Serra do Luar” (célebre na interpretação de Leila Pinheiro) e “Coração Tranquilo” (que o Pato Fu versionou para um filme de Jorge Furtado). Podia fazer um cativante tema infantil (“O Relógio”, presente no especial “A Arca de Noé”, da Rede Globo) ou experimentações inclassificáveis como “Cabeça” e “Mixturação”. E tudo soava coerente. Tudo soava como Walter Franco.
Conheci seu trabalho via revista Bizz, que em uma edição ainda dos anos 80 colocou o álbum “Revolver” (1975) na seção Discoteca Básica. Tudo que eu li ali me atraía – as formas musicais não convencionais, que podiam ir do hard rock ao erudito, da imprevisibilidade “zappiana” à delicadeza minimalista, a capa com aquele dândi barbudo de terno branco…. Mas só fui ouvir o disco anos depois, quando ele foi reeditado em CD em um dos muitos resgates empreendidos pelo produtor e músico Charles Gavin. Anos depois, o amigo Fernando Lalli me apresentou “Lindo Blue”, canção do álbum “Respire Fundo” (1978) que me convidou a mergulhar em toda a obra restante do Walter.
Franco ficou 19 anos sem lançar disco, até que em 2001 veio com o bom “Tutano“, que teve pouquíssima repercussão. A sina – sempre rejeitada por ele – de “maldito” parecia persegui-lo, mas não parou de se apresentar ao vivo. Em 2017, vi uma dessas apresentações. À exceção do guitarrista Raulito Duarte, parceiro de longa data, a banda era formada por músicos jovens e capitaneada por seu filho, Diogo Franco, que também apresentava (ótimas) composições suas no show.
Era uma experiência única. Walter se dispersava em longas falas com o público (podia passar mais de dez minutos conversando sobre uma canção e outra), dirigindo-se a todos como se fosse um velho conhecido. Em alguns momentos, parecia disperso, desconectado. Mas quando uma canção começava, transformava-se. A voz continuava intacta, tanto em seus registros mais suaves como nos mais guturais, e a banda parecia entender sua imprevisibilidade e encontrar os caminhos musicais necessários para criar a paisagem sonora que se formava na cabeça de Walter. Algumas das canções apresentadas estarão em “LiSTEN – resiLIência e resiSTENcia”, gravado com essa banda e ainda não lançado.
Em paralelo, trabalhei como redator e pesquisador na terceira temporada do programa Estação Roquenrou, do Canal Brasil. Dois dos artistas convidados – Jards Macalé e Marcelo Callado – optaram por tocar composições de Franco nos seus episódios. Era muita sincronicidade para passar desapercebida, e decidi começar um projeto que acalentava há anos: produzir um disco em homenagem à Walter Franco.
Durante o processo de feitura, lidei com Walter pessoalmente algumas vezes, e nem todas foram agradáveis. Sua disposição e seus humores mudavam muito, e costumo dizer que conheci uns cinco “Walters” diferentes – em alguns casos, a diferença de atitude era tão grande que nem pareciam diferentes facetas da mesma pessoa, mas outra pessoa mesmo.
Franco chegou a cogitar vetar a versão do La Carne para “Feito Gente”. Disse ter ficado surpreso com a semelhança entre seu registro vocal e o do vocalista Marcus Linari (chegou a pensar que era sua voz sampleada), mas que soava como “um Walter Franco psicótico”. E se queixou de que algumas outras versões não estavam iguais às suas – algo que, honestamente, não faria qualquer sentido. Porém, no mesmo dia, elogiou efusivamente as versões feitas por Consuelo e Seamus, com destaque para o desempenho dos cantores de ambas as bandas – respectivamente, Claudia Dalbert e o mesmo Fernando Lalli, que me apresentara “Lindo Blue” anos antes. Depois de algum tempo, ficou em silêncio, virou-se para mim e disse: “faça do jeito que você acha que tem que fazer”.
E ao fim, “Um Grito que se Espalha” saiu da maneira que tinha que sair: com os músicos colocando todo seu empenho – e em muitos casos, um sentimento profundo e sincero – nas releituras. E não posso deixar de destacar o trabalho de Otávio Bertolo, que não apenas masterizou o disco mas me ajudou a definir a ordem das faixas, o conceito e a ressaltar certos aspectos sonoros do disco. Sem esse encontro com o Walter e sem a paciência e a sensibilidade de Otávio, o disco não teria sido aquilo que é.
Foi o projeto mais difícil entre todos os discos que fiz, e confesso que cheguei a cogitar desistir de conclui-lo. Felizmente, não o fiz. Acredito que o resultado final honra uma das obras mais complexas da música brasileira, e espero que honre também o homem que se foi nesta madrugada.
Agradeço a todos os artistas que entregarem seu melhor aqui: Consuelo, LaCarne (na última gravação da banda, antes de se separarem), Buenos Muchachos (oficial), Dado Voa, André Prando, Marcelo Callado, Joe Silhueta, BIKE, TAMY, Juliano Gauche, Pão de Hamburguer, Seamus, Os Gianoukas Papoulas, Dadalú e Sergio Gonzalez Checho. Obrigado por terem me ajudado nessa homenagem ao Walter e a lançar esse álbum
E obrigado, Walter Franco. Pude dizer isso pessoalmente para você, e também com um disco. Obrigado mesmo!
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
Belo tributo, que fez jus a obra desse gênio da nossa música.
Espero que os herdeiros lancem material póstumo, em especial algum disco que tenha sido gravado “ao vivo”.