por Karina Lacerda
Depois de uma espera de dois longos anos chega à Netflix episódios novinhos em folha de “Mindhunter”, série criada por Joe Penhall, produzida por Charlize Theron e dirigida por David Fincher com base no livro do agente especial do FBI, John Douglas, que confrontou, entrevistou e estudou dezenas de serial killers e assassinos, incluindo Charles Manson, Ted Bundy e Ed Gein (o livro, editado pela Intrínseca, foi o segundo votado no Melhores de 2017 do Scream & Yell e a primeira temporada da série ficou em quinto lugar).
Foi no longínquo 2017 que o canal de streaming nos apresentou Holden Ford (Jonathan Groff – sim, ele já soltou o gogó e rebolou a raba em “Glee”) e Bill Trench (Holt McCallany, que traz no currículo “Clube da Luta”, “Advogado do Diabo”, “Law & Order” e “CSI”), dois agentes do FBI que se debruçam sobre as mentes de alguns serial killers americanos com largas doses de realidade. John E. Douglas é a inspiração para o personagem de Holden e Robert K. Ressler, que também trabalhou na unidade de elite contra assassinos em série do FBI, é a base para Trench.
Na primeira temporada, passada em 1977, Ford e Trench estiveram tête-a-tête com assassinos para ouvir suas histórias e motivações e “catequizaram” os quatro cantos da terra do tio Sam com a palavra da “psicologia criminal”. Ford, mais impulsivo, invariavelmente sai do protocolo nas entrevistas. Convenhamos, mole não deve ser. Quem leu “A Sangue Frio”, de Truman Capote, sabe do que estou falando. A apuração do crime de Holcomb tem lá suas ressalvas, mas ninguém questiona o quanto os relatos e aproximação com assassinos da família Clutter afetaram o escritor.
Nessa segunda temporada, Holden e Bill já estabeleceram a lojinha no Bureau e são os responsáveis pela Unidade de Ciências Comportamentais. A acadêmica Wendy Carr (Anna Torv) também está de volta como consultora full time do FBI, para trazer um viés mais científico aos métodos e resultados. Agora a brincadeira fica (mais) séria e eles investigam uma onda de crimes em Atlanta, com dezenas de crianças negras sumindo sem pistas entre 1979 e 1981. Crime de ódio ou mais um serial killer no pedaço?
A trama paralela de Trench faz juz a uma das mais famosas citações de Tolstói: “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira”. Como se fosse pouco fazer seu trabalho, impressionar chefes e servir de babá para Holden, Trench ainda tem que lidar com um problema familiar que deixou esta que vos escreve com o cabelo em pé. Imagine lidar todos os dias fazendo perfis de assassinos em série e ter que lidar com seu filho introspectivo de seis anos envolvido em um crime?
Permeando a narrativa, mais cenas salteadas com o estrangulador BTK (de “bind, torture, kill”, algo como “amarrar, torturar, matar”), aka Dennis Rader (Sonny Valicenti). Será que nessa temporada ele entra no radar dos agentes? Na vida real, ele só foi preso em 2005 (depois de matar dez pessoas no Kansas, entre 1974 e 1991).
Quem também dá as caras nessa temporada é o assassino mais infame da cultura pop: Charles Manson. Numa sacada bem esperta, escalaram o mesmo ator que faz o líder da Família Manson (Damon Herriman) no filme novo de Quentin Tarantino, “Era Uma Vez em Hollywood”. O filme estreou nos cinemas brasileiros no dia 15 de agosto e a segunda temporada de “Mindhunter” está disponível na Netflix desde o dia 16 de agosto.
Quem chega esperando um ritmo alucinado a la “Seven” ou “Fight Club” (duas obras marcantes da carreira milionária de David Fincher) pode se frustrar. “Mindhunter” tem outro tempo, o tempo do serviço público, e por isso é quase burocrático. Não tem grandes cenas de perseguições, litros de sangue cenográfico, violência gratuita. Tudo acontece mais devagar, como as coisas na vida real, quando a gente tem que lidar com papelada, chefe, atendente com má vontade…
Os agentes não precisam apenas se antecipar aos próximos passos do assassino, mas também antecipar toda a burocracia envolvida na caçada. A frustração de Ford ao lidar com a papelada infindável das delegacias de Atlanta chega a ser dolorida de se ver. Não é só uma corrida para encontrar o assassino antes que surja um novo corpo: é uma corrida contra os carimbos, as três vias autenticadas, e o sem número de autorizações necessárias até para imprimir uma centena de cartazes.
“Mindhunter” mostra que a realidade pode ser quase surreal ao abordar histórias tão assustadoras que não parecem terem acontecido, mas que aconteceram (e ainda acontecem). Imaginar que uma caçada a um assassino de crianças possa ficar paralisada ao esbarrar em uma disputa por pagamentos de horas extras é desesperador e, ao mesmo tempo, absolutamente factível.
David Fincher assina os três primeiros episódios dos nove da segunda temporada (Andrew Dominik dirige dois e Carl Franklin os quatro últimos). A divisão dos episódios não atrapalha o ritmo da trama, que vem em um clima de tensão crescente e – sem querer estragar a surpresa de ninguém (e escolhendo a dedo as palavras para não dar nenhum spoiler) – a segunda temporada termina com um gosto amargo e conhecido de vida adulta. Nem sempre a gente conclui as coisas como quer, mas como é possível.
Ainda não há uma confirmação para uma terceira temporada, mas é preciso ficar na torcida, pois “Mindhunter” é daquelas séries dignas de maratona – pra assistir com um balde de comfort food e pausas estratégicas para respirar e abraçar quem você ama. Lembre, a vida é um sopro.
No final de julho o diretor David Fincher participou de um episódio do podcast The Treatment da KCRW falando sobre essa segunda temporada. Pra quem quiser praticar o “listening” das aulas de inglês, tá aqui o link.
– Karina Lacerda (@naoeakazinha) é jornalista, trabalha na TV Cultura.