Texto por Renan Guerra
Wilson Simonal tem uma história obtusa, com reveses duvidosos e meandros complexos, isso é fato. A música de Simonal, por sua vez, é leveza, sorriso e diversão pura, de um balanço e um swing únicos. O longa “Simonal” (2019), de Leonardo Domingues, tenta mais uma vez resgatar e desmistificar tudo que ronda a história daquele que foi o primeiro grande astro pop negro do Brasil. O resultado final é uma cinebiografia bem acima da média da maioria lançada nos últimos anos em nosso cinema: ritmo coeso, bom recorte temporal, atuações certeiras e uma direção firme fazem do filme uma sessão imperdível.
“Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei” (2009), documentário dirigido por Micael Langer, Calvito Leral e Cláudio Manoel, deu nova luz à história de Wilson Simonal 10 anos atrás, quando o artista passou por redescoberta de público e mída. “Simonal”, o novo longa, busca levar essa redescoberta a um público ainda maior, expandido esse resgate por uma história cheia de complexidades. Simonal era astro gigante, do tipo que carregava multidões com hits geniais, porém em um jogo perigoso que envovle ego elevado e gastos exacerbados, o artista entra em uma espiral negativa, que o faz ter envolvimentos excusos com os militares da época. Em tempos espinhosos de Ditadura Militar, alimentou-se a história de que o músico era uma espécie de informante dos milicos. Pronto, estava formada a fogueira de Simonal, o “grande dedo duro dos anos 70”. Até sua morte, em 2000, o músico viveu na obscuridade, tentando repetidamente provar que nunca dedurou ninguém.
O longa de Leonardo Domingues busca reconstruir a ascensão e queda de Simonal em um arco bem definido que começa com o encontro do músico com Carlos Imperial, passa pelo seu sucesso comercial e esmiúça a derrocada com olhar sincero. Sinceridade é uma palavra-chave em “Simonal”, já que estamos mergulhados em um mar de cinebiografias que são chapas-brancas e buscam mais contar os louros de seus biografados do que realmente uma história com viéses. O roteiro de Victor Atherino não busca pintar um Simonal perfeito e imaculado, que sofreu nas mãos de algozes, pelo contrário, apresenta um personagem extremamente humano, cheio de falhas, defeitos e erros, mas que sabe bem o afronte que era ser um astro negro e rico em um país racista como o Brasil.
Simonal ganha vida nas telas por Fabrício Boliveira, que consegue captar o charme e todas as dualidades do artista. Ísis Valverde é sua principal parceria de cena, interpretando a esposa Teresa, em atuação segura e convincente, apesar do mar de perucas ruins de sua caracterização. Há outros destaques no elenco, como a incrível personificação de Miele por João Velho, ou mesmo Mariana Lima como Laura Figueiredo. Por outro lado, Carlos Imperial, personagem fundamental do universo pop na década de 1960, é interpretado de forma canastrona por Leandro Hassum, que mesmo ruim, ainda consegue ser menos pior que a vergonhasa intepretação do personagem feita por Bruno de Luca no recente “Minha Fama de Mau” (Lui Farias, 2019).
As reconstruções de época dão o clima de ostentação e charme que rodeavam Simonal, com seus looks espalhafatosos; além disso, há charmosas inserções de letreiros e cartazes na tela, incluindo aí joguetes onde o rosto de Simonal aparece meio que confundido com o do ator Fabrício Boliveira, que refez capas e fotos icônicas do músico. Em um dos momentos mais emocionantes do filme, o diretor se vale de material documental e reexibe uma apresentação histórica de Simonal no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, com uma plateia alucinada – ver essas imagens restauradas é de arrepiar!
Em tempos de artistas “cancelados”, de discussões sobre erros e perdões, é interessante refletir sobre como Simonal pagou caro demais por um erro que, aparentemente, nunca cometeu. Há uma boa lista de artistas que defenderam ao seu modo a Ditadura Militar ou mesmo que ficaram sobre o muro de forma melindrosa e nem por isso sofreram o backlash que Simonal sofreu. “Simonal”, o filme, coloca como importante pano de fundo uma questão racial que não pode ser ignorada nesse cenário. Em cena simbólica, Simonal conversa com Elis Regina, que diz “eles me perdoaram quando eu cantei o Hino, irão te perdoar agora”, no que ele responde “eles te perdoaram, mas não vão me perdoar e você sabe o porquê”.
“Simonal” é filme histórico, de rememoração, mas que fala muito sobre o nosso tempo, que nos diz muito sobre raça, força e arte em 2019, por isso precisa ser visto e debatido o quanto antes.
Ps. Nesta semana, o jornalista e biógrafo Ricardo Alexandre colocou no ar o financiamento coletivo para a edição comemorativa de 10 anos do livro “Nem vem que não tem: A vida e o veneno de Wilson Simonal”. O livro irá ganhar uma edição de colecionador, capa dura, mais fotos, texto atualizado e corrigido e muitos extras pra deixar os colecionadores salivando! E não será vendido em livraria, apenas nesse crowdfunding. Para quem quer mergulhar na história de Wilson Simonal, livro e filme são dois itens obrigatórios.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.
Eu sempre digo: No auge do Médici, Jorge Ben lança País Tropical…que tal?