entrevista por Ananda Zambi
A Supervão finalmente lançou um disco. Depois dos EPs “Lua Degradê” (2016) e “TMJNT” (2017), o trio, formado por Leonardo Serafini, Mário Arruda e Ricardo Giacomoni, gravou um álbum que talvez seja o trabalho mais desconstruído do grupo, o “Faz Party” (2019). Viabilizado pelo edital da Natura Musical junto à Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul e em parceria com os selos HoneyBomb e Lezma Records, a banda gaúcha mistura nesse disco os mais diversos sons e sentimentos.
A desconstrução e a recomposição de musicalidades e sentidos sempre fez parte do produto final e das intenções do grupo, que existe desde 2015. Em seus dois primeiros trabalhos, era nítido o flerte com o retrô, o psicodélico, o eletrônico, o pós-punk e o vaporwave (psicodelia contemporânea oriunda da art media), tanto nas faixas quanto na estética das capas e dos clipes. E o que antes aparecia em menor grau, está bem mais evidente no disco novo: a influência da música brasileira. Pra quem já falou em entrevistas anteriores que o som que fazia era considerada uma “neu tropicália”, “Faz Party” é um espetáculo de grandes referências à cultura nacional. Em faixas como “Toneladas”, “Asabelha e capoeira”, “O Lírio Verde e Branco e a Druza de Ametista” e “Vê Se Chega Na Terra Sem Nome”, o trio admite se inspirar também em BaianaSystem, Baden Powell e Vinícius de Moraes, Jorge Ben e Caetano Veloso.
Duas faixas do disco foram lançadas antecipadamente (o álbum chega ao streaming nesta sexta, dia 26 de julho): “Sol do Samba” e “Social Animal”. Se formos delimitá-las a rótulos musicais, a primeira se aproximaria de um tecno que retrata uma cura pela festa e pelo ato de dançar; já a segunda, de um dreampop que questiona o modo de vida que levamos pós-internet (a questão do pós-humanismo também é um tema recorrente no trabalho da banda), distantes uns dos outros. “Social Animal”, aliás, já ganhou um clipe, estrelado por Shico Menegat (Tinta Bruta) e dirigido por Theo Tajes.
O show de lançamento será no dia 3 de agosto no Agulha, em Porto Alegre, e dia 10 eles farão uma apresentação em São Paulo, no CCSP. Num bate-papo com o trio, conversamos sobre a atual dificuldade de se encaixar em rótulos e gêneros musicais e sobre a necessidade dos artistas (principalmente os independentes) se articularem também no processo de produção da banda, além de falar sobre os dois singles e sobre a expectativa do tão esperado álbum. Confira:
Vocês já falaram que o som que vocês fazem é tipo uma “neu tropicália”. O que é isso?
Mário: Esse lance da neu tropicália era meio que pra tentar pensar um pouco sobre essa característica da música brasileira contemporânea e de ficar misturando elementos de diferentes gêneros. Acho que na época a gente ficou falando disso mais, talvez, como um gênero provisório, só pra tentar dar alguma pista, alguma indicação do que a gente estava fazendo. Mas hoje em dia a gente não sabe se é o melhor termo. A gente meio que deu uma parada de falar desse termo, mas, de qualquer forma, eu acho que em um determinado momento ele foi bem útil pra significar isso. Mas se a gente for observar agora, no Brasil, isso tem acontecido em muitas partes do país, e também outros movimentos mais antigos também misturavam. Então a gente meio que deu um tempo desse termo, mas a gente gosta dele, não estamos negando.
Leonardo: Na verdade, foi um termo bem primal, uma grande brincadeira, e acho que ele serviu pra uma busca nossa, uma referência nossa mesmo. Não que era algo que existia, mas algo a vir a ser, era algo que a gente buscava construir.
Ricardo: Acho que demos um nome pra uma coisa que não se sabe ainda o que é. E, a partir disso, segura em algo, em algum lugar.
Talvez muita gente tenha perguntado pra vocês o estilo de música que vocês fazem e vocês falaram isso.
Mário: Foi meio que indo assim, mesmo. Porque primeiro parecia bem uma mistureba. A gente até falou de “esquizopop”, alguma coisa desse tipo.
Ricardo: E por mais que seja um retorno pra elementos mais brasileiros, na época que foi colocado o termo não tinha tanto isso no som. E o que o Léo falou de vir a ser, agora acho que está mais presente a sonoridade brasileira.
Leonardo: Acho bem difícil se encaixar em rótulos musicais e gêneros, então é mais fácil pra nós inventar qualquer coisa assim do que se rotular a algo que já exista.
Mário: Mas fico esperando que algum jornalista dê um nome. A Tropicália não foi Tropicália no início. Então o jornalismo cultural foi bastante importante também nesses nomes. Daí se for ver, no mundo todo também. Agora a gente flerta com o emo também – o emo agora é novo –, pós-punk, música eletrônica.
Vejo que no som que vocês fazem, vocês incluem outros tipos de conhecimento, como semiótica, filosofia, cinema, entre outros. Queria saber como eles se complementam com a música.
Ricardo: É um pouco indissociável a vida do que se faz, né. Acho que os encontros que se têm na vida, de ideias, de coisas que você pensa, de uma maneira compõem também. Não são coisas separadas. Cada um aqui, por exemplo, faz uma coisa da vida que não é só música, mas também é música. Então acho que isso, de uma maneira ou de outra, é poroso, coexiste.
Mário: É, arte e vida. A aproximação de arte e vida é inevitável, eu acho. Eu, por exemplo, trabalho com pesquisa, então muitas coisas que pesquiso acabam entrando. Às vezes nem é consciente. Estou ali, naquele momento, e então faço algo. E também pela fase que a gente está da vida, todo mundo trabalha, não é uma coisa que a gente está só de brincadeira na vida. Tem que conseguir sua grana, então isso também do trabalho foi entrando nas letras e tal. Uma vez a gente tinha uma vibe mais existencialista. Acho que agora virou mais concreto, mais cotidiano, por causa disso, sabe. Bom, tem que trampar, velho, não adianta. É um perrengue? É, mas é isso. Então acho que isso que tu falou é bem isso, dessa junção de arte e vida mesmo. E a gente tenta encarar a coisa da forma mais honesta possível que a gente pode. Porque
acho que fica o resultado, pelo menos pra mim, menos metido a besta e um pouco mais identificável. Todo mundo passa perrengue, né. Agora com relação às filosofias
não sei como as pessoas vêem. Tipo, ficar falando de pós-humanismo… As pessoas devem achar que é uma viagem… Mas as pessoas gostam de viagem (risos).
Não é uma coisa consciente, então.
Mário: É um pouco consciente e um pouco não. Porque qual é a filosofia de vida que se tem? Acho que ela vai se constituindo na vivência, na experiência. E é inevitável. Às vezes, a coisa não aparece tão de cara, mas ela aparece estruturando. Por exemplo, misturar gêneros é também parte desse tipo de filosofia. Qual é a filosofia de fundo? Não existe pureza total no mundo, em nada, absolutamente nada. As filosofias que buscaram pureza chegaram numa radicalidade de extermínio, em determinado momento. Então, a gente dialoga mesmo assim com a ideia de mistura, mesmo. Filosofia da mistura, do encontro, do acontecimento, a ponto de se encontrarem umas coisas nada a ver umas com as outras, e desse encontro daqui a pouco vai surgir uma coisa nova. Então, acho que essa é a filosofia de fundo. Às vezes ela aparece na forma – por exemplo, quando mistura gêneros – ou no conteúdo, de falar de coisas que não se conectam uma com a outra. Por exemplo, falar de animal e disco voador ao mesmo tempo. O que tem a ver? Ou falar de capoeira no sentido de cultura e capoeira no sentido de árvore, e daí misturar com abelhas ou com uma luta social. O que tem a ver uma coisa com a outra? Num determinado momento esse sentido emerge.
Vocês já são relativamente conhecidos aqui em Porto Alegre, e não só pela banda, mas também pelos eventos que produzem. Eu queria que vocês falassem um pouco sobre essa necessidade de abrir esses espaços de fomento.
Leonardo: No momento atual, já faz alguns anos, realmente não existe mais tu ter uma banda e ser convidado pra tocar, ter portas se abrindo, lugares onde existe uma cena. Então, acho que surgiu muito dessa vontade de querer se expressar e mostrar o lance da arte, mesmo. Então hoje em dia não tem mais músico que não produz. Tem que ser também um produtor. A ideia de criar eventos e festas tem muito desse viés de necessidade, senão tu não vai sair de casa, não vai se expressar.
E vocês acham que isso é uma limitação da cidade de Porto Alegre, do estado do Rio Grande do Sul, ou isso se estende a qualquer lugar, de forma geral?
Leonardo: Acho que isso deve ser mundial já.
Ricardo: Pra ser independente, acho que tem que ser assim, produzir um espaço local, fazer agenciamento de rede. Acho que é isso, porque uma coisa é o contexto. Mas acho que a ideia de fazer evento – agora a gente não faz mais tanto – é de produzir encontros.
Mário: É uma condição, mas também é uma filosofia do que se pensa sobre arte e música. Por exemplo, por que se faz música? Ou por que se faz arte? Cada músico e cada artista pode ter seu ideal, mas eu, particularmente, acho que a gente concorda com isso, porque o fim de tudo, de tocar e tal, é fazer as pessoas se encontrarem. Produzir um acontecimento em que elas se encontrem. Por isso que a gente vem fazendo evento há muito tempo. Daí tentava fazer artistas diferentes se encontrarem, tentava fazer bandas e públicos, e então quanto mais a gente chamava artistas diferentes, mais diferentes públicos iam se encontrando com pessoas que não se encontrariam em outra ocasião. Esse é o objetivo: produzir esses momentos de celebração que extrapolam o algoritmo, que é basicamente uma imagem dos códigos diferentes sociais. Às vezes uma pessoa vive uma dada realidade, outra vive outra, e quando elas se encontram, algo acontece. Ela pode ver uma coisa diferente, sentir uma coisa diferente em determinado momento, pode causar um desequilíbrio que depois ela passe a entender de outra forma. Acho que é tipo isso. Por isso que a gente faz evento há muito tempo e, pra mim, tocar é isso: quanto mais gente vai num determinado evento, mais eu fico feliz, por diversos motivos. Claro, se você quer viver de música, isso importa também, mas num sentido social e cultural, isso importa muito, no sentido de que as pessoas vão lá ao evento. A experiência estética pra pessoa é muito foda, ainda mais se é uma experiência com outras pessoas que ela não veria no cotidiano dela – no trabalho, na escola, na universidade, no bairro dela. Esse é um método de acreditar no mundo e que ele possa ir melhorando.
Falando agora das músicas que vocês lançaram, “Sol do Samba” e “Social Animal”. Eu vejo que são músicas que falam, no geral, de desopilar em meio ao caos. Por que essa constância do caos? Vocês acham que o mundo tá assim, um caos?
Ricardo: Não acho que esteja em caos, eu acho que é um pouco sobre a temática do disco de que, bom, tem perrengue, tem coisas que não dão certo, mas tem que fazer de algum jeito que seja suportável e massa e que não seja o caos completo. Não sei se é diante do caos, mas é fazer de uma forma que não seja o caos.
Leonardo: Esse lance do caos faz sentido, não sei se no mundo todo, mas no Brasil a gente sabe que é um momento bem ruim, que as artes estão sob pressão, então a gente entende que, não é que esse caos seja errado, mas que também faz parte perder, e que também perdendo dá pra festejar de alguma forma. Acho que tem bastante disso. E que todos os momentos vão passar. Tudo passa, de certa forma, então a gente tem que aprender a perder e aprender a festejar mesmo estando ruim.
Ricardo: Não é ignorar o caos. É diante de perder ainda festejar. Não é um desopilar de não estar acontecendo nada. Não, está acontecendo e é por isso que a resposta é também essa.
Mário: Uma coisa que a gente pensava bastante quando estava sentindo a vibe pra fazer o disco: a gente fez algumas músicas e pensamos: “ué, mas que música feliz com letra triste”, ou o contrário, “que música tensa com letra feliz”. Daí a gente percebeu que tinha alguma coisa acontecendo e queria ver qual é que era. Daí o “Harry” (Ricardo) começou a falar bastante daquela música, “Tristeza Pé no Chão”, da Clara Nunes, e do trecho “eu molhei o pano da cuíca com as minhas lágrimas”. A cuíca é um instrumento de samba. Você nunca vê uma pessoa tocando cuíca estando triste. Depois disso, eu me liguei naquela letra do Caetano e do Gil, “Desde Que o Samba é Samba”, do trecho “O samba é pai do prazer/ O samba é filho da dor”. Vinícius também tem uma, “Samba da Bênção” (“Pra fazer um samba com beleza / é preciso um bocado de tristeza”). Então, entre o caos e a alegria, não é que a alegria substitui o caos, mas, por exemplo, até o projeto que a gente escreveu pra Natura (Musical), chamava-se “Coexistente”. As coisas coexistem, não significa que uma coisa tenha que se sobrepor a outra. A alegria existe, mas não é que ela substitui a tristeza. A organização não substitui o caos. Tanto que nas músicas elas podem ter essa mensagem, mas elas têm momentos de caos completo. “Social Animal” tem um monte de camadas, não se sabe muito bem o que tá acontecendo. No show mesmo, a gente fica fazendo mil camadas – a gente já a experimentou nos shows – , e com “Sol do Samba” acontece a mesma coisa: ela tem um momento em que fica uma bagunça e depois se arruma. Tem um momento de felicidade, mas também tem um momento de tensão, de quase reclamação – o reclamar também tem o seu lugar, é importante reivindicar, mas também qual é o efeito de só reivindicar, assim como o de só fazer festa? Então como é que se acha um jeito dessas coisas serem potencializadas umas às outras? Como elas podem coexistir e se potencializar pra produzir algo? Acho que esse é o teto geral.
Então pode-se dizer que o “Faz Party” é um disco mais adulto, maduro?
Mário: Eu acho que sim.
Ricardo: Mas acho que também sem perder a questão lúdica. O adulto não substitui o fato de brincar, em certo sentido.
Mário: Como é que se pode ser criança às vezes e adulto às vezes? É tipo isso também. Momentos de muita criancice, infantilidade, e de seriedade, de ser sábio.
Ricardo: Porque brincar não é o oposto de sério. É o oposto de realidade.
O que o público pode esperar do “Faz Party”?
Leonardo: Falando até da questão do adulto, acho que o disco não é tanto porque ele tem bastante energia, uma energia meio jovial, as músicas são rápidas. Dá pra esperar bastante disso nos shows, pelo menos é o que a gente está se propondo nesses primeiros testes. A gente está tentando se entregar ao máximo – acho que não é uma coisa que os adultos fazem, eles se preservam bastante. Nesse sentido de show, a gente tá bem criança, de fazer uma grande festa no coletivo, com a galera.
Mário: Pode esperar, de repente, sentir um pouco de coragem. Se eu fosse pensar em uma coisa, seria ouvir e sentir um pouco de coragem. Se sentir confiante.
Ricardo: Fazer o que deve ser feito.
Mário: O que as pessoas vão querer e sentir eu não sei, mas o que eu gostaria é que a pessoa ouvisse e se sentisse confiante pra sair de casa todo dia e fazer o que tem que fazer, falar o que tem que falar, viver. No momento em que conseguir alguma coisa que queria, comemorar mesmo. E se der uma coisa errada, bom, pode ficar triste também. Confiança na vida, no que for dela. Conseguir fazer, não ficar paralisado.
Leonardo: A gente vai se machucar, mas vai sorrir também. Vai errar o solo, mas vai estar tudo certo.
– Ananda Zambi (@anandazambi) é jornalista e editora do Nonada – jornalismo travessia. Nas horas vagas, também brinca de fazer música”. A foto que abre o texto é de Kim Costa Nunes / Panam Filmes