por Marcelo Costa
Wado está se aproximando dos 20 anos de carreira (a serem completados em 2021) e já conta com 10 álbuns lançados numa discografia marcada pela inquietação, e mesmo com essa larga janela de experiência nesse território insalubre chamado “música popular brasileira do século 21”, continua produzindo em alto nível, algo que começou a se destacar ainda mais a partir do momento em que ele passou a se autoproduzir, posição que funcionou muito bem em “1977” (2015), se estendeu com “Ivete” (2016) e se resolveu com perfeição em “Precariado” (2018).
Porém, e (quase) sempre existem os poréns, estes três ótimos discos não tiveram um décimo da atenção que “Vazio Tropical” (2013), produzido por Marcelo Camelo, obteve – numa colaboração com o ex-atual-eterno Los Hermanos que já vinha em alta através do hit “Com a Ponta dos Dedos”, do álbum “Samba 808” (2011), que conquistou até prêmio no VMB (da MTv), mas que terminou ali, no vazio. A música pop tem dessas: muitas vezes ela não valoriza o “melhor”, mas sim o que ela acredita ser mais “interessante”.
“Precariado”, o disco mais recente de Wado, lançado em 2018, surgiu inspirado em Noam Chomsky, que classifica como “precariado” aquilo produzido no terceiro mundo com mão de obra barata para o consumo nos países desenvolvidos. Em seu show anterior em São Paulo, no Sesc Pompeia, lançando “Ivete” em 2017, havia sido diferente, com Wado meio inseguro lutando contra um fantasma no palco, o que assoprava os ouvidos: qual Wado o público iria encontrar no palco do Sesc Belenzinho numa noite bastante fria de outono?
Para felicidade de quem pegou a linha vermelha do Metrô paulistano em direção a ZL, Wado fez uma de suas melhores apresentações na capital paulista, acompanhado por uma banda cada vez mais afiada e por um repertório que passeia sabiamente por uma discografia repleta de pequenas pepitas de ouro musical. Como era de esperar, “Precariado”, o disco, foi a base do repertório abrindo a noite com as ótimas “Correntes Comprimidas” e “Tudo Salta”, a última, uma colaboração com Momo, relembrado na sequencia com a linda “Flores do Bem”.
“Rosa” abandonou a vibe surf de sua versão no disco por algo mais encorpado, e emocionou. Vieram então “Primavera Árabe” e o hit “Com a Ponta dos Dedos”, cuja gênese do prêmio da MTV nasceu ali, naquele palco do Sesc Belenzinho muitos anos atrás (a base do clipe foram vídeos filmados pelo público no show de lançamento do álbum “Samba 808” no local). Como diferencial, essa noite marcava a primeira execução ao vivo de “Antifa”, single político lançado em maio de 2019 que tende mais a “intelligentsia” do que a massa direitista (às vezes da saudade da obviedade na cara de canções como “Que País É Esse?”, “Desordem” e, zuzu bem, “Inútil”).
Uma das melhores canções de “Precariado”, não a toa a faixa 1 (o próprio Wado percebe, em uma entrevista a ser publicada pelo Scream & Yell, que a maioria de suas canções favoritas em seu próprio repertório são as que ele coloca para abrir seus discos), “A Grama do Esgoto” voltou a mostrar o bom momento que Wado vive, numa versão que superou o grande registro em disco – méritos para a excelente banda que contava com Rodrigo Peixe (bateria), Dinho Zampier (teclados), Vitor Peixoto (guitarra) e Igor Peixoto (baixo).
Dai em diante, faixas novas como as belas “Janelas” e “Bailar dos Barcos” dividem espaço com canções mais antigas como “Estrada”, “Pendurado” e “Sexo”. A balada “Pavão Macaco” chegou envenenada de guitarradas enquanto “Vai Querer” abriu o caminho para a ampliação do repertório de um dos grandes discos da música brasileira neste século, “A Farsa do Samba Nublado” (2004), ainda que seguindo pedidos do público: a cortante “Deserto de Sal” surgiu improvisada seguida por – “Cenas de Um Filme Inglês”, do segundo disco, e os hits “Tarja Preta” e a fenomenal – “Tormenta”, em versão memorável, de fazer chover sapos na Zona Leste.
Com 10 discos na carreira (excetuando uma coletânea, um álbum ao vivo e o primeiro grande disco ao lado do Fino Coletivo) e quase 20 anos de estrada, Wado vive um dos seus melhores momentos sobre um palco. A quantidade (e qualidade) de repertório ajuda ainda que, no espaço limitado de um show contratado com hora para acabar, para o público faltem canções. Elas todas, porém, estão ai no mundo acessíveis a um toque do mouse. Ouse mergulhar no repertório provocativo deste artista inquieto. Quem sabe no próximo show a gente se encontre “para uma cerveja no bar e o coração tranquilo”, hein.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne. A foto que abre o texto é de Lua Palasadany / Jardim Elétrico. Os vídeos são de Marcelo Costa / Scream & Yell.