Olhar de Cinema 2019: À sombra do gigante

 por Adolfo Gomes

O trabalho da morte. Não é a tradução literal da célebre assertiva de Jean Cocteau (“le cinéma c’est la mort au travail”), que trespassou a abertura do festival Olhar de Cinema 2019, em Curitiba. De todo modo, continua a parecer apropriada. Primeiro se manifesta na exibição surpresa do curta de Renato Coelho, “O Cinema Segundo Luiz Rô”(2013); depois na estreia mundial do documentário “Banquete Coutinho”, do estreante Josafá Veloso. Os dois filmes, em alguma medida, dão testemunha desse ofício implacável – bem mais do que, simplesmente, prestam homenagem aos seus “personagens”.

Luiz Rosemberg Filho, morto este ano, e Eduardo Coutinho, falecido em 2014, estão entre “o que tivemos de melhor” na cultura brasileira das últimas décadas. Em apenas três luminosos minutos, Renato Coelho dá voz a “Rô” e sua poética político-afetuosa. É um primor de síntese e claridade – cineasta de estilo quase barroco, sempre pressionado pelas restrições econômicas e ambientais (o ambiente algo dissimulado do cinema brasileiro), Rosemberg construiu uma filmografia abundante em alegorias, colagens e dramaturgia antinaturalista (por isso a impressão obscurantista colada à sua obra).

Mas aqui, no filme de Renato, tudo é de uma limpidez comovente. Não se trata apenas de conceituar o cinema, definir uma visão pessoal através de uma expressão artística; é muito mais profundo: relacionar vida, realidade e arte à imaginação de maneira visceral, apaixonada. Se o estilo é o homem, como ressaltava Godard, temos na silhueta de Rosemberg a enunciação precisa de sua filmografia – o trabalho perene da criação a desafiar nossa finitude intrínseca.

Embora em outra chave, mais terrena e cética, também podemos encontrar nos filmes de Eduardo Coutinho o mistério de tal incitação estética. E espanta a coragem de Josafá Veloso em iniciar sua trajetória no cinema – ele é músico consolidado – e no documentário, em particular, sob a sombra frondosa do mestre.

“Banquete Coutinho” opera no território feérico da conversa – as perguntas engendrando narrativas, surpresas e epifanias. Sem dúvida, é intimidador reconfigurar a posição de um artista diante do seu labor primordial. Veloso, a despeito do risco, coloca Coutinho na condição de entrevistado e assume para si a tarefa de emular a mágica do artífice maior do gênero no Brasil.

No debate posterior à exibição filme, o jovem realizador contou que o resultado das conversas com Coutinho se assemelhava a um monólito, tal a dificuldade de editar a fala árida e descontinuada do seu “personagem”. Foi um projeto de longa duração, mais de cinco anos desde a sua concepção, e o tempo (la mort au travail) indicou os caminhos. A opção por levantar questões – seria a obra de Coutinho variações de um mesmo e recorrente filme? As pessoas que povoam seus documentários exprimem a sua própria essência como se fossem dele um alter ego, entre outras indagações especulativas – sem com isso se preocupar em levá-las ao cabo de uma tese ou de uma certa teoria autorista; pode causar a sensação de flacidez do discurso de Veloso.

Porém, mais íngreme é contornar a ideia de “vampirização” da constante criativa coutiniana, essa capacidade rara de alcançar no outro alguma coisa de entendimento, de esperança, de imprevisibilidade que nos aproxima e conforta no caos dolorido da vida. Tarefa talvez impossível, gigantesca em sua ambição. Estar à altura de um grande criador é como “vencer” a morte. Podemos tentar, tentar. É o que nos cabe em última instância. No melhor dos casos, há um vislumbre de eternidade. Ilusão efêmera, mas que pode ser bela. Tem que nos bastar. Do contrário, é o vazio.

“Banquete Coutinho”, portanto, esforça-se em saciar essa fome, em preencher uma ausência, porém toda vez que retoma trechos dos filmes do grande cineasta abre um abismo temporal: tudo o que se passou é inalcançável. Os criadores, os maiores, são assim.

– Adolfo Gomes é cineclubista e crítico de cinema filiado à Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine).

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