introdução por Marcelo Costa
O rock nacional anos 90 nasceu amparado numa proliferação de pequenos selos ligados a grandes gravadoras que pariram 90% da música que importava naquela década. Do Banguela Records, ligado a Warner, saíram Raimundos, Mundo Livre S/A, Maskavo Roots, Little Quail and ad Birds e Graforreia Xilarmônica. Do Chaos, subselo da Sony Music (derivado da filial americana que havia lançado bandas como Soul Asylum e Ned’s Atomic Dustbin), vieram Skank, Gabriel O Pensador e Chico Science & Nação Zumbi. Dentro do Chaos havia ainda um outro subselo (uma coisa meio “inception”), o SuperDemo (do festival de Elza Cohen) que lançou os discos de estreia de Planet Hemp e da banda recifense Jorge Cabeleira e o Dia Em Que Seremos Todos Inúteis, que retorna com seu terceiro álbum de inéditas após 18 anos!
Lançado em 1995, o disco de estreia da Jorge Cabeleira é uma pequena obra prima de rock rural daqueles anos doidos. No Folhateen, caderno “jovem” da Folha de São Paulo, o jornalista André Forastieri tentava resumir o som: “Jorge Cabeleira é rock nordestino, no sentido que Alceu Valença é rock nordestino. Ensolarado, animado, progressivo, mas roqueiro”. A cacetada “12 Badaladas”, pancada que abre o disco, é um bom cartão de visitas, mas o disco ainda trazia uma doce faixa de levada acústica que explodia em guitarradas (“Nervoso na Beira do Mar”), além de covers poderosas para canções de Alceu (“Sol e Chuva”), Zé Ramalho (“Os Segredo de Sumé”, do mítico disco “Paebirú”) além de um pot pourri que juntava dois forrós arretados – “O Cheiro da Carolina” e “O Xote das Meninas” – em versão hardcore (e que foi o hit do disco).
Demorou seis anos para a banda lançar o segundo álbum, o excelente “Alugam-se Asas Para o Carnaval” (2001), e logo depois o grupo entrou em recesso, retornando às vésperas de festejar 20 anos de banda com a coletânea “Trazendo Luzes Eternas” (2014) e circular por festivais, como no Do Sol 2014, em Natal, mostrando que ainda tinha muita lenha para queimar. 18 anos depois do segundo disco, a Jorge Cabeleira lança “III” (2019), que foi antecipado por uma versão de “Talismã”, de Geraldo Azevedo e Alceu Valença, que ganhou a participação especial do conterrâneo Tagore. O disco é composto por oito canções e tem um pouco mais de 30 minutos. O que segundo Dirceu Melo, vocalista e guitarrista da banda, não foi algo proposital. “Pensamos: ‘Bom, já passamos de um ano de trabalho, vamos fechar, né?’”.
O processo de feitura das músicas e gravação começou em 2017 e seguiu até o final de 2018. “Nossa única condição quando decidimos fazer o disco foi de que ele teria de ser um disco foda”, comenta o vocalista. “Para isso não trabalhamos com nenhum tipo de pressão ou prazo, além do tempo necessário para que atingíssemos um resultado que a gente pudesse nos orgulhar depois, assim como temos esse orgulho dos dois anteriores”, explica Dirceu, que ao lado de Rodrigo Coelho (baixo) e Pedro Mesel (percussão e vocal) forma o núcleo da formação original que fundou a banda em 1994 – completam a banda Everton Belisca (bateria) e Ricardo Leão (guitarra). Abaixo, Dirceu Melo e Rodrigo Coelho comentam faixa a faixa o novo disco!
Jorge Cabeleira III
Faixa a faixa com Dirceu Melo e Rodrigo Coelho
Caminho Imaginário – Escolhemos essa para abrir o disco justamente porque mostramos muito de nossa identidade nessa música. Um riff de guitarra pesado na abertura, bem anos 70. Época pré-heavy metal inspirado em bandas como Led Zepellin e Deep Purple, seguindo para um groove de bateria e divisão rítmica do baião, passando por escalas árabes e alguns acordes, com notas abertas que permeiam toda a figura harmônica, tudo emoldurando uma letra bastante psicodélica, tratando-se do “Caminho Imaginário” que a mente faz quando se permite viajar “em torno da fogueira”.
O Homem no Canto do Bar – Essa foi a primeira música que escrevi quando decidi voltar a compor para a Jorge Cabeleira, a primeira que mostrei pra Coelho e Mesel na nossa primeira reunião de composição. Ela já nasceu bem formatada, numa levada bluseira para a primeira parte com direito a afinação aberta e slide de guitarra. Evoluindo para outras partes mais hard-rock melódico e funkeado que me lembra um pouco o Red Hot Chilli Peppers. Finalizando com uma parte instrumental viajandona com acordes progressivos onde também inserimos uma escaleta para completar a harmonia junto das guitarras e do baixo line 6 de Coelho.
Doce Sombra – Essa é uma das músicas que foram formatadas com uma estrutura básica que saiu de jams no estúdio. Uma música mais leve com uma letra e atmosfera melancólicas, que mostram bastante de nossa admiração e influência pelo Radiohead, para mim, uma das minhas preferidas.
Talismã – Foi a música de “esquenta” para o disco. Lançada no final do ano passado. Uma releitura rock do clássico dos anos 70 do primeiro disco da carreira de Alceu Valença e Geraldo Azevedo, o “Quadrafônico”. A ideia de fazer uma releitura para ela nasceu de canjas com Tagore quando tocávamos ela no violão em duas vozes simultâneas e ficou tão bacana que decidimos fazer uma versão para ela. Na versão usamos referências psicodélicas como Neil Young e Tame Impala para chegarmos na pegada que desejávamos para a música.
Arábica – Essa música foi toda estruturada por Coelho em cima de uma escala harmônica árabe, como o próprio nome da música já diz. A divisão rítmica dela segue muito do trabalho de produção de música eletrônica que Coelho faz em seus projetos como o Grassmass. Com a adição de instrumentos como a viola “Dobro” em afinação nordestina e a “Baglama”, instrumento de cordas turco. Conseguimos chegar a uma sonoridade bem diferente de tudo que a banda já tinha feito antes. Montada essa estrutura da música, foi só deixar a imaginação correr solta para a letra, que é compacta, se encaixando cada palavra na música com uma preocupação mais rítmica de como a palavra soa do que propriamente do que a palavra diz.
Brilho – Essa música foi toda composta em uma jam que fizemos e gravamos a quase 3 anos, escrevendo uma letra inspirada em cânticos do “Santo Daime” e colocando na música na hora mesmo que estávamos fazendo, nem tínhamos a intenção de gravar outro disco nem nada, mas a música ficou tão bacana que ficou na manga para uma oportunidade e ela apareceu pro disco. Tem uma pegada bem Ledzepelliana na sua origem, aí em estúdio resolvemos fazer uma parte B para ela em Dub, outro estilo que curtimos muito também.
Mamaterial – Perto de metade do disco foi criada em jams de estúdio, e levadas depois pra UIVO (produtora de Coelho em São Paulo) pra editar e montar um esqueleto, que foi coberto nas viagens subsequentes a Recife. “Mamaterial” saiu de um riff meio stoner, e foi a última a entrar no álbum.
Sete Quedas – Também surgiu de uma ideia durante as jams do começo do álbum, destinadas a criar mais músicas e completar o repertório. É um tema em 7/8 que reflete bem esse estilo meio mântrico/modal das composições de Coelho. Montamos os arranjos em volta, e ficou tão bom que decidimos que essa deveria ser só instrumental, na tradição do que fizemos no disco passado.