entrevista por Bruno Lisboa
Roger Deff é um dos mais atuantes artistas mineiros quando o assunto é o movimento hip hop local. Sua trajetória na música foi iniciada nos anos 90, junto ao grupo Julgamento com o qual lançou os álbuns “No Foco do CAOS” (2008), “Muito Além” (2011) e o mais recente “Boa Noite” (2018). Estes trabalhos ganharam reconhecimento de público e crítica ajudando a solidificar uma cena que vem em constante crescimento. “BH tem uma longa história no rap, mas essa geração mais recente contribui de forma marcante para que aqui ganhe reconhecimento enquanto um dos polos do rap no Brasil”, opina o MC.
Em paralelo as ações da banda, Roger foi aos poucos pavimentando seu próprio espaço ao dividir palcos e estúdios com artistas como o saudoso Marku Ribas, BNegão, Marcelo Veronez, Rodrigo Borges, Tamara Franklin e Cromossomo Africano. Idealizado desde 2015, agora em 2019 Deff lançou finalmente “Etnografia Suburbana”, seu primeiro álbum solo. Produzido por Edgar Filho e por Ricardo Cunha, neste trabalho o músico explora novas texturas sonoras e aposta em caminhos que antes não haviam sido testadas no Julgamento.
Na entrevista abaixo o rapper fala sobre o processo de composição do disco, o engajamento musical em tempos difíceis (“Não acredito que toda arte precise ser engajada, mas faço muita questão que a minha seja”), a deturpação dos ideais dos movimentos punk/hip hop com recrudescimento de ideias conservadoras, suas influências, o legado deixado pelos Racionais na sociedade (“Eles deram ao jovem negro uma noção de pertencimento, de identidade”), a experiência de ter o seu trabalho financiado pelo público, planos futuros e muito mais. Confira.
Após mais de uma década de bons serviços prestados junto ao grupo Julgamento você decidiu se aventurar de maneira solo. Há quanto tempo este disco está sendo idealizado?
Então, comecei com a ideia do projeto solo em 2015, quando o Julgamento entrou num hiato com a saída do baterista, o Gusmão. Havia ideias mais pessoais que eu queria apresentar, trazer à tona, além de passear por outros gêneros. O Julgamento é uma banda de rap com uma assinatura muito definida, num contexto em que existe também o que os integrantes têm de referência, então dificilmente a gente passaria por alguns dos caminhos sonoros do “Etnografia Suburbana”, e é bom porque fiz algo que não soa como o Julgamento. As composições do disco começaram mesmo em 2016 e entrei no estúdio em janeiro de 2019, ainda terminando de escrever algumas coisas.
Como rolou o processo de criação e gravação?
A criação foi algo bem despretensioso, no sentido de que eu não sabia se aquelas músicas virariam um álbum, se seriam singles… Diferente das músicas do Julgamento, as do meu disco solo nasceram dos refrães, de eu cantarolando coisas na rua, gravar e mandar pros músicos da banda, daí vinham os sons, caso de “Ladeira” que nasceu enquanto eu literalmente subia uma ladeira do meu bairro, após uma conversa com meu amigo Gustavo Caetano. Em comum as letras tem algo de autobiográfico, porque externei coisas da minha vivência. A questão negra, da potência às mazelas, está ali, porque a gente vive isso na prática, na vida, então o racismo é um assunto abordado, porque é real, assim como é real o retrocesso que estamos vivendo neste momento político. Gravamos o disco todo no estúdio Giffoni, em Belo Horizonte. A produção é assinada pelo Edgar Filho (baterista) e pelo Ricardo Cunha (guitarrista) e já chegamos pra gravação com as coisas bem amarradinhas, embora algumas escolhas estéticas tenham se dado lá, durante o processo.
“Etnografia Suburbana” tem uma série de participações especiais. Como se deu a seleção de quem poderia contribuir no disco?
Na medida em que concluí as letras chamei outras pessoas para escrever junto, daí as participações de Flávio Renegado, que é um velho parceiro, Douglas Din, cara que admiro e com quem participei do projeto Bala da Palavra, Ricardo HD, que é meu irmão e integrante do Julgamento, logo parceiro musical de longa data, Michelle Oliveira, que faz todos os backings do disco e trouxe uma contribuição fundamental em “Eu vi Zumbi Nem Florescer” e Celton Oliveira, que é MC de apoio e está comigo desde o início do projeto solo, daí chamei ele pra escrever e rimar na música título. Além dos MCs tem também os músicos Richard Neves (Pato Fu) e Luciano Cuíca Play, ambos caras com quem eu já conversava há um tempo sobre um dia gravarmos algo juntos, e rolou desta vez. Todas as participações são pessoas que participam da minha trajetória de uma forma ou de outra.
De modo geral as letras deste álbum acabam por refletir o atual cenário político / social. Em tempos dicotômicos e de retrocesso, qual a importância de adotar uma visão engajada?
Disse em uma entrevista recente que não acredito que toda arte precise ser engajada, mas faço muita questão que a minha seja. A música é uma arte acessível, chega de alguma forma, então acho importante que ela reflita sobre este momento sombrio, que fale dele, mas que fale do horizonte a ser alcançado também.
Frequento a cena punk/harcore nacional e percebo que discursos racistas e de direita tem tomado conta do ideário do público, que parece desconhecer as origens do movimento. Aparentemente a cena hip hop tem enfrentado os mesmos problemas devido ao um crescimento de público reacionário e a existência de MC’s (como o Visitante) que defende em suas letras figuras como Bolsonaro e Olavo de Carvalho. A que se deve esta mudança e como você a vê?
Tem muita coisa nisso, há um perfil conservador que define uma boa parcela da nossa população e acho que essas pessoas que se aproximam destes movimentos culturais, mais especificamente o punk e o hip hop, não compreendem suas origens. O Hip Hop nasce de um viés progressista, dos guetos norte-americanos, e tudo começou com um imigrante jamaicano, convivendo ao lado de imigrantes porto-riquenhos, negros e brancos pobres estadunidenses, só pra começar. O Hip Hop, em termos de discurso político, está ligado à trajetória de pessoas como Angela Davis, Luther king, Malcolm X e organizações como o Partido dos Panteras Negras, então há um equivoco muito grande de achar que há alguma possibilidade de uma cultura como o hip hop se alinhar ao discurso anti-intelectual do Bolsonaro e das ideias propagadas pelo Olavo de Carvalho. Por outro lado, o rap é música, e qualquer um pode fazer rap, mas só fazer rap não faz alguém ser do hip hop, principalmente se não compreende do que se trata e comete esse tipo de equívoco. Essa mudança se deve, na minha opinião, a um desconhecimento histórico mesmo, e há um movimento ultraconservador em todo o mundo, essas pessoas são sintomas nítidos disso. Nossa sociedade é racista, classista, essas coisas todas, quando figuras como Bolsonaro e Trump ganham visibilidade, pessoas que mantinham seus preconceitos nas sombras se sentem encorajadas e colocá-los pra fora, sem o menor constrangimento. É uma luta, uma disputa de narrativas que não tem fim, vamos lutar contra esse tipo de coisa sempre.
No disco você acaba por trazer a tona uma série de influências e sonoridades que acabam por homenagear várias vertentes da música, de ontem e de hoje. Nesse sentido, na construção de sua identidade musical quais foram os artistas que a moldaram?
A gente ouve muita coisa ao longo da vida, mas o que me influenciou neste disco acho que passa por artistas como James Brown, Tim Maia, Chico Science e Nação Zumbi, Public Enemy, Planet Hemp, Racionais, Thaíde e DJ Hum, Retrato Radical, Câmbio Negro, Guru, De La Soul, A Tribe Called Quest, Marvin Gaye, Milton Nascimento… São muitas influências, talvez nem todas perceptíveis na audição do disco.
Falando em Racionais Mc’s, eles celebram em 2019 seus 30 anos de carreira. Qual o principal legado deixado pelo grupo e como ele ainda reverbera hoje?
O legado do Racionais é extenso, é musical e comportamental. Eles deram ao jovem negro uma noção de pertencimento, de identidade. Deram outro sentido ao termo “periferia” e é indiscutível que, se hoje temos um rap brasileiro com a força que tem, devemos muito ao que eles construíram. Talvez não fosse nem intencional, mas Racionais nos ajudou a sobreviver. Falo de sobreviver ao apagamento e a tantas coisas que tinham o objetivo de nos embranquecer, de negar quem somos enquanto pessoas negras moradoras das periferias (no plural mesmo).
O disco foi parcialmente financiamento via crowdfunding. Como foi esta experiência de ter o público como membro efetivo do produto final?
Foi muito importante passar por esse processo, inclusive por ser meu disco de estreia, é uma forma de estabelecer uma comunicação com as pessoas durante o trajeto que vai gerar o produto. E acho que esse é um caminho que tende a crescer, porque, no final das contas, sempre foi o público quem financiou o trabalho artístico, só que com intermediários. Foi uma experiência muito rica, no sentido de ver as pessoas somando e acreditando no trabalho.
A cena hip hop mineira tem crescido de maneira exponencial devido a boa repercussão de trabalhos como a da rapper Cynthia Luz e do fenômeno Djonga. Acredito que a experiência com o programa Rimas e Recortes (Radio Inconfidência) lhe permitiu acompanhar in loco o que tem acontecido por aqui. Como você vê o cenário rap local?
A cena rap de BH sempre foi muito diversa e de uma qualidade incrível e agora é muito interessante ver isso reverberando através destes nomes. Cinthya Luz é mineira, tem uma caminhada importante, mas não vive aqui, já o Djonga acho mais emblemático por ser um MC reconhecido nacionalmente, mas residente na cidade. Isso soma muito. BH tem uma longa história no rap, mas essa geração mais recente contribui de forma marcante para que aqui ganhe reconhecimento enquanto um dos polos do rap no Brasil.
Recentemente você fez a primeira apresentação para divulgar o álbum em BH. Quais são seus planos futuros?
Virão alguns videoclipes aí, o primeiro em produção é justamente da música “Etnografia Suburbana”, pretendo rodar com esse disco o máximo possível e preparar os próximos trabalhos. Farei outro álbum para 2020 ou 2021, e, antes disso, virão alguns singles com outros parceiros, trampos que tem uma cara muito específica e talvez nem caibam num disco, pelo conceito, mas acho interessante ter a possibilidade de lançar obras que falam por si mesmas, sem ter que, necessariamente, fazer parte de um disco, LP ou EP. Vem novidades bem legais aí.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014. A foto que abre o texto é de Flávio Charchar / Divulgação