De Lisboa, Capitão Fausto fala sobre “A Invenção do Dia Claro”

por Pedro Salgado, de Lisboa
10 músicas para conhecer o Capitão Fausto, por Pedro Salgado

Sente-se um ambiente de profunda devoção à música no estúdio do bairro lisboeta de Alvalade, onde o Capitão Fausto trabalha regularmente. O busto romano dá um aspecto art ao espaço ocupado pelos sintetizadores, guitarra e maracas e na parede são exibidas várias fotografias dos membros do grupo que realçam a amizade do conjunto. Com “A Invenção do Dia Claro”, o novo álbum, servindo de mote para a conversa, Tomás Wallenstein (vocalista e guitarrista), Domingos Coimbra (baixista) e Salvador Seabra (baterista) revelam muita expectativa em face das perguntas que irei colocar e acima de tudo um interesse genuíno em clarificar o seu pensamento.

“A Invenção do Dia Claro” (2019) tomou forma numa casa em Vascões, na região do Minho (Portugal), da qual os pais do guitarrista Manuel Palha são proprietários. Com as canções feitas, o Capitão Fausto rumou ao Brasil em finais de 2017 para proceder à gravação do disco no Red Bull Studios, no centro de São Paulo. A participação de músicos brasileiros em algumas faixas – Geremias Teófilo Júnior (Saxofone), Eduardo Pereira (Cavaquinho) e Gabriel Peregrino (Percussão) – deram animação ao trabalho e maior amplitude a um pop alusivo às escolhas da vida, mas também aos azares que afetam os relacionamentos amorosos.

Em contraste com a toada solarenga do disco, a balada “Amor, A Nossa Vida” evidencia-se pela profundidade lírica e por ser a grande declaração do quinteto lisboeta. “É uma música que está no meio da história e a forma como está escrita provoca um impacto imediato”, explica Domingos Coimbra. Para Tomás Wallenstein, o enquadramento da canção assume uma importância fulcral: “Trata-se de uma parte decisiva da narrativa, onde se baixam os braços, volta-se a tentar e renega-se uma teimosia insistente”, conclui.

Relativamente à influência musical provocada pela estadia em São Paulo e pelo contato com a cena local, Tomás, Domingos e Salvador sublinham que o fato da gravação do álbum ter decorrido numa cidade nova, favorecendo o conhecimento de diversos músicos brasileiros, deu ânimo à banda. “Assistimos a um show d´O Terno e de várias bandas do selo Risco, conhecemos o Sessa e o Pedro Pastoriz. Descobrimos e escutamos música bastante interessante e a alegria de ter vivido esses momentos refletiu-se no nosso trabalho”, conta Domingos Coimbra.

No final de Março, o Capitão Fausto anunciou mais datas para o seu tour português, bem como uma participação no Rock In Rio (Rio de Janeiro), em 6 de Outubro de 2019, dividindo um palco com os brasileiros d’O Terno. Paralelamente, a banda lisboeta recebeu a notícia de que “A Invenção do Dia Claro” alcançou o primeiro lugar do Top de vendas de Portugal. “Para nós, este é o melhor trabalho do Capitão Fausto e define um instante do grupo. Sempre fizemos discos variados e, provavelmente, o próximo álbum não terá ligação com o atual”, afirma Salvador Seabra. É inegável que o talento e a determinação do quinteto lisboeta colocam-no numa posição favorável para alargar a sua base de apoio portuguesa e despertar a atenção do público brasileiro. De Lisboa para o Brasil, o Capitão Fausto conversou com o Scream & Yell. Confira:

O título deste quarto álbum de originais do Capitão Fausto foi retirado do livro “A Invenção do Dia Claro”, do escritor Almada Negreiros. Em que medida o conteúdo da obra inspirou as letras?
Não foi exatamente uma inspiração para as letras, porque elas já estavam escritas quando escolhemos o título. A motivação principal foi o nome em si, aquilo que ele representa e define o conteúdo das nossas músicas. Embora esta obra de Almada Negreiros aborde um pouco os temas do Capitão Fausto, ou seja, a forma tardia e juvenil de olhar para vários aspectos da vida, que ele também incorporava nesse livro. Podemos afirmar que escolhemos um bom título para o disco.

No final de 2017, vocês deslocaram-se a São Paulo para gravar o disco no Red Bull Studios. Qual foi o motivo dessa escolha?
Nós temos uma parceria antiga com a Red Bull, já cooperamos várias vezes e pretendemos continuar. Eles têm diversos estúdios no mundo inteiro e o Red Bull Music Academy realiza-se todos os anos em lugares diferentes. A organização deles constrói estúdios nas cidades onde são feitos esses eventos, como é caso de Tóquio, Los Angeles, Paris, Londres e em São Paulo também. Escolhemos gravar no Brasil, porque sentimos que era o local mais adequado e tínhamos muita vontade de ir lá. Para além disso, é um país onde se fala português e fazia todo o sentido para o trabalho do Capitão Fausto.

Comparativamente com “Capitão Fausto Tem Os Dias Contados” (2016), o novo trabalho é mais leve e veraneante. Era a via que queriam seguir ou o processo decorreu espontaneamente?
O Capitão Fausto não planejou a orientação do disco, mas concordo consigo quando diz que tem uma pegada mais veraneante. Simplesmente, as canções começaram a soar desse modo à medida que as fazíamos e as primeiros canções “contaminaram” as faixas seguintes. Em certa medida foi um processo natural de tocarmos uns com os outros e as melodias assumiram essa forma. Por vezes, acontecem momentos em que pensamos fazer as coisas de maneira diferente. Bem cedo no processo, o Salvador escolheu as baterias que queria utilizar, resultando numa sonoridade mais exposta e direta. Isso foi um exemplo de como enveredar por outra abordagem. Também houve uma clarificação para que não existissem muitos efeitos nas guitarras por parte do Tomás. Pensamos tudo isto, da mesma forma que tomamos várias decisões nos álbuns anteriores, mas não houve nenhum conceito primordial a nortear o trabalho.

Dentro dos temas pop, destaco a descontração de “Sempre Bem” e a otimista “Faço As Vontades”, que não deixam ainda assim de revelar um pouco do caráter agridoce que envolve o álbum…
As músicas que estávamos fazendo e as letras que o Tomás escreveu derivam de dois processos paralelos, mas distintos. Sentimos que aquilo que cantávamos e o que escrevíamos nem sempre estaria de acordo com a pintura instrumental das canções. Um acaso interessante (que só nos apercebemos no final e talvez nos aproxime da música do Brasil), é que independentemente do que você canta e das frases ditas, as palavras são transmitidas com a mesma alegria e direção eufórica. Todos cantando ao mesmo tempo, com acordes maiores e vozes femininas. A música brasileira tem muito disso. No samba cantam-se desgraças em ambiente de festa, enquanto se sorri. Sim, concordamos consigo na medida em que o equilíbrio entre uma vertente e outra é agridoce.

Vocês têm uma legião de fãs considerável e as canções do grupo têm um significado muito especial para eles. Sentem que o Capitão Fausto representa, em parte, os sentimentos e as aspirações da vossa geração?
Seria errado se disséssemos algum dia que eramos a voz de uma geração. Nunca afirmamos isso e nos impulsos de fazer canções o Capitão Fausto não procurou representar alguém, apenas retratamos a banda. Muitas vezes, aquilo que escrevemos está relacionado conosco, mas temos a felicidade de algumas pessoas se identificarem com as nossas canções e isso é ótimo. Ao longo dos anos temos cada vez mais fãs e ao mesmo tempo também é verdade que uma canção composta em um ou dois anos (resultando numa música de dois minutos) é gratificante para nós, mas as pessoas desconhecem o tempo que levamos para fazê-la. Sentimos um enorme carinho quando a duração da música se alarga. Isto é, quando alguém foi bem sucedido no exame escolar, superou a sua pior fase ou vibrou num show escutando uma canção nossa, terá sempre esse momento associado ao Capitão Fausto. Somos apenas uns espectadores de tudo isso, mas não faz parte da personalidade do grupo estarmos num pedestal ou sentir alguma superioridade. No entanto, pela forma como o Tomás escreve as letras e pelo fato de fazermos parte de uma geração é normal que existam semelhanças sobre as coisas que falamos com o público que escuta a banda. Estamos inseridos numa massa de gente que tem circunstâncias comuns e não vivemos de uma maneira específica como se vive nesta zona de Lisboa. A nossa geração tem os mesmos problemas. É difícil arrancar uma vida profissional e casar. Lidamos com angústias e dificuldades idênticas. Em virtude das adversidades serem tão evidentes e recorrentes a todo o mundo e a nós também, as pessoas conseguem identificar isso e chamam-nos “a voz de uma geração”. Mas não é de todo a nossa intenção, porque as letras do Capitão Fausto são mais pessoais e vêm de dentro.

Recentemente, o Capitão Fausto fez um tour de clubes “Até Que Enfim!” e irá iniciar uma extensa turnê portuguesa de apresentação do novo álbum. O que podemos esperar dos novos shows?
O Capitão Fausto tem uma forma semelhante de encarar todas as apresentações e ensaios que sucedem à edição de um disco. Costumamos dar primazia às canções do novo trabalho, mas inserimos esses temas em faixas de álbuns passados. Muitas vezes não temos tempo para preparar espetáculos especiais, mas depois de fazermos as músicas procuramos tocá-las com qualidade para as pessoas. Julgamos que esse é o exercício indicado para criar um momento único e não podemos ambicionar mais do que fazer um show melhor que o anterior.

– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Matilde Travassos / Divulgação.

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