Bebendo cerveja com Olavo Rocha (Lestics)

entrevista por Marcelo Costa

Um dos três pilares que movem o Scream & Yell hoje são as entrevistas (os outros dois são os lançamentos do Selo Scream & Yell e as pautas ibero-americanas – Conexão Latina + Portugal), e as entrevistas sempre foram um foco do site desde a primeira hora, um modo de aproximar o leitor do artista num bate papo mais à vontade, leve, mas não menos aprofundado. Em determinado momento, extrapolamos os limites da conversa com os enormes entrevistões, algo sensacional de fazer, mas chatissimo de decupar.

Dai após a frustração de “perder” o timming de decupar duas grandes entrevistas (Dinho Zampier e Adriano Cintra) surge a série “Bebendo cerveja com”, um bate papo mais curto (mas nem tanto) e mais direto acompanhado de cervejas, afinal, algumas das melhores conversas acontecem no boteco. Para a estreia desta série, o convidado é Olavo Rocha, letrista e vocalista da Lestics, que bebeu comigo uma Wittekerke Wild, uma Wäls MadLab Foeders White Oak Sour, uma Waterloo Strong Kriek, uma Dádiva Golden Stout e uma Wäls MadLab Terracota.

Na conversa, foco no disco “Breu” (2018), oitavo álbum do Lestics, que trouxe consigo um caprichado fanzine que dialoga com as letras de Olavo. Mas também houve espaço no bate papo para revisitar alguns discos da carreira da banda, debater o karma da produção artística, conversar sobre inspiração, letras, discografia e sobre ser ouvido. “Sou inspirado por tudo que está acontecendo, basicamente, mas no ‘Breu’ eu não queria nem ser panfletário nem comentar o momento”, pontua Olavo Rocha. Abra uma cerveja e nos acompanhe.

“Breu” é o oitavo disco do Lestics. Tempos atrás, conversando com Wado, ele me falava que já não estava mais tão focado na divulgação de um disco, mas sim da discografia, acho que foi na época pré-“Ivete” (2016), o nono disco dele. E ele falava isso buscando enaltecer a carreira, a trajetória. Como é, para você, ter oito discos lançados?
Caramba, já começou com uma pergunta difícil (risos)…

É que você fez um post no Facebook esses dias mais ou menos nessa linha…
Ahhh, sim, o “vida e obra”. Cara, é inevitável. Você começa a acumular uma experiência, e, hummm, experiência não é a palavra correta para falar do Lestics, porque a formação da banda muda muito. O Lestics começou com dois discos, só eu e o Umba (Umberto Serpieri), e depois entrou o (Marcelo) Patu (no terceiro álbum, “Hoje”, de 2009), que está na banda desde 2008. Dai em diante a formação sempre variou muito, e cada disco é uma descoberta da dinâmica com essas formações. E apesar dessa formação estável da banda ser só eu mesmo, é muito evidente que o som do Lestics não existe em função do que eu faço.

Hummm…
Não mesmo (risos). Tem um tanto do meu trabalho, porque a letra é muito importante para a banda, e também as melodias vocais, o que dentro do pop também é muito importante…

Mas tirando os dois primeiros com o Umberto, que são discos bem folks, acústicos, você acha tão distante assim a sonoridade do “Hoje” (2009) para o “Breu” (2018), ou seja, do terceiro para o oitavo disco?
O “Hoje” é um disco problemático! E você foi o cara que botou o dedo na ferida e disse “esse disco não rolou”.

Tem duas músicas fodas ali!
Eu adoro TODAS as músicas, tirando uma de que não curto muito. As composições são bacanas, porém o disco não rolou. Ele não soa como ele deveria ou poderia soar. E você não se esquivou de dizer e falou isso com muita elegância, mas com contundência. E ele não rolou. É foda dizer isso, mas não rolou. Quando você acaba de fazer um disco, você não tem muita noção, porque você está envolvido em todo o processo. Você não saca o que aconteceu.

Woody Allen fala muito isso, sobre o quanto todos os filmes são perfeitos no papel. Dai vem a produção…
Você fica muito envolvido, e é preciso respiro e distanciamento para entender mais ou menos o que aconteceu. É obvio que a minha impressão a respeito das coisas é variável, mas a minha impressão sobre o “Hoje” é razoavelmente consolidada como um disco que o som dele não funcionou. Tanto que vez em quando eu e Patu ficamos: “Vamos regravar o ‘Hoje’ para ele soar como as músicas deveriam soar?” (risos). Nós estávamos muito precipitados, na pilha de gravar logo, mas eu sei como essas músicas soam, e elas não soam no disco como deveriam.

Ok, mas sonoramente você o acha tão distante do “Breu”?
Sim e não. Não sei diagnosticar isso.

Bem, eu conheço o som do Lestics, e gosto pra caramba…
Você não vê essa “fratura” devido às mudanças das formações?

Não. Eu vejo uma sequencia natural de álbuns. Ok, vamos ter uns mais ensolarados, dentro do que se pode dizer ensolarado no som derivado da poética de Olavo Rocha (risos), e uns mais escuros, e o nome “Breu” não poderia ser mais perfeito para este último…
Sim, eu entendo. Tem uma lógica. O que estou dizendo é: eu preciso muito da banda. Não vejo o Lestics como “Olavo + pessoas”. É sempre um trabalho feito muito junto e a sonoridade deriva disso. Por exemplo, o “Torto” (2016) foi feito em nove ensaios. Estávamos com as músicas rascunhadas e entramos com a banda em estúdio saindo sempre com uma música inteira após cada ensaio. 9 ensaios, 9 músicas. Gravamos o disco ao vivo no estúdio em que a gente fez as músicas. Só é possível fazer isso se a banda estiver muito colada. Com o “Breu” (2018) não seguimos o mesmo processo. Desta vez escrevi as letras e o pessoal mandava para mim fragmentos, melodias ou mesmo músicas mais ou menos prontas, e eu colocava as melodias vocais e a gente chegava ao estúdio e emendava tudo. Mas a gente sempre saia com a ideia de mais ou menos como queríamos o disco, e fomos lapidando para que o disco chegasse, do ponto A para o ponto B, mais ou menos como a gente planejou junto lá atrás. (Pensativo). Eu não sei te falar, na real. A formação mudou do “Hoje” (2009) para “Aos Abutres” (2010), pois mudou o baterista. No “Seis” (2014) fomos fazer o disco e não tínhamos guitarrista! O Patu fez as músicas no violão e a gente ensaiava assim…

Gosto muito do “Seis”, do som dele…
Eu também gosto bastante dele, e chegamos na coragem. Falamos para o produtor Marcio Tucunduva: “Temos um disco e queremos gravar”. E gravamos. Trouxemos uma galera para poder tocar junto e construir a sonoridade do disco. Acho que o Marcio não acreditava que o disco fosse soar como ele soou no final, mas a gente sabia que o disco iria soar bacana. A gente precisa confiar no processo. Lógico, aconteceram algumas coisas no percurso que fizeram ele soar ainda mais do caralho, na minha opinião. O Neymar Dias veio fazer arranjo de cordas para o disco e os arranjos dele ficaram muito bonitos. Tem o Bocato, que entrou para fazer o trombone na abertura e, cara, não é porque simplesmente ele é fodão, porque ele é o Bocato, mas sim porque ele tem uma sensibilidade muito foda para música. Ele chegou para gravar e pediu: “Deixa eu ouvir a músca”. E começou: “Eu vou fazer uma frase assim porque a letra está dizendo tal coisa e eu quero responder isso”. Não é todo mundo que tem essa sensibilidade, de ouvir a música uma vez e ter alguma coisa para dizer sobre isso, e conversar com a música.

Dentro desse papo de discografia, onde o “Breu” se encaixa?
Ele tem uma produção em que a gente procurou lapidar melhor em comparação com outras coisas que havíamos feito. Repetimos a experiência do “Seis”, de trazer outras pessoas para tocarem junto. Queríamos um disco em que a produção enriquecesse o resultado final, e nisso ele é diferente do “Torto”, em que queríamos um disco cru, de rock, baixo, guitarra e bateria. Dessa vez queríamos mais. Essa foi a primeira vez que trabalhamos com um percussionista mesmo (Wellington Sancho), e percussão é um negócio muito rico. Trouxemos o Beto Sporleder para tocar flauta e sax e ele fez um trabalho lindo. E, por fim, o Guilherme Ribeiro, que é um cara que já tinha tocado teclado com a gente, ou seja, com quem temos uma relação mais próxima. “Breu” é um disco que eu apostava que iria ficar legal porque as letras são bacanas, e eu prestei mais atenção na carpintaria das letras do que havia feito no “Torto”…

Entrando no assunto letras, o que te inspira?
Sou inspirado por tudo que está acontecendo, basicamente. No “Breu” eu não queria nem ser panfletário nem comentar o momento. Acho que o “Torto” é bem mais explicito nisso, sobre o momento. Em “Cálculo e Memória”, escrevo: “O rei desfila nu e excitado / à frente da parada militar /Um globo ocular é arrancado /pra cada nota que a banda errar”. É um brother meu que teve o olho arrancado com tiro de bala de borracha da PM. Dentro do modo como consigo me expressar poeticamente, isso é algo mais explicito. E, na real, é bem isso: não sei dizer de outro jeito. Digo do jeito que dou conta, e tento colocar as coisas que sinto e vejo dentro da maneira que posso. Não consigo sempre colocar senso de humor nas coisas, e se conseguisse, faria mais. Algumas das letras (que escrevi e) de que mais gosto são letras que consegui injetar senso de humor, e os letristas que mais admiro são capazes de fazer isso…

Quem são eles?
Aldir Blanc, Bob Dylan, Chico Buarque, Leonard Cohen… não vou sair dos óbvios (risos). Mas, voltando, alguma coisa precisa sair do esquematismo, e o humor (que pode ser sombrio) é uma coisa bacana de fazer. Gosto muito do Thomas Bernhard, por exemplo, que é um escritor absolutamente sombrio, mas que tem um humor. Kafka tem humor – se você for a fim de enxergar isso nele. Quando consigo injetar (humor) na letra, sinto que fui mais bem sucedido. Tento também utilizar algo que há muito na música caipira, que é a narrativa, e, também, algo que permita que eu imagine outra situação, e invente. O “Breu” traz isso. A música “Mais do Que Isso”, por exemplo, mistura narrativa temporal e criação.

Quais os momentos que você considera os seus melhores em letra, tipo “aqui eu acertei a mão”?
Acho que acertei em “Tempo de Partir” (do álbum “Seis”), gosto desse aspecto narrativo da letra. Gosto da graça de “Enquanto Espero” (do disco “História Universal do Esquecimento”) e acho que “Mais do Que Isso” (do “Breu”) é uma letra bem resolvida.

Você é um cara que mexe bastante com quadrinhos, e por que só agora, no oitavo disco, vocês pensaram em fazer um fanzine junto com o álbum? (risos)
Eu fiz muito fanzine, cara! O primeiro fanzine que fiz eu ainda era bem moleque, e ele era mimeografado. Era muito tosco, mas já mostrava meu gosto por quadrinhos, por música, estava tudo mais ou menos proto proto proto colocado lá. Não sei por que nunca fiz para o Lestics, não faz muito sentido não ter feito. O Guilherme (Caldas) fez a capa do primeiro disco do Lestics e dos três singles que lançamos em 2015 (“A Balada do Velho Crocodilo”, “Chegar ao Fundo” e “Cicatriz”) além da capa do “Breu”, que ficou do caralho. Não sei por que não fizemos antes, mas o motivo de fazer agora foi o seguinte: eu estava muito cansado das redes sociais, muito mesmo, e pensei “foda-se”. Não vou ficar divulgando porra nenhuma no Twitter, compartilhando no Facebook, vou procurar outro jeito, velho, físico, material, e vou divulgar o disco assim. Mas… como fazer? Pensei no fanzine, em chamar uns brothers e fazer como eu fazia em 1992. Chamei o Guilherme e também o Murilo Martins, a gente chegou a fazer um fanzine junto quando entrei na ECA, e esse fanzine depois acabou virando o Candyland, que virou livro. O Guilherme falou: “Beleza”. Mas o Murilinho, que é muito mais agilizado e pilhado que eu, falou: “Pô, legal a ideia. Posso chamar mais gente pra fazer?”. Ele começou a agitar e eu também comecei a chamar mais uma galera pra fazer e resultou nessa turma toda. Tem gente que eu já tinha trabalhado junto, gente que era amiga, conhecido, e gente que eu só vim a conhecer trabalhando no zine. E foi do caralho para mim. Não mexi no negócio, só entreguei as letras e fiquei muito feliz com o resultado final. O fanzine ficou bonito, sensível. Ajuda a desdobrar algumas coisas que estão implícitas nas letras, no que o disco quer dizer, e me interessa muito esse desdobramento para outras linguagens. E foi demais lidar com pessoas que trabalham com artes gráficas, dramaturgia, fotografia, literatura, porque sou apaixonado por essas coisas também. Pra mim fez todo sentido juntar essas pessoas e celebrar isso tudo. Foi uma alegria. O “Cidade das Águas” já tinha algo assim…

Você acha que para o nono disco já virá uma coisa assim ou foi acidental, só do “Breu”?
Não foi acidental, e pode ser um grande autoengano, mas boto na minha cabeça que não quero fazer algo igual. Nunca quero fazer a mesma coisa. Quem olha de fora pode achar tudo parecido (risos), mas dentro da minha cabeça estou fazendo coisas diferentes. Me incomoda muito qualquer ideia de repetição porque “foi bacana”. Não sou um cara muito embrenhado ou bem relacionando no meio musical. Sou muito tímido, muito na minha…

Te frustra não ser tão bem relacionado? Olhando de fora, vocês têm grandes discos, grandes letras, são umas das bandas do coração deste site, e às vezes penso que vocês deveriam estar muito melhores posicionados neste cenário pop rock nacional do que estão, ainda que pareça que você lide muito bem com isso e que, por outro lado, a obra permaneça.
Vou começar de trás para frente: primeiro que não acredito em posteridade e permanência. São duas coisas que não fazem o menor sentido para mim. Foda-se. Isso não me move. O que me move são a meia dúzia de pessoas que curte o Lestics agora. Não me move fazer música só para mim tanto quanto não me move a perspectiva de que “um dia isso vai ser ouvido”. Não tenho nenhum interesse até porque num prazo razoavelmente longo nada irá ficar. Nada fica. Isso é uma das coisas que acho bacana em teatro: rolou agora! Não importa se tinha três pessoas na plateia. Rolou. É a eternidade possível daquilo. Tinha 100, 200, 2 mil. Foi a eternidade possível daquilo. Não faço música para registrar e ficar. Gosto das pessoas ouvirem agora, seja quantas pessoas forem.

Com relação a frustração, isso são coisas que você equilibra. Para ter projeção, ter mais… fama (na falta de uma palavra melhor), é basicamente preciso trabalhar para isso. Ou dar uma puta sorte, algo que a gente não pode ficar contando, apesar de que como dizia Nelson Rodrigues, sem sorte você não atravessa nem a rua. E o Lestics não é uma banda que trabalhou ou trabalha suficientemente para chegar ao grande público. Preciso reconhecer isso. Quem está nesse rolê de ser super conhecido está fazendo coisas que o Lestics não faz. Então não posso fazer algo aqui e esperar um resultado diferente do que a lógica diz que vai dar.

Isso é um pensamento complicado de ser tangível no território artístico porque diz que quem trabalha, independente de ser bom ou ruim (mas podendo ser ruim), pode ser dar melhor de que quem não trabalha, mesmo esse segundo sendo muito melhor. Ou seja, a qualidade da música não interessa tanto, interessa mais “trabalhar”.
Sendo 100% honesto, não sei dizer o que é uma música boa e o que é uma música ruim. Para mim, há coisas que você ouve e coisas que você não ouve. Bom ou ruim são parâmetros pessoais. Mas, por exemplo, sou uma pessoa eclética, ouço de tudo, mas não escuto qualquer coisa. Consigo ouvir prazerosamente a maioria das coisas, mas tem coisa que não rola. A vida é curta, o taxímetro está rolando, não dá para perder tempo (risos).

Já eu consigo observar músicas que são ruins, mas estão fazendo sucesso porque há um grande dinheiro investido na massificação delas.
Tem, tem, mas não sei se é ruim. Tem coisa que está tocando pra caralho porque há muito dinheiro em cima, investindo, business. Nada menos business do que o Lestics.

Para fechar, ficamos aqui um pouco mais de meia hora conversando e bebendo cerveja. Pensando que a cerveja do Sepultura é uma Weiss e a do Skank é uma Stout, estilos que não combinam nada com o som que essas bandas fazem, como seria uma cerveja do Lestics?
Acho que seria uma cerveja mais densa, mais encorpada, uma Barley Wine talvez, quem sabe uma Imperial Stout. Uma cerveja com assunto (risos).

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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