Ao vivo: Father John Misty em São Paulo

Texto por Daniel Tavares
Fotos e vídeo por Rodolfo Yuzo

Depois do segundo gol sofrido em menos de 10 minutos de jogo, o que bate no torcedor é o arrependimento por ter ido ao estádio. Se era pra ver “peia”, melhor ver na sala de casa, com os pés em cima da mesinha de centro. E quando o centroavante do time adversário dribla a zaga pela terceira vez e ainda no primeiro quarto de hora amplia o placar para um número que poucas partidas alcançam em 90 minutos, não resta nada a fazer senão levantar da cadeira e chamar o Uber. Mas, não… Tem um lateral armando um contra-ataque. Vamos esperar mais cinco minutos e ver no que dá.

Não viemos aqui falar de futebol. Viemos falar de música. E das boas. Trazido ao Brasil pela iniciativa Queremos, com produção da Popload, o cantor, compositor e multi-instrumentista Josh Tillman, 37, que viaja pelo mundo com a alcunha de Father John Misty. Com mais seis músicos na banda (a maioria, assim como ele, sem se limitar a um único instrumento), Tillman se apresentou na noite de domingo, 26 de agosto, no magnífico Auditório Simón Bolívar, no complexo arquitetônico que integra o Memorial da América Latina, sob os olhares de duas plateias e da belíssima tapeçaria recriada de Tomie Ohtake (completamente refeita após a original ter sido perdida no incêndio que consumiu o local em 2013). O próprio local, não bastasse a mágica da arquitetura de Oscar Niemeyer, guarda o mistério indissociável da memória do trágico acontecimento. “Isso aqui tudo já pegou fogo, cara!”. No meio do foyer, um pássaro (uma águia? uma pomba?) é a própria Fenix, na forma mais material que o mito pode assumir.

No palco do auditório, porém, uma surpresa, principalmente para quem nunca, nem antes do incêndio, havia pisado ali. O palco, na nave central do ambiente, com duas plateias, uma olhando para a outra. Quando o show começou, às 20h30, quem estava na plateia A gritou e aplaudiu como no início de qualquer grande show. Quem estava na plateia B até ensaiou fazer o mesmo, mas… Father John Misty estava de costas. E assim o show prosseguiu por “Nancy From Now On”, “Chateau Lobby #4 (in C for Two Virgins)” e “Only Son of the Ladiesman”. Só nesta terceira música ele faz menção de virar para a outro lado, mas continua com o microfone para a Plateia A.

Tudo bem. Já se viu muita coisa no mundo do show business. De cantores que interrompem o show para dar bronca em quem está falando ao celular a malucos como G. G. Allin. Há até um estilo que dá nome à mania de artistas muito tímidos de tocar olhando para os próprios sapatos (shoegaze). Mas ver um show inteiro de um artista de costas era algo que ninguém da Plateia B esperava. Até porque pagaram valores semelhantes aos afortunados expectadores lá do outro lado. Era claro que muitos ali estavam fazendo um esforço para curtir o show, mesmo nestas condições, mas não raro havia aqueles que pensaram em ir embora. A cada final de música, aplausos enérgicos vinham da Plateia A. Enquanto na B, eles também vinham, mas eram tímidos, aplausos shoegazers.

Na quarta música, “Disappointing Diamonds Are the Rarest of Them All”, porém o artista se vira. Lá vem o lateral Armando um contra-ataque. Finalmente, era a nossa vez. “Vou fazer o possível para olhar nos olhos de cada um de vocês, pelo menos uma vez”, ele olha, aponta o dedo e fala com o público, demonstrando também certo desconforto com a situação. E manda “Mr. Tillman”. Já mais calmos, pensamos: seria mesmo autobiográfica? Será que ele anda deixando passaportes no frigobar ou dormindo na sacada dos prédios?

A partir daí ele passa a se revezar entre um e outro lado. Às vezes cantando a canção inteira para um público (como “Total Entertainment Forever”), outras vezes, aproveitando um momento em que o violão não lhe pedia nenhuma nota e usando um segundo para virar o pedestal do microfone para o outro lado no meio da canção, como na linda “Ballad of the Dying Man”. Sem o violão em “Hangout at the Gallows”, o show fica muito melhor. Agora ele pode interpretar mais as músicas, mas não é só isso. Ele pode se movimentar por todo o palco. Um dos momentos mais belos do show vem com “Bored in the USA”, a princípio apenas ele e um pianista (depois entra o resto da banda), num show de interpretação (o que era perceptível mesmo com ele inevitavelmente tendo que ficar de costas para um dos públicos).

“Eu sou um pouco ego maníaco, então este palco é do tamanho certo para mim”. E era. Quando não tinha um violão ou teclado nas mãos ele explorava todo o palco, dançava a dança ridícula de um Mick Jagger indie, conquistava o seu público (os dois públicos) já conquistado. Mas quando ele voltava para o violão não era uma boa notícia para uma das metades, principalmente em “Please Don’t Die”, que é uma de suas composições mais bonitas. Um lado da plateia vai ter visão privilegiada, emocionar-se exatamente como saiu de casa para se emocionar. Outro lado vai ver as costas, ouvir, lembrar do videoclipe, perder a atenção, conferir as últimas mensagens no Whatsapp (aquela tia mandou mais uma daquelas correntes…). Ou tentar correr e ver se deixam entrar no outro lado ainda ema tempo de chorar no finalzinho da canção.

Mas é mesmo importante ver o rosto do cantor durante um show para meter a choradeira? Em quantos shows você já não chorou de olhos fechados? Bem, se for uma decisão sua fechar os olhos, ou se você não souber que a outra metade da plateia está chorando de olhos abertos fica tudo bem mais fácil. Continuando o show veio a meio country “I’m Writing a Novel” e a mais agitada “Date Night”, que teve palmas do público e, felizmente, não teve violão, num clima que continuou em “Hollywood Forever Cemetery Sings”. Chega a hora da belíssima “Pure Comedy“. A canção, embora um tanto pretensiosa, fala do nascimento, da criação das sociedades, do homem e suas religiões e ataca os Trumps do mundo. Impossível não se lembrar dos nossos próprios Trumps. Ao meio dela, alguém na plateia quebra o silêncio, mas fica só no “Maravilhoso!” dirigido a Father John Misty mesmo.

Em “God’s Favorite Customer”, Father John vai para o teclado. E é num momento assim que se pode elogiar o som. São três teclados agora no palco. E como a qualidade do som estava perfeita, era possível identificar cada um. A canção é belíssima. Uma daquelas canções que valem um show. A próxima é “I Love You, Honeybear”, que já vinha sendo pedida. Nela ele até desfila pelo palco na breve introdução, mas quando tem que cantar, tem que cantar para onde o pedestal do microfone está virado, pois não dá pra tocar e segurar o microfone. No meio, como em algumas anteriores, ele consegue virar o pedestal para o outro lado. No fim da canção ele derruba o tal pedestal e se liberta dele. Nessa hora o jogo já estava ganho e duvido que alguém ainda lembre-se daqueles desconfortáveis primeiros momentos de show.

É hora do bis e Father John Misty até pergunta para alguns que canção deve cantar, mas não foge ao script já estabelecido e canta “The Palace”. “Tenho certeza que vocês todos pediram por essa”, ele brinca. E ainda desce do palco para cantar um trecho junto a uma das plateias. Mas isso não é o bastante. Na setentista “Real Love Baby”, a aura teatral do auditório deixa de ser tão incisiva e todo mundo desce para junto do palco. E como já estava todo mundo ali mesmo, o “Padre João Nublado” tem a ideia que transformou aquele show em uma das experiências mais marcantes para cada um de seus fãs. “Sobe todo mundo”. E foi assim, em meio ao público, a centímetros de cada um, que ele cantou “So I’m Growing Old on Magic Mountain”. Não era apenas uma consolação para quem viu um músico cantar “Please Don’t Die” de costas. Era algo que jamais alguém pensaria em pedir. É algo que muitos ali vão contar para filhos e netos. Sabe aqueles vídeos com bandas como Rolling Stones, Deep Purple, The Doors, Beatles tocando com o público a seus pés em locais menores que os estádios que hoje eles lotam (ou lotariam, no caso das que não existem mais)? Quem esteve no Auditório Simón Bolívar deve ter se sentido em um desses vídeos. Nos olhos de cada um, a admiração aumentada por aquele artista ali tão humanizado, tão próximo, tão real. “Holy Shit” e “The Ideal Husband” fecharam o show, um show magnífico, de momentos inesperados e apagando completamente a má-impressão inicial. Ah, se o jogo começou de 3 x 0, terminou como uma goleada de 8 a 3. Se ganhar é bom, de virada é muito melhor (disso só os cardiologistas discordam).

Muitos grandes nomes já passaram pelo Auditório Simón Bolívar. A galeria de fotos no acesso à plateia já é por si só digna de visita. Não podemos afirmar que o desconforto inicial foi uma constante ou se outros arranjos impediram esta sensação. Mas podemos sugerir que, em outros shows lá (e de artistas menos dispostos a fazer o que Father John Misty fez), que o espaço seja melhor utilizado. Teria sido possível alocar a banda em uma das extremidades do palco ao invés do centro, de forma que estivesse sempre de lado para as duas partes da plateia, ou ter o cantor com um microfone na lapela, mesmo que fique silviosantesco, de forma que ele tenha sempre a liberdade para se movimentar mesmo quando está tocando violão. O fotógrafo Fernando Yokota teoriza que Father John Misty só não se virou durante as três primeiras músicas porque eram as costumeiras “três primeiras músicas”, quando os fotógrafos de shows podem realizar o seu trabalho. Father John não saberia, no entanto, que até Yokota e seus colegas de profissão, tinham sido alocados exatamente do outro lado. E só puderam registrar profissionalmente o rosto dele a partir da quarta música (quando já deveriam, pelas regras comuns a qualquer show, estar com o equipamento na mochila).

Estas coisas teriam sido úteis saber antes da revolução.

SET LIST

1. Nancy From Now On
2. Chateau Lobby #4 (in C for Two Virgins)
3. Only Son of the Ladiesman
4. Disappointing Diamonds Are the Rarest of Them All
5. Mr. Tillman
6. Total Entertainment Forever
7. Ballad of the Dying Man
8. Hangout at the Gallows
9. Bored in the USA
10. Please Don’t Die
11. I’m Writing a Novel
12. Date Night
13. Hollywood Forever Cemetery Sings
14. Pure Comedy
15. God’s Favorite Customer
16. I Love You, Honeybear
17. The Palace
18. Real Love Baby
19. So I’m Growing Old on Magic Mountain
20. Holy Shit
21. The Ideal Husband

– Daniel Tavares (Facebook) é jornalista e mora em Fortaleza. Colabora com o Scream & Yell desde 2014.
– Confira o trabalho de Rodolfo Yuzo no Instagram (@rodolfoyuzo) e no Youtube (user/RodolfoYuzo)

2 thoughts on “Ao vivo: Father John Misty em São Paulo

  1. Nunca fui no auditório Simon Bolívar mas o teatro do SESC Pompéia é assim também, com um palco central para duas plateias. O último show que eu vi lá no SESC (Lô Borges tocando o disco do tênis) eles resolveram o problema colocando metade da banda em cada lado do palco tocando de lado. Assim todo mundo conseguiu ver o show tranquilamente (e que show!)

  2. Foi bem desconfortável mesmo o começo do show por ele estar de costas para nós (Platéia B) mas não diminuiu nada a experiência em ver um ídolo, você pode ver o Father John Misty é uma coisa maravilhosa, ele é um amor de pessoa e as músicas nem se fala, a cada música era uma sensação diferente mesmo ele estando ou não de costas para tais platéias, foi sensacional e adorei a matéria de vocês porém pra mim não diminuiu em nada essa confusão no começo do show, apenas detalhe técnico que no final ele chamando todos ao palco foram muito bem resolvidos. E o alguém que gritou “MARAVILHOSO!” em Pure Comedy foi eu e nossa não podia conter mais emoções e simplesmente saíram, aquele grito não foi nada à tudo que eu passei nesse incrível show, eu amo demais o Josh e depois desse show passo a amá-lo mais ainda. Incrível e MARAVILHOSO!

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