Boteco: Seis cervejarias, Dez cervejas

por Marcelo Costa

Abrindo uma sequencia de duas cervejas por cervejaria com duas colaborativas entre a gaúcha Heilige e a alemã Freigeist Bierkultur, de Stolberg, cidade do distrito alemão de Aachen, fronteira com a Bélgica, produzidas na fábrica da primeira, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Começando pela Heilige Pflaume, uma Gose com adição de ameixa e pêssego além de trigo, sal e sementes de coentro. Na taça, uma cerveja de coloração amarela levemente turva e dourada exibe um creme branco de boa formação e rápida dispersão. No nariz, percepção de acidez e de sal em primeiro plano, com coentro e pêssego na base. Na boca, o primeiro toque traz doçura rápida (de trigo e pêssego) no primeiro toque seguida no segundo seguinte por salgado suave, secura e acidez potente. A textura é adstringente, seca e frisante bem leve. Dai pra frente, uma Gose de primeira, deliciosa e refrescante, com salgado dominante, mas equilibrado, e pêssego surgindo no trecho final. No retrogosto, adstringência baixa, salgadinho, pêssego e trigo. Apaixonado!

A segunda colaborativa entre a Heilige e a Freigeist é a Churrasco Nightmare, uma Smoked Weizenbock com adição de salvia, tomilho e alecrim. De coloração amarela puxada para o dourado (quando o âmbar era esperado devido a expectativa de malte tostado / defumado) com creme branco de boa formação e média alta retenção, a Churrasco Nightmare apresenta um aroma intensamente condimentado e muito pouco “smoked” – na verdade, praticamente nada. E dá-lhe de salvia, tomilho e alecrim! Na boca, uma replicação perfeita do aroma, com os condimentos marcando o primeiro toque, mas deixando a fumaça aparecer um tiquinho mais um pouco pra frente. A textura sobre a língua é suave e levemente picante e, dai pra frente, é a Copa do Mundo do Tempero, com salvia, tomilho e alecrim goleando o smoked, o trigo, os 22 IBUs de amargor, e tudo mais que aparecer na frente. No final, mais tomilho que fumaça. E no retrogosto, um pouquinho de cada tempero e uma fumacinha beeeeem discreta. Esperava mais.

Da Suécia, estreando por aqui, surge a Nils Oscar Brewery, cervejaria fundada em Estocolmo em 1996, que utiliza malte, cevada e trigo próprios, cultivados em sua fazenda em Tärnö Manor, a 140 km ao sul da capital. De suas duas cervejas nesta série, a primeira é uma Scotch Ale de coloração âmbar escura puxada para o marrom com creme bege de média formação e boa retenção. No aroma, percepção de frutas escuras, calda de ameixa, caramelo levemente tostado, açúcar mascavo, café e maple syrup. Na boca, doçura de calda de ameixa no primeiro toque seguida de leve café, amargor herbal bem sutil e mais doçura. Os 8.2% de álcool são bem sutis, mas perceptíveis. A textura é sedosa, com certo licoroso sobre a língua, que também percebe o álcool com discrição. Dai pra frente, surge uma Wee Heavy bem adocicada, mas bastante saborosa. No final, presença suave de álcool e de maple syrup. No retrogosto, frutas escuras, maple, açúcar mascavo e leve café puxado pra cappuccino. Delicinha.

A segunda da Nils Oscar Brewery é a Celebration Barley Wine, cuja receita (com sete tipos de maltes e os lúpulos Sorachi, Cascade, Magnum e Fuggles) foi criada para celebrar o 70º aniversário do fundador da cervejaria. De coloração âmbar com creme bege claro de média formação e rápida dispersão (típico do estilo), a Nils Oscar Celebration Barley Wine exibe um aroma com percepção de doçura caramelada, de frutas secas, escuras, um pouco de figo, nozes, melaço e laranja – assim que aquece, o álcool (9.9%) fica um pouco mais perceptível no nariz. Na boca, doçura caramelada suave no primeiro toque seguida de leve picância alcoólica (principalmente com a cerveja mais aquecida) e mais presença de laranja do que no aroma, ainda que caramelizada pela doçura e pelo álcool. A textura inicia picante, e depois fica suave (nunca licorosa) com o álcool marcando delicadamente a língua. Dai para frente, uma boa Barley Wine que traz a pegada caramelada do estilo, mas acrescenta um leve cítrico. No final, leve picância alcoólica, doçura mais suave e leve cítrico, bem distante, mas perceptível. Boa!

De Estocolmo para o Rio de Janeiro com a 14ª cerveja da 3Cariocas a passar por aqui, desta vez com a primeira lager produzida pelos caras, Same Same But Different: “Priorizando um alto drinkability, nos inspiramos nas deliciosas Kellerpils da nova geração de cervejas artesanais da Alemanha, que consistem em uma German Pils não filtrada e com adições extras de lúpulos de aroma (Cascade e Chinook no dry-hopping). De coloração dourada levemente turva com creme branco de ótima formação e permanência, a 3Cariocas Same Same But Different exibe um aroma farto de notas florais e herbais sobre uma base suave adocicada. Na boca, doçura rápida mais herbal e cítrico juntos no primeiro toque seguido de refrescancia e amargor bem suave. A textura sobre a língua é leve com suave cremosidade na sequencia (aumentando a sensação de amargor) e, dai pra frente, o conjunto reforça a sensação de que essa é uma das melhores lagers do país ao lado da Dum Jan Kubis. No final, amargozinho discreto. No retrogosto, bastante herbal, leve adstringência e amargor além de refrescancia. Excelente.

A segunda da 3Cariocas é a segunda versão da Russian Imperial Stout da casa, a Quebra Cabeça II, cuja única mudança na receita em relação a primeira é a troca do morango da estreia por framboesa agora mantendo a adição de baunilha, nibs de cacau e lactose. De coloração marrom extremamente escura com creme bege espesso de boa formação e rápida dispersão, a 3Cariocas Quebra Cabeça II exibe um aroma maravilhoso que combina framboesa, chocolate ao leite, chocolate amargo e baunilha – tudo que está adicionado aparece lindamente no nariz. Na boca, uma excelente replicação do aroma e da proposta com doçura achocolatada (dá-lhe cacau e lactose) no primeiro toque seguida de leve amargor e álcool muito bem inserido (são apenas 12%!). A textura começa suave e vai ficando sedosa, sem, no entanto, se tornar licorosa (num espesso que lembra calda de chocolate). Dai pra frente, um conjunto absolutamente brilhante, que entrega tudo que o rótulo (e os ingredientes adicionados) antecipa. No final, doçura achocolata e leve café. No retrogosto, chocolate, café, baunilha, framboesa e amor. Uou!

Do Rio de Janeiro para a Ellon, na Escócia, com duas novidades da Brewdog, ausente deste espaço já faz um bom tempo (a última havia sido a Victory U-Boat em junho de 2017, exatos 12 meses sem Brewdog por aqui), mas que retorna primeiro com a Choco Libre, uma Mexican Hot (nem tão hot assim) Imperial Chocolate Stout cuja receita destaca a junção de cevada com trigo e aveia mais adição de nibs de cacau, pimenta, café, baunilha e canela. Lançada em dezembro de 2017, a Brewdog Choco Libre exibe um aroma bastante tímido para o estilo, mas deixando perceber chocolate ao leite, baunilha, cacau e leve café. Na boca, festa de notas doces no primeiro toque com predomínio de chocolate ao leite, baunilha e cacau seguidos de leve café um apimentado discretíssimo, que não honra o “Mexican” do nome, ainda que soe interessante a delicadeza com que a pimenta apareça na receita, aquecendo a garganta muito levemente. A textura é suave e elegante, quase sedosa, com leve picância. Dai em diante segue-se um conjunto muito bom para uma RIS com pimenta, ainda que o Mexican no nome faça esperar outra coisa. No final, calor alcoólico (8.2%), chocolate (98%) e pimenta (2%). No retrogosto, cacau, café bem suave e chocolate ao leite. E, ahh, pimenta bem sutil.

Mantendo a sutileza como meta, algo estranho em se tratando de Brewdog, a Indie Pale Ale, outra novidade recente no catálogo dos escoceses, é uma English Pale Ale (ou seja, esqueça toda revolução norte-americana dos últimos 40 anos) com os lúpulos Cara, Munich, Pale e trigo mais os lúpulos made in USA Cascade, Columbus, Simcoe. O resultado é uma cerveja de coloração dourada com creme branco de média formação e boa retenção. No nariz, um cítrico bastante leve sugerindo discreta tangerina sobre uma base de malte que remete a biscoito e também traz caramelo. Na boca, muita leveza cítrica no primeiro toque (quase imperceptível) seguida de caramelo e biscoito. A textura é seca e levemente picante, metálica. Dai pra frente surge um conjunto bastante irregular, que não mantém a elegância maltada das antigas English Pale Ale, nem consegue criar um perfil de lúpulo que soe agradável ao paladar. O final é amarguinho (40 IBUs). No retrogosto, leve adstringência, biscoito, caramelo, cítrico sutil. Indicada apenas para quem está começando…

Da Escócia para a Dinamarca com duas novidades da Mikkeller, de volta ao país via Clubeer. A primeira delas é a I Don’t Have A Red Shrimp, uma Pilsener dourada com leve turbidez a frio e creme branco de boa formação e média alta retenção. No nariz, notas herbais predominam com sugestão de pinho, grama cortada e ervas, mas também é possível perceber um leve aceno cítrico (limão e laranja) além de derivados de malte (biscoito e cereais). Na boca, uma boa surpresa: frescor e rápida doçura cítrica no primeiro toque seguido de herbal, secura e amargor caprichado (eles não dizem quanto, mas soa algo entre 30 e 40 IBUs), limpo e refrescante. A textura é seca e levemente picante. Dai pra frente, uma bela Pilsener que entrega refrescancia, notas frescas e deliciosas derivadas da lupulagem (muito herbal, mas também cítrico) além de doçura suave. O final é seco e herbal. No retrogosto, presença assertiva de amargor, herbal, cítrico e doçura além de refrescancia. Ótima!

Fechando a sequencia com a Mikkeller Enfie o Dedo na Terra, a Stick a Finger In The Soil, uma (Session) American Pale Ale que apresenta uma coloração âmbar alaranjada levemente dourada com creme branco de boa formação e média retenção. No nariz, uma combinação amistosa de notas cítricas (puxado para toranja, mas também com leve pêssego) e herbais (bem leve pinho) com percepção de feno, cereais e algumas ervas. Na boca, equilíbrio entre cítrico e herbal já no primeiro toque tendendo ao segundo na sequencia, com percepção de doçura maltada, cereais, minerais e amargor comportado. A textura é suave, com leve picância (há um leve metálico). Dai pra frente, uma boa APA, equilibrada, saborosa e com nível alcoólico de Session (4.5%). No final, amargor bem leve puxado para o herbal. No retrogosto, adstringência bem suave, toranja, pinho, doçura e refrescancia. Boa APA.


Balanço
Começando de maneira excepcional com a primeira de duas colabs da Heilige com a Freigeist, Pflaume, uma gose incrível com salgado marcante e pêssego delicado. A segunda colab entre Heilige e Freigeist é bacana, mas inferior, muito porque os temperos dominaram o estilo, e o descaracterizaram. Mas vale a pena ir atrás. Agora na Suécia com duas Nils Oscar: a primeira é uma Scotch Ale deliciosa, ainda que bem doce. Já a Celebration Barley Wine, a segunda, acrescenta uma leve sugestão de geleia de laranja no conjunto, saboroso. Partiu Brasil, partiu Rio com duas 3Cariocas: a Same Same But Different mantém o excelente padrão de qualidade da casa até no estilo lager. Das melhores do Brasil (ao lado da Jan Kubis). Seguindo com a 3Cariocas Quebra-Cabeça II, uma cerveja absolutamente brilhante. Já a Brewdog Choco Livre é uma RIS para quem está começando, mas, ainda assim, bastante degustável. Não dá para dizer o mesmo da Brewdog Indie Pale Ale, uma cerveja careta com a maioria das mainstream, e o triplo do preço delas. Fuja. Outra boa surpresa, a Mikkeller I Don’t Have A Red Shrimp chegou fresquissima, crocante, deliciosa. Fechando, a Mikkeller Stick a Finger In The Soil é bem saborosa, ainda que com um conjunto notadamente inferior ao da anterior.

Heilige Freigeist Pflaume
– Produto: Gose
– Nacionalidade: Brasil
– Graduação alcoólica: 4.8%
– Nota: 4/5

Heilige Freigeist Churrasco Nightmare
– Produto: Gose
– Nacionalidade: Brasil
– Graduação alcoólica: 7.6%
– Nota: 3.42/5

Nils Oscar Scotch Ale
– Produto: Wee Heavy
– Nacionalidade: Suécia
– Graduação alcoólica: 8.2%
– Nota: 3.54/5

Nils Oscar Barley Wine
– Produto: Barley Wine
– Nacionalidade: Suécia
– Graduação alcoólica: 9.9%
– Nota: 3.53/5

3Cariocas Same Same But Different
– Produto: German Pilsener
– Nacionalidade: Brasil
– Graduação alcoólica: 5.5%
– Nota: 3.75/5

3Cariocas Quebra-Cabeça II
– Produto: Russian Imperial Stout
– Nacionalidade: Brasil
– Graduação alcoólica: 12%
– Nota: 4.10/5

Brewdog Choco Livre
– Produto: Russian Imperial Stout
– Nacionalidade: Escócia
– Graduação alcoólica: 8.2%
– Nota: 3.74/5

Brewdog Indie Pale Ale
– Produto: English Pale Ale
– Nacionalidade: Escócia
– Graduação alcoólica: 4.8%
– Nota: 2.10/5

Mikkeller I Don’t Have A Red Shrimp
– Produto: Pilsener
– Nacionalidade: Dinamarca
– Graduação alcoólica: 4.5%
– Nota: 3.76/5

Mikkeller Stick a Finger In The Soil
– Produto: American Pale Ale
– Nacionalidade: Dinamarca
– Graduação alcoólica: 4.5%
– Nota: 3.32/5

Leia também
– Top 1001 Cervejas, por Marcelo Costa (aqui)
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