Música: “Ofertório”, de Caetano, Moreno, Zeca e Tom Veloso

por Renan Guerra

Podem chamar Caetano de falastrão, do tipo que dá opiniões que ninguém pediu, mas é fato que ele é uma figura política importante no país. Caê não tem medo de apoiar candidatos, dá a cara à tapa e assume suas posições com ousadia, apesar de todo ódio que isso possa gerar. Caetano já votou no PSDB, no PT, já defendeu Marina, agora apoia Ciro e ainda canta em favor do MTST.

Considerando esse histórico de Caetano (e o cenário politicamente caótico do Brasil) é curiosa sua opção por um disco no maior estilo um-banquinho-e-um-violão, que deixa de lado quaisquer tensões que pudessem surgir: política, sexo e questões espinhosas ficam de fora do repertório. O novo disco, “Ofertório”, ao lado dos filhos Moreno, Zeca e Tom, é um disco de canções de amor e de delicadezas, que nada tem a ver com o nosso momento atual – para o bem e para o mal.

A reunião familiar – organizada por Caetano como uma forma de ficar mais próximo dos filhos – é bela, o encontro geracional é instigante e a celebração que eles fazem das mulheres que os construíram é singular (pequenas homenagens surgem a Dona Canô, Dedé Gadelha e Paula Lavigne). Por outro lado, o romantismo idílico lembra os tempos de ditadura militar, quando o Pasquim pegava no pé dos desbundados, que preferiam ficar numa “qualquer coisa, quase pra lá de Marrakesh”, do que encarar o cenário político nacional.

 

Curiosamente, “Ofertório”, show lançado em disco e DVD, abre com “Alegria, Alegria”, clássico seminal de Veloso de 1968, para na sequência concatenar-se com “O Seu Amor” (1976), canção de Gilberto Gil, que joga com o lema ditatorial “Brasil, ame-o ou deixe-o”. A faixa foi originalmente gravada pelo supergrupo Doces Bárbaros, o tal grupo acusado repetidamente de ser despolitizado.

Essas escolhas de repertório podem refletir essa celebração familiar, de pais & filhos, que optam por um clima mais positivo, mesmo assim, não é de se ignorar o fato de que dois dos filhos integrantes da banda são adeptos da Igreja Universal, espaço conhecido por suas atitudes homofóbicas, machistas e de intolerância religiosa com religiões afro. Essa informação “é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar” quando se pensa que somem do repertório todas as canções de Caetano que falam de entidades afro, que apontam questões políticas fortes ou que tem certa dubiedade sexual – única exceção aqui é a intensa e quase erótica “A Tua Presença Morena”.

Tenham os meninos voz ativa ou não nessa construção de repertório, é fato de que “Ofertório” é claramente um disco inofensivo se posto frente ao cenário atual. Poeticamente, por outro lado, não deixa de ser um interessante trabalho que celebra uma família que é fundamental na cultura popular brasileira do século XX. Caetano e os filhos perpassam por diferentes canções de Caetano e Gil, muitas delas já entoadas por Maria Bethânia, tia dos meninos, e por Gal Costa – o quarteto Doce Bárbaro baiano.

Apesar de tudo, mesmo sendo Caetano ateu e os meninos crentes, há ainda no disco uma reverberação de certos simbolismos religiosos: muitas canções surgem nessa intenção de “quase orações”. A canção-título do projeto, “Ofertório”, por exemplo, foi composta especialmente para a missa de aniversário de 90 anos de Dona Canô, nos anos 90. A faixa, aliás, resume muito das intenções desse projeto, quando diz baixinho “uma prova de que a vida é boa / e de que a beleza vence o mal”.

Como cartão de visitas dos filhos, surgem composições inéditas, que apresentam os diferentes olhares dos rebentos. Moreno, o mais velho, já tem longa carreira solo e já trabalhou junto da Orquestra Imperial – um show realizado ao lado de seu pai, inclusive, foi o pontapé inicial para esse projeto com os três filhos. Tom, o mais novo, já possui um trabalho com a banda Dônica – projeto que soa mediano em seu arremedo de Clube da Esquina.

Já Zeca, o do meio, acaba sendo a real surpresa do disco: tímido, quieto e cantando em falsete, é de sua autoria o hit “Todo Homem”, que competiu com Anitta nos virais de plataformas como o Spotify e que se tornou trilha da série global “Onde Nascem os Fortes”. Sua voz lânguida é um alento e casa divinamente com o universo orquestrado no disco. Na voz de Zeca, a belíssima “Alguém Cantando” ganha nova vida. De versos simples, é uma canção perfeitinha de Caetano e é um dos melhores achados desse baú do baiano.

Dentre as outras releituras positivas estão a bonita “Boas Vindas”, que havia sido composta por Caetano para celebrar o nascimento de Zeca, em 1991; e “Gente”, de versos lindos e fortes, como “gente pobre arrancando a vida com a mão”. Destacam-se também as canções de Moreno aqui resgatadas: “How Beautiful Could a Being Be” soa bonita com sua base de palmas; já “Um Passo à Frente” ganha o charme do prato-e-faca enquanto instrumento; e “Deusa do Amor” ressurge ainda mais bela em sua delicadeza romântica. (Talvez, “Júlia / Moreno”, lá do disco “Araçá Azul”, merecesse um resgate nesse repertório: a canção era um canto de Caetano para o filho que ainda nasceria – no caso, “um quiçá Moreno”).

Por outro lado, há aquelas canções que soam desnecessárias e que aparecem mais como necessidade de agradar ao público do show. “Força Estranha” soa mediana, bem aquém de versões anteriores de Gal Costa e do próprio Caetano. Já “Leãozinho” é marcado por um sonoro “ownnn” da plateia logo aos primeiros acordes, o que já denota o porquê de sua presença no disco: a plateia ama. Não se sabe o motivo, mas essa canção pueril segue sendo um hit, mesmo que aqui soe sonolenta.

Um dos momentos mais belos do disco, no entanto, acaba surgindo na voz de Caetano, solitário e frágil, a cantar “Não Me Arrependo”, uma canção carregada de força – é difícil passar incólume pela simplicidade do arranjo, que dá espaço para a poesia assumir a dor e a delícia de ser o que se é.

Do lado mais festivo desse encontro temos a inédita “Alexandrinos”, espécie de funk cabeçudo bem à moda Caetano; e uma bela releitura de “Um Canto de Afoxé Para O Bloco do Ilê”, faixa de celebração que Caetano havia gravado com um pequenino Moreno lá no disco “Cores, Nomes”, de 1982. Além destas, como belo fecho do disco há o samba “Tá Escrito”, do Grupo Revelação, que encerra essa reunião familiar de forma solar, ecoando o verso “manda essa tristeza embora”.

De 2010 pra cá, Caetano lançou diferentes DVDs, desde os comerciais e sem graça “Caetano Veloso e Maria Gadú – Multishow Ao Vivo” (2011) e “Ivete, Gil e Caetano” (2012), até seu show celebrativo ao lado de Gil, “Dois Amigos, Um Século de Música” (2015). Nesse retrospecto, “Ofertório” surge um tanto quanto mais interessante, por mostrar facetas um pouco mais novas e frescas, mesmo que em sua construção minimalista.

No final das contas, acaba por ser um encontro muito pessoal e de família, que certamente emocionaria Dona Canô, a grande matriarca. Para nós, os meros ouvintes que não são da família Veloso, o disco acaba indo de momentos de calorosa beleza a outros completamente banais e inofensivos. Nesse sentido, o ao vivo de uma hora e meia não funciona em disco: vale mesmo é pular os momentos repetitivos e focar nas pequenas pérolas encontradas aqui e ali.

– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha. Escreve para o Scream & Yell desde 2014.

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