entrevista por Carime Elmor
Lanny Gordin e sua guitarra baseada no “free total” de sua mente foram gravadas por Gregorio Gananian, que dirigiu um documentário-mandala chamado “Inaudito” (2018), criado a partir de uma junção de performances do personagem cruzando Brasil e China com a liberdade da mente de ir e vir para onde quiser, de maneira desterritorializada. Danielly O.M.M., artista plástica, foi quem fez a produção executiva, direção de arte e participou da montagem. Um registro de happenings, que relaciona-se ao trabalho artístico e empírico de ambos os criadores, também juntou-se à música. Danielly grava discos experimentais em seu projeto “OMM SOM” e Gregório é um estudioso e pesquisador da música, por consequência, “Inaudito”, é extremamente sensível ao som. A trilha sonora pensada em três partes, entre graves, médios e agudos, foi concebidas por Negro Leo, Bruno Schiavo, Dino Vicente e Felipe Ribeiro. Há ainda vários momentos em que a própria guitarra de Lanny, captada na hora, torna-se a própria trilha.
Apesar de ser um documentário que coloca a figura, “loucura” e liberdade do som de guitarra de Lanny no centro, o primeiro longa-metragem de Gregório e Danielly vai de encontro à maneira de contar história dos filmes biográficos. “Estes documentários musicais, boa parte deles eu gosto do documento, mas não sei se gosto tanto do filme”, diz o diretor. O know-how de projetos multimídias que desenvolveram, por exemplo, no espetáculo Sinfonia de Jards (inclusive Macalé dá depoimento no longa), somado a um método de montagem inovador que criaram para si mesmos, fez com que a montagem ganhasse um caráter analógico, em película, mesmo que filmado no digital, e uma fluidez e liberdade de conexão das imagens análogas ao inconsciente.
Gregório estudou filosofia, e há contribuições de Félix Guattari e Gilles Deleuze, filósofos franceses pós-modernos, na estrutura de pensamento de sua criação. “Eu com ele, na direção, foi como se estivéssemos em uma jam session juntos”. Suas próprias conversas com Lanny iam para este lugar outro que permitiu o filme ser contado por frases soltas ditas pelo guitarrista nascido em Xangai, mas que vive no Brasil e gravou com os principais artistas brasileiros, com seu nome em muitos discos da Tropicália. Aliado à isso, o som e a captação de imagens elaboradas e filmadas como ficção, de uma beleza e expansão inigualável, tornam a experiência de se assistir “Inaudito” próxima a de um filme de arte. Com equipe e orçamento limitado, as primeiras filmagens começaram na China, com Toni Nogueira assinando a direção de fotografia e fazendo câmera, som direto por Guilherme Shinji, produção executiva, além de Gregório e Dani, Sergio Gagliardi-Gag Antonio Carlos Nogueira e Wellington Darwin. O desenho de som e de Dino Vicente, e a edição e mixagem por Sérgio Abdalla. O filme foi vencedor da Olhos Livres na 21ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Confira o bate papo!
A Danni (Danielly O.M.M.) trabalha com artes plásticas, isso acabou sendo um fator para trazer uma plasticidade para o filme, transformar sua linguagem, apesar de ser um documentário?
“Inaudito” é nosso primeiro longa-metragem, mas já desenvolvemos outras coisas. Eu dirigia um espetáculo com o Jards Macalé no Teatro Oficina, chamado “Sinfonia de Jards”, e a Dani fez a cenografia. Por isso que conheci o Lanny Gordin. Era uma grande instalação com tecidos e projeções, isso foi há 7 anos. Eu e a Dani já vínhamos pesquisando projeção e houve este encontro. O Lanny participou, ele era o único músico convidado.
E como foi esse primeiro encontro com o Lanny? O que despertou em vocês? Neste mesmo dia vocês já pensaram que seria interessante fazer o filme com ele?
No que eu vi Lanny, imediatamente a gente teve uma relação quase telepática, de harmonia e de amor. E a Dani ficou muito amiga da Cristina, esposa do Lanny. Fomos ao espaço de um amigo poeta, Gabriel Kerhart, e neste dia combinamos do Lanny e da Cristina iram lá em casa, e viraram amigos nossos. A Dani e a Cristina já falavam do lance do documentário, evidentemente eu já pensava nisso também. Só que eu tinha uma questão: estes documentários musicais, boa parte deles eu gosto do documento, mas não sei se gosto tanto do filme como filme. E assisto todos eles. Para mim, é uma diversão, dentro do outro cinema. A gente sempre esteve desenvolvendo trabalhos intermídias. Depois do “Sinfonia de Jards”, fiz a direção e a Dani a cenografia de uma opereta com o Maestro Gilberto Mendes. Era um espaço fechado com um monte de bolas, com leds, parecia que estava dentro de um sonho. Tinha um aquário escrito: ‘Música, o cinema do som’, uma frase do Gilberto Mendes. Ultimamente a gente está bem ligado no Koellreutter. Ele é nascido na Alemanha, era da música dodecafônica alemã, um cara de esquerda e quando teve a ascensão do nazismo, a família dele entrou no movimento nazista e os seus próprios pais o denunciaram. Nisso, ele fugiu e veio para o Brasil. Ao chegar, foi responsável por introduzir a música dodecafônica, e se tornou importantíssimo na divulgação desse movimento. Os poetas concretas frequentavam as aulas dele. O Rogério Duprat foi aluno dele, em São Paulo. Depois o Koellreutter saiu de São Paulo, e não tem a faculdade da Bahia onde Caetano Veloso, Glauber Rocha e Helena Ignez estudaram? Durante o projeto do reitor Edgar Santos, o cara chamado para coordenar a parte de música foi o Koellreutter. Então toda essa música brasileira dos anos 1960 parte muito dele. Foi muito incrível porque ele chamou o Walter Smetak para ser professor, e de repente o David Turdor, que era o pianista do John Cage estava fazendo experiências com rádio na Bahia. Por que surgiu uma geração tão radical e genial? Porque foram chamadas as pessoas mais inventivas. Tinha um professor que dava aula sobre o candomblé misturado com microtonal e tonalismo. Para mim, isso sempre foi comovente, de perceber que é só fazer e não tratar as pessoas como algo público, e querer apaziguar um pouco com receio de não compreenderem. Isso é perigoso e foi um ponto importante para o Inaudito: de acreditar em quem assiste.
O filme “Inaudito” está sendo muito bem aceito em suas exibições. Inclusive foi vencedor da Mostra Olhos Livres em Tiradentes este ano.
Sim, o Lany é um imã, ele é puro amor-humor. Ele tem essa simpatia e eu percebi que a câmera ama ele. Parece que as pessoas que tem força no cinema, força diante da câmera, são as pessoas que tem uma fala fora da curva. O cinema abre espaço para isso, não para falar o que já se sabe ou para ficar lá só batendo o martelo de uma forma direcional. Não. O cinema são para as pessoas que realmente tem uma existência que sai do padrão. Muito do Lanny, na tela, chama por isso. Tem o outro lado, evidente, de que toda decupagem das filmagens e planos eu pensei como ficção. Cada enquadramento foi pensado, teve um estudo muito grande mesmo das pinturas. Foi filmado com calma. A Dani é essa pessoa artista, arquiteta, e ao mesmo tempo é uma pessoa holística, que mistura nutrição com a arte, com o urbanismo, saúde, música, e isso fez com que em um momento ela perguntasse: “Mas como é a direção de arte neste filme? Se ele é um documentário”. Eu respondi: “É a influência para o olhar e a criação deste olhar”. Um dos melhores exemplos é o plano que é o trailer do filme, aquelas caixas, que tem uma coisa meio Hélio Oiticica, mas acho que o processo da Dani, no filme, foi como se fosse uma abertura dos olhos. Como ela trabalha com resíduos, utilizando materiais que as pessoas não enxergam, ela conseguiu trazer isso para o filme. As cenas de São Paulo, no centro, um amigo chegou para mim e disse: “Poxa, eu gostei de ver São Paulo daquele jeito”.
Você chegou a comentar durante o seminário, na Mostra de Cinema de Tiradentes, que filmar na China foi muito mais fácil do que em São Paulo. Por quê?
Foi por uma questão burocrática. O filme todo é construído como se fossem performances acontecendo, e junto disso tem uma camada de linhas, não é uma timeline, é uma projeção do tempo. Me lembro que cada filmagem na China começava com a gente tomando um chá. Eu chegava e ficava 1 hora conversando até filmar. Chegando a São Paulo, é outro ritmo, e é maravilhoso. Essa foi uma questão minha: “Vamos sair daqui para voltar”. E a gente voltou para São Paulo, aquilo parecia o faroeste, mas com vida: as pichações, heliógrafos espalhados pela cidade. Aquela beleza. A cidade é bonita, mas é maltratada e o Dória quer(ia) acabar com a parte mais bonita de São Paulo, que são as pichações, desse caráter urbano louco.
Acredito que deva ter tido uma enorme quantidade de material pela potencialidade dos discursos do Lanny e como foi para selecionar o que entraria?
Pensando por números, um pessoal vai fazer um documentário e filma 100 horas. Eu já conhecia muito o Lanny e tinha horas e horas de entrevista com ele em gravador. Às vezes ele está sentado em um lugar e não fala nada, fica em um silêncio. Eu com ele, na direção, foi como se estivéssemos em uma jam session juntos. O Lanny é uma pessoa sensível e cansa rápido, se você quiser filmar seis horas com ele, na terceira hora ele vai estar cansado, vai falar de outras coisas. Foi uma filmagem de muita sorte porque a gente estava muito em sintonia.
Uma das cenas é a de um reflexo na água em São Paulo, em um enquadramento de cabeça para baixo, cortando a própria cabeça de Lanny à medida que vai andando, foi proposital ou sem querer que chegaram nestas filmagens?
Aquilo foi pensado, porque eu sempre tive essa piração com reflexo, e eu lembro que estava com o diretor de fotografia, e perguntei: “Dá para inverter o monitor?” Em um seminário do filme, uma garota trouxe um livro de reflexos e perguntou o porquê do reflexo no filme. Tem um lado estético, da beleza evidente, e aquilo é relacionado com as frequências, com música. Eu tinha uma grande questão na cabeça antes da filmagem: O Lanny é o personagem, e desde o começo a gente tinha decidido que não teriam falas, estilo depoimento de ‘medalhões’ contando histórias. No “Inaudito”, a única pessoa que aparece é o Jards Macalé, em uma fala que não é sobre o Lanny especificamente, é sobre som, ele está de olhos fechados. Já a presença do José Roberto Aguilar é uma performance ali no branco sobre o branco. Eu ficava pensando muito sobre como multiplicar os personagens. E dentro da tragédia grega, tem o coro, e veio essa questão de que talvez o reflexo seja o coro. São vários motivos: “Eu sou o outro”, “A loucura não é um eu, é uma multiplicação”, um contexto básico de Deleuze e Guatarri. E por uma questão de libertação do filme, tentamos trazer mais personagens no quadro. Por exemplo, o Lanny fala: “Eu estou desenvolvendo um novo estilo, ele se baseia no free total”. Aí a câmera desce, desce, desce e ele está de ponta-cabeça, ali tem dois personagens no quadro. E tem uma brincadeira, meio óbvia e infantil, de que quando você está na China, você está de cabeça para baixo.
Porque a escolha do Jards Macalé para ser o único a dar um depoimento no filme?
Eu vi uma das últimas entrevistas do Rogério Sganzerla, quando uma pessoa pergunta a ele: “O que você pretende dizer aos novos diretores?”. E ele fala: “Voltem a andar com o pessoal da música brasileira”. Na época da Carmem Miranda, Pixinguinha, isso acontecia e o cinema era altamente inventivo. Terminei de ver essa entrevista, e fiquei com isso na cabeça. Sou um estudioso da música, e me veio um delírio na época. Imaginei um espetáculo que fossem projeções e telas e um cara cantando se multiplicando nesse espaço, e pensei: essa vai ser uma forma de fazer cinema, porque eu terei a bilheteria do show, vou poder filmar. Eu já fazia curtas, já fiz um monte, sempre fiz desde os 10 anos de idade. E veio a história do Jards Macalé. Tenho um parceiro, amigo, irmão, o Francisco França, ele dirigiu comigo. Cheguei para ele com ideia, ele topou. Um cara chamado Ivon Patrocínio gostou da ideia e me levou ao Rio: “Vamos ao Rio de Janeiro que conheço um contato que conhece o Macalé”. Sou apaixonado por ele e por seu violão, pelo jeito que ele puxa as cordas, o jeito que ele sopra… Levei uns curtas totalmente malucos e comecei a falar um tanto de coisa, referências, e o Macalé ouvindo aquilo lá e topou. Voltamos quatro pessoas e filmamos em cinco dias, o Macalé na rua vestido de coringa, pelado com um baseado cantando “Hotel das Estrelas”. As imagens ficaram boas, ficaram vivas. Então fui assistir um documentário sobre ele, em que aparece o José Celso falando: “Todo brasileiro, sempre que tiver o nome de Jards Macalé, tem que ajudar esse nome porque ele é uma entidade do Olimpo”. Chamei a Dani, mostrei e falei que o espetáculo do Jards seria no Teatro Oficina. Cheguei para o Zé Celso, ele topou, rolou o “Sinfonia de Jards”, e o Lanny apareceu nas nossas vidas. O Macalé está neste filme por conta deste contexto. O segundo motivo é pela música do Jards. A música do Macalé aponta para o agora, e dentro de pessoas que sou influenciado na música atual, que são nossos amigos: Ava Rocha, Negro Leo e Bruno Schiavo. Jards, para mim, solta uma teia que conversa muito com o será feito agora. Da mesma forma, que de algum lugar, o Lanny também. Uma liberdade do Lanny de tocar, tocar às vezes não para tirar uma nota musical, mas para poder tocar o instrumento. Tocar na corda. O corpo. Ele fala: “Eu ouço as vozes, mas quando eu toco, elas param”.
Eu cheguei a anotar algumas falas, elas são muito fortes. Eu imaginei vocês sentados ouvindo todas e pensando como iriam selecionar estes dizeres e montar junto às performances.
Tem algumas falas que pontuam o filme, elas estão em off e tem um momento onde elas aparecem. As conversas com o Lanny eram muito profundas, e o fato de eu ter feito filosofia, tenho certeza que fez as nossas conversas irem para esses lugares. No último dia na China, existiu “o acontecimento”. Foi o momento que o Lanny estava um pouco cansado, e eu também. Estava até mesmo desligado, pensando que já tínhamos filmado tudo. De repente, o Lanny fala: “Greguinho, eu tive um surto”. Virei e falei: “Vamos desligar a câmera”. Ele disse: “Não desliga”. E nós perguntamos para ele: “Como é o surto?” Achei desnecessário colocar no filme, porque foi um surto leve. Mas ele falou: “Me dá um branco. Fico com a cabeça vazia, não consigo pensar nada”. E pensei sobre o branco ser a junção de todas as cores. Mas decidi parar de gravar e perguntei o que ele queria fazer. O Lanny apontou para um café e a gente foi tomar. A Dani, muito sensível, pegou o pessoal da equipe e foi mostrar uma rua cheia de coisas chinesas, como um centro comercial em uma cidade antiga, onde tem de tudo, até inseto em palitinho pra comer. Ficamos somente eu e Lanny, eu estava emocionado e cansado, e tinha um violão. A gente viajava, passeava com um violão, eu virei para ele e pedi: “Lanny, afina para mim o violão?”. Ele afinou e eu fui tocar baixinho. Quando terminei de tocar, gosto de tocar música clássica bem sutil, ele virou e falou: “Greguinho, você toca, você toca!”. Virei e falei: “Lanny, nestes dias todos tô deixando a coisa fluir, mas quero te falar algumas coisas também que eu acho. E se essa sua loucura for algo mesmo? Se essas vozes forem de verdade? E se você escuta mesmo a coisa divina?”. Falei com ele sobre o “História da Loucura”, do Foucault, contando que o louco na idade medieval era respeitado como Xamã. O Lanny respondeu: “É isso exatamente o que eu acredito”. O pessoal voltou, ele estava com outra fisionomia, ele estava com o rosto vermelho, uma alegria, e a gente entrou em uma conversa em que muitas das falas estão no filme. Aquela hora que ele fala: “A loucura pode ser um estado superior, além do amor, é outra coisa que o ser humano vai chegar…”. Foi nesse momento! É claro que tínhamos os planos maravilhosos, mas o lugar do profundo mesmo, de pessoalidade, foi na China. Tudo estava afinando, afinando, afinando, até chegar no café. Chegando a São Paulo, a gente se olhava e pá-pum, era incrível. A estética do filme já estava certa.
O interessante de ir para a China primeiro é porque quando a gente sai de um lugar que já conhecemos e nos deparamos com um novo por completo, a nossa mente também acessa um novo lugar.
Esse é o motivo de ir para lá antes, olhar com os olhos livres. E eu precisava sair. Às vezes a gente fica com catarata. Filmar serve para isso, aprender a olhar. Na China tudo era vida, tudo era novidade e a gente pode virar bebezinho mesmo. Fazer um plano de ponta-cabeça, é isso.
E tem uma frase do filme do José Alberto Aguilar, nas cenas das tintas, que traduz isso tudo: ‘O invisível prepara o vísivel’. Como se deu o contato com Aguilar e a ideia dele ter esta aparição pontual no filme?
Ele é um prisma, ele é pintor, é da Banda Performática, que o Lanny já tocou nos anos 1980, e o Aguilar trouxe a videoarte para o Brasil, além de ser escritor. A gente se conheceu pelo Facebook. Fui à casa dele, ele foi vendo as coisas, já sacou, já percebeu, e perguntei se ele faria uma cena. A gente tinha pensado com as tintas, no Malevich do branco sobre o branco, e a gente só abriu o plano e ele fez aquela cena, sem corte, ele desenvolve aquilo tudo. Na montagem a tinta escorre, fica tinta branca, parede branca, e ele surge. De repente, a partir desse momento, um dos pontos luminosos do percurso foram essas cores. O filme trabalha com rimas internas. É lógico que ele tem uma estrutura, passa por temas, é um filme oferenda, mas para a gente montar e não ficar preso 100% a uma ideia de uma jornada, de um padrão aristotélico de dramaturgia, de momentos de intensidade, que depois abaixa, eu e a Dani começamos a desenvolver diversos métodos na montagem. Muitas vezes o chapéu de um cara era vermelho, então vai ter uma relação com a arara que aparece logo depois. Ou quando ele saía andando do quadro, e isso é na China, e ele entra no quadro, quase como se fosse uma continuidade, só que ele está no Brasil. E é isso, perfeito, ele está andando pelo mundo, caminhando pelo universo. É um filme que tem várias camadas. Nesse sentido da montagem, teve três pontos que pra gente foi quase um método, a gente imprimiu imãs de geladeira com as cenas filmadas, uns 300, 400 ímãs e em nosso apartamento a gente preencheu a sala com mantas metálicas. Porque como esse filme você está na china e você está no Brasil, um poeta amigo nosso, Marcelo Ariel, falou uma coisa muito bonita: “O filme não tem aeroporto”. Esta aqui, está ali.
Como se simulasse, na montagem, a própria fluidez da mente?
Eu falava com a Dani que o Final Cut, os programas de edição, trabalham com timeline, uma linearização, e no computador a gente não lida com a matéria. Então, o que aconteceu: Ficava lá um imã que de longe, fechando um pouco o olho, era avermelhado, e pegávamos outro. Ele permitiu que essas voltas e transições espaciais fluíssem. Libertou a gente e criou essas rimas internas e possibilitou esse estado de sonho. A gente tridimensionalizou o processo. Porque na timeline você tem uma linha, e a partir do momento que você pode manipular e mudar de lugar para todos os lados, você volta para a matéria. A gente montava uma sequência, depois recombinando as sequências. Estudo muito cinema, sou meio caxias. E na época do cinema das películas, as pessoas recortavam-nas e deixavam-nas penduradas, então, o que foi muito legal dos ímãs, foi a praticidade. A relação com os frames é algo que se perde muito com o digital. Como o lance agora é valvulado com pro tools, as duas coisas tem que andar juntas, foi uma forma de trazer o analógico para nossa estrutura de pensamento da montagem. A gente tinha que chegar a uma solução metodológica que a gente pudesse enxergar, mexer, ser confortável. Até porque esse filme é muito difícil de montar. Tem a música, dentro da música o “free”, Brasil e China, a loucura. Só a questão da loucura necessita um lance de se ultrapassar sempre e ao mesmo tempo se auto criticar por um lance ético. A gente trabalhou com lentes fixas, eu não queria que o zoom fosse algo invasivo entre o câmera e o Lanny. Lembro que em uma montagem a gente colocou uma lente fechada que dava uma coisa voyeur, e eu falei: “Não, isso vai passar uma sensação de voyeurismo da loucura”. Era uma delicadeza, porque essa loucura do Lanny, para mim, ela é transformadora. Se isso é loucura, então vamos aprender. É lógico que não pode se fetichizar as coisas.
E aquela fala dele é muito incrível, quando ele fala que começaram a colocar um monte de fios e ele achou aquilo um barato!
É uma hora que o Lanny volta pro chão e traz aquilo ao modo dele. E aí depois ele fala: “Eu libertei os loucos dos hospícios porque estavam todos presos em fortes correntes de aço, eu libertei porque eu tive pena deles”. Tem um amigo terapeuta nosso que soltou uma frase que achei perfeita: “O Lanny não é uma pessoa doente, é uma pessoa extremamente saudável, que vive em um mundo doente”. O filme é bem Guattari e Deleuze, ele é bem anti Édipo. Freud é um gênio, descobre o inconsciente, mas a questão é que ele chamava a esquizofrenia dos psicóticos e tinha certo desprezo com isso, com a manifestação do inconsciente. Um dos motivos do porquê fazer esse filme é que eu sabia que o primeiro filme dá aquela vontade de criar, de repensar quadros, planos, o segundo, o terceiro também, acho que a vida inteira. O Lanny pede isso, isso que é delicioso. Ele pede a criação e a liberdade.
As falas do Lanny são completamente sinestésicas e envolvem elementos da natureza. Você tinha que dar conta dessa sinestesia nas imagens, de passar pela natureza, misturar tudo. E na montagem, pelo o que eu percebi, talvez você tenha feito quase que dois filmes, um de áudio e um de imagem.
Eu e a Dani tentamos não trabalhar em cima de uma música já de base, rítmica. Porque se não a montagem ficaria em um ritmo e o Lanny é pulsação. Mas a gente precisou ir criando uma atmosfera sonora enquanto a gente criava, que foi um guia para todo mundo que foi chamado para trilha. A música aparece no filme de duas formas: existe a música em cena, que o Lanny está tocando em cena, e ela já é a trilha, existe a captação do som direto, e ainda existe a música que vai comentar e abrir o olhar e o ouvido da imagem. Teve um momento que foi decisivo do filme, no desenho de som, eu estava com o Dino e falei: “A trilha está linda, as imagens estão, mas o som está careta. A gente vai precisar transformar algumas coisas”. E foi nesse momento que o Dino começou a desenvolver aqueles sintetizadores que trabalham em camada dupla, a gente começou a abrir algumas possibilidades de som. Eu falei para a Dani: “Vamos libertar, vamos libertar o filme”. O som de cena foi esculpido, mas não podia exagerar para não virar uma metáfora da loucura, e sim ser uma conversa com a musicalidade da frequência. Esse som do Lanny, experimental, esse outro lugar, é uma paixão minha. Esse filme tem um pouco um manifesto de uma música que está sendo realizada. A figura do Negro Leo no filme é fundamental, para mim ele é um gênio, um conector de várias vias, e ele é de uma inteligência, rapidez e o filme na parte da música conversa com esse caminho, com essa liberdade para tocar. A figura do Lanny é uma paisagem imaginária para essa música.
Você, Gregório, e Lanny, já chegaram a fazer músicas juntos?
Eu já. Me apresentei uma vez eu, Lanny e Felipe Ribeiro, lá atrás, antes do filme. Esse é um ponto, mas na verdade Lanny é meu professor de guitarra, algo dos sonhos. Descobri que, pessoalmente, tiveram duas coisas nesse filme: uma é que eu queria aprender a tocar música e a outra só descobri depois que o filme passou, que foi a morte do meu pai e esse filme foi um pouco sobre essa pesquisa do que é a vida. De querer entender o que é o além, e estar com o Lanny nesse processo, ele é um mentor. Estou achando interessante também perceber que é um filme que continua depois de uns dias, cada vez que converso com amigos é uma sequência diferente que eles lembram.
Tem uma cena que me chamou atenção porque a câmera está dentro do corpo do violão. Como surgiu a ideia?
Aquilo é lindo. Aquilo estava na mostra do Howard Hawks, diretor dos anos 1930/1940, de cinema, e tem um filme dele de faroeste. Antes de fazer esse filme eu quebrava a cabeça pensando que a guitarra já foi filmada de todas as formas. Eu não queria close dos dedos tocando guitarra, o filme não tem nenhum close nas mãos, é tudo plano aberto. Eu comecei a pensar: o que é o contraplano? No filme do Hawks tem uma cena que é bem montada, as cordas do violão, o fundo preto e tem a mão, na hora eu saí de lá pensando em uma Go Pro dentro do corpo do violão. E também um pouco de entrar nas vísceras do violão. O som que a gente escuta naquele momento é o som da câmera gravando dentro do violão, o violão é uma caverna. E então do lado de fora veio uma chinesa com o celular e ficou filmando o Lanny, porque a gente decidiu fazer uma cena e era um lugar com muita gente, as pessoas começaram a olhar, filmar e não sabiam que estavam sendo filmadas pelo violão. Ali foi o Lanny falando: Agora quem vai filmar sou eu, e ele está filmando com o violão.
Os documentários em geral fazem muito uso de imagens de arquivo, e o acho que vocês usam apenas uma em preto e branco de Lanny fazendo uma performance com a guitarra.
Rogério Sganzerla na filmagem. Ela não tinha som. A Helena Ignez liberou para a gente a imagem. Eu falei para ela, e essa filmagem é uma sobra de um material que o Rogério não concluiu. Era uma espécie de continuação do “Bandido da Luz Vermelha”, e eu sabia que existia essa cena com o Lanny. Quando estávamos na China eu falei que queria muito fazer aquela pergunta de qual foi o show mais incrível que ele já fez, e fizeram essa pergunta e ele falou dessa performance maravilhosa: “Tirei a guitarra, tomei um choque elétrico e morri”. Chama-se “A Morte do Guitarrista”. Ela aparece um pouquinho depois da metade do filme, e então aparecem estas imagens, e aquela coisa completamente nonsense que ele contou aconteceu! De repente quem assiste se pergunta: “Pera aí, então o que o cara está falando é realmente verdade”. Conversando com o Negro Leo sobre fazer a trilha para essa parte, ele viu aquilo lá sem nada, e falou: “Vamos tirar tudo de música nessa sequência de arquivo”.
O doc é filmado somente em espaços abertos, por conta dessa ideia libertária e vai na contramão de vários docs que querem ir na intimidade do personagem, mas que acabam não chegando nessa profundidade, porque você vê lá o sofá do cara e só. Até fiquei me perguntando: as pessoas vão para dentro das casas das outras achando que ali elas vão captar alguma essência, mas o caminho pode ser do de fora para dentro.
O Lanny não dá a mínima para o espaço. Fomos para a rua. A gente nem filmou na casa dele. O Lanny é um improvisador e o mundo é um palco para ele. O Lanny gosta de ficar muito em silêncio, mas quando liga a câmera ele tem uma desenvoltura muito ótima. Ele gosta de gravar, ele guarda a energia dele para a hora que vai ser filmado.
E qual o motivo do nome ser “Inaudito”?
Eu tinha feito um curta no Parque Augusta a partir de um texto de Peter Pál Pelbart, que fala: “Inventar novas formas inauditas de vida”. Fiquei com essa palavra na cabeça, porque o inaudito é o que não se percebe, o que não é escutado. Fiquei pensando que esse nome poderia ser o título do filme. É a percepção dessas frequências, vibrações, porque no fundo mesmo o filme é sobre frequências espaciais, mentais, telepáticas, sonoras. Muitos dos motivos do reflexos são estes. Em uma das cenas, eu avistei na China uma prática que acontece nas praças: vários velhinhos com um pincel gigante, que enchem de água e ficam ali fazendo poemas. Foi acaso total. A gente saiu para tomar um suco, de repente eu vejo aquilo e começo a chorar, porque para mim foi a arte contemporânea máxima. Ele faz com a água os ideogramas e as pessoas passam por cima e acaba.
– Carime Elmor (fb/carime.elmor) é jornalista da Tribuna de Minas e fazedora dos zines Malditas