Balanção: Festival Boston Calling 2018, EUA

por Bruno Capelas

DIA 1

Muito verde, muita New England IPA e uma programação dividida entre o rock e o hip hop, com um pequeno espaço para a musa Natalie Portman. Esse é o Boston Calling, festival de música pop que chega em 2018 à sua nona edição. Com capacidade para cerca de 30 mil pessoas por dia, o evento tem a fina curadoria de Aaron Dessner, do The National, e acontece no complexo esportivo da Universidade de Harvard. Fica aqui a ressalva, porém, de que não é preciso ser nenhum gênio para entender a graça de sua primeira noite, que contou com nomes como Killers, Portugal the Man, Paramore e o próprio National.

A programação oficial começou pouco antes das 15 horas, com o This is The Kit – a reportagem do Scream & Yell, no entanto, ainda estava encerrando um passeio rápido por Boston. O roteiro incluiu pausas para comprar cervejas IPAs da renomada Trillium, ver a bela estrutura da nova área do Museu de Belas Artes projetada por Sir Norman Foster e comer cannoli na filial de Harvard do Mike’s Pastry, uma doceria que, se ficasse em São Paulo, só poderia dividir porta com a clássica Lanchonete do Seu Oswaldo, no Ipiranga. Sabe como é: “leave the guns, take the cannoli”.

A parada na Mike’s Pastry é estratégica, até pela organização do evento: para chegar ao Boston Calling, o jeito mais fácil era se aventurar pela linha vermelha da rede de metrô mais antiga dos Estados Unidos, descer na estação que dá nome à universidade e caminhar por cerca de 15 minutos. Já dando o spoiler: a ida foi tranquila; a volta, mesmo escoando milhares de pessoas, foi mais confortável do que andar pela linha verde (do metrô de São Paulo) fora do horário de pico.

Ao chegar no festival propriamente dito, a primeira parada era conferir Natalie Portman abrindo a The Arena, espaço para apresentações especiais, podcasts e shows de stand-up montado num ginásio de hóquei, entre os três grandes palcos do evento. A agenda era misteriosa e não dava mais detalhes: ela vai cantar? Vai contar piada? Vai ficar lá, uma hora, parada, dizendo “hello stranger”?

No fim das contas, foi bem menos que isso: Natalie subiu para dar um oi e apresentar mais uma etapa da sessão de cinema especial do festival – antes do evento, por três noites houve projeções de filmes como “La Belle de Jour” e “O Exorcista”, com curadoria da atriz. Ela falou por pouco mais de um minuto, apresentando uma versão restaurada de “A Concha e o Clérigo”, um filme surrealista francês de 1928, com trilha sonora ao vivo executada pelo trio ACME Music. Durante 40 minutos, muita gente ficou com cara de interrogação, especialmente pela junção da história de um padre que tem delírios eróticos com a performance da banda, bem próxima do esquema post-rock. Daqueles momentos que não fazem sentido nenhum, mas que são incríveis.

Antes do próximo show, uma pausa para reabastecer o fígado. Por questões de economia, a opção do dia foi a New England IPA da Samuel Adams (US$ 9 a lata de 473 ml), cervejaria bostoniana das grandes – para quem quisesse abrir o bolso, porém, a dinamarquesa Mikkeller montou um pavilhão especial bem de frente à arena, oferecendo sete de suas cervejas bombadas. Missão para os próximos dias para este que vos escreve e o parceiro de cobertura Bruno Dias, do Urbanaque. A programação gastronômica também não deixa a desejar: o festival recrutou alguns dos principais food trucks de Boston para fazer das suas. Nesse primeiro dia, a opção ficou com os bolinhos de pizza e de mac and cheese do Arancini Bros (US$ 13, a porção com seis). Tava bom, né Bruno Dias?

Se o bolinho desceu bem, não se pode dizer o mesmo do show da Pussy Riot, uma banda importante pelo discurso momento histórico (ai Putin, ai Trump), mas que tem pouco a oferecer musicalmente. As russas sabem disso e abrem sua apresentação com um digno textão de Facebook: são nada menos que 10 minutos de apresentação de power point com 25 tópicos de um manifesto, seguidas por uma série de perguntas sobre o que raios o Pussy Riot quer. Quando a música finalmente começa, as moças entram no palco mascaradas e com roupas de segurança, fazendo uma mistura de hardcore digital com rap e algum tantinho de rock, mas que não avança além. Muito barulho por nada.

Mais eficiente (ênfase no “eficiente”, um adjetivo saído prontamente do vocabulário corporativo contemporâneo) é o Portugal the Man, que começou seu show lá pelas 19h com uma plateia já bastante cheia e um repertório cheio de covers – foram quatro em um set de 12 músicas, com direito a “Children of the Revolution”, do T-Rex e “For Whom the Bell Tolls”, do Metallica. Jogando para a galera, Josh Baldwin Gourley não economizou nas guitarras, mas encontrou mesmo seu melhor momento no hit “Feel It Still”.

O nível da noite subiu pouco tempo depois, quando Natalie Portman voltou a dar as caras. Dessa vez, ela veio introduzir a banda de uns amigos que conheceu há mais de uma década, num rolê em Cincinnati: The National. É a deixa para que a banda faça um show bonito, regido pelas memórias e pela sofrência de Matt Berninger, dominado pelo repertório dos últimos três discos do grupo, “High Violet” (2010), “Trouble Will Find Me” (2013) e o recente “Sleep Well Beast” (2017).

Amparado pelos irmãos Dessner, Berninger tem espaço para ser um belo frontman, mesmo com sua cara de professor de literatura sedutor: ele sofre, ele abre os braços, ele canta cada canção como se seu peito fosse um poço interminável de mágoa, tristeza e remorso, como um coração apaixonado que nem sempre faz o que é certo, mas que é sincero. É o tipo de sensação que fica clara em “Don’t Swallow the Cap” (veja o vídeo abaixo!) ou no bonito dueto que ele tem com Maggie Roggers em “I Need My Girl”. É meio deprê? Sim. Lembra Leonard Cohen? Também. Mas no pôr do sol digno de desenho feito a lápis de cor Faber Castell que faz em Boston, é um show muito bonito.

Seria o The National o melhor show do dia, não fosse a música pop uma aritmética cheia de improbabilidades. Afinal, como pode uma banda gastar seus dois maiores hits nas três primeiras músicas do show? Pior: uma banda que tem seis ou sete discos de carreira, mas só dois deles são realmente bons? E que chega ao palco do Boston Calling ostentando um ridículo luminoso em neon com o símbolo grego de masculino bem no meio do seu palco?

O problema é que essa banda é o Killers. E o Killers tem duas coisas que o National, uma banda mais madura, não tem: refrões pop para as massas e Brandon Flowers. Você pode achar que ele é meio babaca, que é mais bonito do que bom artista ou apenas uma cópia cristã e heterossexual de Freddie Mercury. Mas ele carrega o show: ele canta, dança, faz piada com os times da cidade (em especial, o Boston Celtics, que pode chegar à final da NBA pela primeira vez em quase uma década) e não precisa de mais de que dez segundos para fazer 20 mil pessoas baterem palmas.

E ele tem na mão algumas das melhores canções das duas últimas décadas, abrindo o show com “Mr. Brightside” e praticamente a emendando com “Somebody Told Me”. É uma descarga de adrenalina tão grande que pouco importa que os singles dos últimos discos sejam horríveis (“The Man”, por exemplo, soa como um lado Z dos Bee Gees) e que eles apareçam em uma sequência logo após “Somebody Told Me”, porque logo depois há “For Reasons Unknown” ou “Smile Like You Mean It”. Ou “Read My Mind”. E por que não uma cover espertíssima de “American Girl”, fazendo uma justa homenagem ao saudoso Tom Petty?

Talvez seja uma comparação injusta, mas se o National fez um grande show, o Killers deu um espetáculo. Seria bobo dizer que, às vezes, ser adolescente como a banda de Las Vegas é melhor que ser maduro como Matt Berninger. Até mesmo porque os dois melhores momentos do show da trupe de Brandon Flowers são em canções sobre “olhar para o passado”: “All These Things That I’ve Done” e “When You Were Young”. Mas é um olhar nostálgico, feliz, que é difícil não deixar o complexo esportivo de Harvard com um sorriso no rosto. Amanhã tem mais.

DIA 2

A previsão do tempo prometia frio e chuva, a escalação do festival trazia algumas das principais bandas de rock (lembra dele?) da atualidade (Jack White, Queens of the Stone Age e Royal Blood). Mas no segundo dia de Boston Calling, tanto os meteorologistas quanto os analistas de previsões pop quebraram a cara: fez sol, bastante calor e quem fugiu do cânone moderno do gênero ou nem tentou se aproximar dele é que apresentou os melhores shows do festival.

Ao contrário da sexta-feira, o sábado fez a equipe do Scream & Yell chegar cedo ao complexo esportivo de Harvard. A razão é a senhorita Lillie Mae, uma das crias de Jack White e sua poderosa máquina de gravar discos, a Third Man Records. Munida de violino e violão, a moça faz um som gostoso de ouvir no começo da tarde, situado naquela encruzilhada entre o folk, o rock, o country e, como diriam Sá & Guarabyra, “o pó da estrada”. Para uma referência mais específica é possível dizer que ela soa como uma versão moderna de cantoras como Emmylou Harris e Linda Ronstadt, só que com o peso de uma banda regida sob os auspícios de mr. White.

É difícil não reparar em canções como “Wash Me Clean”, “These Daze” ou “Over the Hill and Through the Woods”, isso para não dizer que a tatuagem de coração partido que a moça enverga no braço esquerdo pode, na verdade, partir alguns corações por aí. Foi bonito, especialmente no final, quando ela dedicou uma exibição instrumental de sua banda (“é pros fãs hardcore, eu inclusa”) com violino, bateria e guitarra com um sotaque tão caipira quanto os filmes de caubói que passavam antigamente na Sessão da Tarde.

E já que o assunto é a Third Man Records, a gravadora de Jack White compareceu ao festival com um trailer de venda de vinis no melhor food truck não comestível do Boston Calling. Havia badulaques da gravadora, como chaveiros, isqueiros e bonés, mas o principal eram os discos: de singles reeditados do White Stripes a versões especialmente feitas para o festival de álbuns e compactos de bandas como Los Lobos e The Shins. Era tentação demais para a carteira, mas esta reportagem foi capaz de apenas gastar com um compacto de “Fell In Love With A Girl”/”I Just Don’t Know What to Do With Myself”, por meros US$ 6. (Do lado, havia também uma barraca da Newbury Comics, com barganhas como uma edição usada do primeiro vinil dos Byrds, “Turn! Turn! Turn!”, por US$ 9; já o parceiro Bruno Dias saiu com “Awaken, My Love”, do Childish Gambino por US$ 18).

Na sequência, uma parada rápida de uns 15 minutos para conferir a rapper Leikeli47. O flow era bom, mas em vez de tocar suas próprias canções, a cantora se encaminhou pela “avenida das memórias” e resolveu relembrar hits do passado que a inspiraram, como “Killing Me Softly”, na versão dos Fugees. Uma pena. Não deu pra ficar mais porque de novo havia uma missão em curso: ver Natalie Portman, desta vez ao lado de St. Vincent, apresentar sua sessão de filmes mudos feministas e surrealistas. A aparição de Annie Clark foi bastante “truqueira”: sob uma base pré-gravada, ela apenas adicionou uns “oohh” e “aaah” ao curta que era projetado no telão. Já a própria Natalie fez um voice over sobre um curta, com uma pegada tão “papo cabeça” que fez o cérebro estralar que nem pururuca.

Falando em comida, hora de parar para abastecer. Bruno Dias foi de combo de lanche de brisket com Mac and Cheese (US$ 13), que estava bem saboroso. Já esta reportagem foi de uma apimentada porção de fish and chips (US$ 12), acompanhada de uma ostra pescada localmente (US$ 2,25), afinal, só se vive uma vez e não se pode perder a chance de bancar o fino nos “istêites”.

Também local era o Belly de Tanya Donelly, uma das atrações mais aguardadas do dia: afinal, uma das principais bandas de Boston nos anos 1990 está de volta após 23 anos com um novo disco, “Dove”. Mas… não funcionou: se em estúdio as novas canções funcionam muito bem, ao vivo a transição “loud-quiet-loud” e os vocais charmosos de Donelly se perdem entre peso e volume, e nem mesmo o semi-hit “Gepetto” foi capaz de levantar a plateia, debaixo de um sol de rachar o coco.

O sol na cabeça fez muita gente querer pegar o trem azul para qualquer área com sombra. Prioridades: era preciso saber o que aconteceu na final da Champions League, e não eram poucas as camisetas do Liverpool no complexo esportivo de Harvard. Pena que faltou combinar com o Sérgio Ramos para fazer a festa.

Devidamente refrescado com mais uma New England IPA da Samuel Adams (que só seria melhor se fosse mais barata, pois quem converte também quer se divertir), hora de conferir o Royal Blood. É uma banda engraçada. Por um lado, é de se admirar que apenas dois caras, tocando rock sem usar guitarras, consigam mover algumas milhares de pessoas em pleno 2018. Por outro, dá um pouco de preguiça, porque é o domínio da técnica e da engenharia sobre a arte.

Calma: benjaminianamente falando, a graça maior do Royal Blood é que eles têm bons pedais de distorção. Mike Kerr é um bom baixista, mas na maior parte do tempo, trata seu instrumento como se fosse uma guitarra. (E quando faz isso, dá saudade de Mark Sandman e seu baixo de duas cordas no Morphine, um homem que sabia respeitar os graves). Ben Thatcher, seu companheiro nas baquetas, é um baterista bastante superior a Meg White (para comparar com outro duo famoso), mas, em conjunto, o Royal Blood não consegue sair de uma mesma dinâmica como fazia o White Stripes: falta variação à sequência de “porradas” que a banda distribui com seu som, fazendo muitas vezes um show inteiro parecer preenchido com a mesma coisa. Melhor tentar algo diferente no palco azul, talvez?

Do alto dos meus 26 anos, é bastante provável que este escritor puxe para cima a média de idade da plateia do Brockhampton, um coletivo de rappers que se autointitula “a primeira boy band da era da internet”. Todos eles se conheceram em um fórum de fãs de Kanye West. No ano passado, soltaram nada menos que três discos ao longo de 12 meses, fazendo uma parte da internet (e muita molecada) pirar com seu trap pesadão. Ao vivo, dá para entender quase tudo: já no começo do show, quando Joba surge com uma guitarra pra cantar a baladinha “Summer”, se sabe que o que vai acontecer é algo diferente.

São ao todo sete caras em cima do palco, rimando e agitando, em uma experiência estética incrível que faz o rock do Royal Blood soar um bocado ultrapassado. São batidas dançantes, com palavras de ordem e diversão na mesma medida, uma ferramenta de expressão de zoeira, mas também de raiva e tensão. O telão é muito bem feito (tem até a participação do ator Ansel Elgort, o motorista de “Baby Driver”) e o show rola todo sob uma base solta, sem DJ. O fato de ser um coletivo também ajuda o grupo: enquanto um ou dois rimam, os outros dançam, agitam e não deixam a plateia ficar parada, no melhor esquema cooperativo “um por todos, todos por um”.

(Será, porém, o último show do Brockhampton por algum tempo: logo após o show, a banda divulgou um comunicado dizendo que vai cancelar os shows restantes da turnê americana para se realinhar já que um de seus membros, Ameer Vann, foi retirado do grupo depois de ser acusado de abuso sexual, emocional e de ter relações com uma menor de idade. Em comunicado oficial, a banda pediu desculpas por não ter se pronunciado oficialmente antes).

Se você, amigo roqueiro, está se perguntando “qual é a salvação do rock” (se é que a gente precisa de uma, mas vá lá), talvez seja bom prestar atenção em St. Vincent. Ela é uma fiel discípula da escola David Byrne de pensamento: isto é, fazer o povo dançar enquanto enfia goela abaixo canções esquisitas, com solos de guitarras, batidas quebradiças, vocais distorcidos e uma mensagem própria. A de Annie Clark (o nome de batismo da moça) é pela força das mulheres e da sedução como arma estratégica em meio ao mundo bizarro em que vivemos.

É esteticamente intrigante: os músicos homens da banda de apoio não têm rosto, usando máscaras e peruca, como se fossem figuras genéricas. Já a própria St. Vincent arrasa quase qualquer coração com seu conjunto de maiô e botas de cano alto laranjas, além das guitarras em cores extravagantes (rosa-choque, verde limão, azul brilhante). Há postura, há coreografias.

Além disso, há um telão superproduzido, com projeções que complementam o que se ouve e vê em palco. E não é pouco: Annie pode passar despercebida, mas é uma baita guitarrista, inventiva e versátil. É bonito de ver o que ela faz com “Huey Newton”, “Digital Witness” ou “Masseduction”, pegando emprestada uma lição de Prince. Ou “Slow Disco”, uma canção pop redondinha. É definitivamente um show para ser visto se passar na sua frente (enquanto isso, na plateia, um grupo de umas 10 moças em “operação despedida de solteira” curtia as canções de Annie Clark. Entre um sacolejo e outro, só consigo imaginar que casamento divertido vai ser esse em que a noiva gosta de St. Vincent).

Na sequência, hora de ver o Queens of the Stone Age. Lá pelo meio do show da trupe de Josh Homme, há uma sensação curiosa: “Nossa, mas isso aqui tá meio repetitivo?”. A bem da verdade, “apesar da crise”, o Queens é uma das bandas que o público brasileiro melhor pode acompanhar nos últimos anos, como se São Paulo fosse realmente uma perna natural de qualquer turnê norte-americana. Ao mesmo tempo, esse período coincidiu com o momento em que o Queens encontrou seu maior sucesso comercial (em “…Like Clockwork”) e ousou mal (em “Villains”), o que faz com que as apresentações sejam bastante parecidas, e não importa se é no complexo esportivo de Harvard ou do Palmeiras.

Divagações à parte, o show que se viu no Boston Calling foi mais curto e bastante parecido com o que a banda fez na abertura para o Foo Fighters no Allianz Parque em fevereiro. As diferenças, porém, são substanciais. Vamos lá: 1) a abertura com a dobradinha “You Think I Ain’t Worth a Dollar, But I’m a Millionaire” e “No One Knows”. 2) uma área VIP que não ocupa toda a frente do palco. 3) espaço para pogar ou curtir o show de forma relaxada. 4) um Josh Homme visivelmente relaxado e à vontade. 5) algumas canções a menos de “Villains”. 6) a presença do hit de karaokê absoluto “In My Head”. É aquela lição de Mick Jagger: “é só o rock’n’roll, mas a gente gosta”.

Seria bonito se o headliner da noite, John Anthony Gillis, vulgo Jack White, rezasse por uma cartilha parecida. Ele é o dono do único hino do rock de estádio desse século (Itália, Copa do Mundo de 2006 e a cabeçada do Zidane, não vamos esquecer). Ele tem três ou quatro bandas incríveis e uma carreira solo bastante interessante. Mesmo cheio de esquisitices, o recém-lançado “Boarding House Reach” tem algumas belas canções, como “Over and Over and Over”, que abre a apresentação do guitarrista em Boston, ou “Connected by Love”, que fecha o set principal.

São faíscas de um fogo, porém, que não chega a se acender em momento nenhum. Não que houvesse problema com a recusa do pop em si, mas o caminho que White escolhe não passa também pelo seu melhor (guitarras, guitarras!). Petardos como “The Hardest Button to Button” soam embolados e atropelados, como se, a despeito de sua empolgação, o guitarrista quisesse mesmo é ir para casa.

A despeito do grande repertório que tem nas mãos, White não consegue criar climas para o show. Se, de repente, surge um sucesso como “Steady as She Goes”, que anima o público, logo depois ele se perde em devaneios com sua banda. Chega a dar raiva: é uma boa banda, as canções estão ali, mas… não funciona. A ponto desta reportagem deixar o complexo atlético de Harvard antes do fim do show, vendo “Seven Nation Army” diretamente da ponte do rio Charles, já a centenas de metros de distância. Ao menos o metrô estava, mais uma vez, vazio. Partiu domingo!

DIA 3

Brrrrr.

Alegria de brasileiro com o tempo bom nos EUA dura pouco: foi só elogiar o calor de Boston que São Pedro resolveu aprontar das suas e sacanear o último dia de Boston Calling. No domingo, a temperatura não passou nunca dos 15 graus e ainda rolou uma chuva chata, castigando o dia mais “fofo” do festival. Afinal, que adjetivo seria melhor para descrever uma programação que tinha nomes como Dirty Projectors, Alvvays, Fleet Foxes e Decemberists? Não era só, porém: também havia espaço no cartaz para Thundercat, um DJ set do grande Mike D, dos Beastie Boys, e o headliner do dia, Eminem.

Com alguns minutos de atraso devido à chuva, o Dirty Projectors de David Longstreth abriu os trabalhos no começo da tarde de domingo tentando seguir em frente após um coração partido. No caso, o do próprio Longstreth, que se separou da ex-companheira de banda Amber Coffman – o fim do relacionamento entre os dois foi o principal tema do obsessivo e mal-sucedido “Dirty Projectors”, lançado pelo grupo no ano passado e base para o repertório de seus shows mais recentes.

No palco azul do Boston Calling, porém, o “gênio incompreendido” de Longstreth se permitiu “sacodir a poeira e dar a volta por cima”. Ele revisitou canções gravadas com Coffman (“Dance for You”, “Impregnable Question”) e mostrou músicas inéditas previstas para o próximo disco da banda, com lançamento marcado para julho. Duas delas, bastante apaixonadas, se destacaram em um belo show: o single “Break Thru” e a bonita “I Found in U”. Ambas mantém as marcas registradas do grupo: a combinação de batidas com ritmos diferentes em uma mesma música, fraseados agudos de guitarra, arranjos elaborados e dançantes e uma divisão de linhas vocais de dar inveja em muito coral. Vem coisa boa por aí.

Foi preciso apertar o passo para chegar a tempo do início do show do Alvvays, a banda canadense mais escocesa da atualidade, fazendo um aceno à candura de Jesus and Mary Chain e Teenage Fanclub. Capitaneado pela guitarrista/vocalista Molly Rankin, o grupo baseou sua apresentação no repertório de “Antisocialites”, álbum lançado no ano passado que é uma verdadeira coleção de pepitas pop.

Estavam quase todas lá: “In Undertow”, “Lollipop”, “Not My Baby”, “Saved By a Waif”, fazendo o público se agitar com as mãos frias, mas o coração quente (e algumas lágrimas no rosto). Uma pena que, em alguns momentos, os riffs de guitarra de Alec O’Hanley e o peso da bateria de Sheridan Riley ficaram um pouco abaixo do volume para causar mais impacto na plateia. Nada, porém, que um refrão como o de “Archie Marry Me”, uma das canções de amor mais bonitas da última década, não fosse capaz de resolver. Como diria Hebe Camargo: “uma gracinha”.

E o que dizer sobre Thundercat, um cara que tem a moral de tocar de shorts no frio ridículo que fazia em Boston? Não dá para negar que ele tem uma boa banda e que é um virtuose de seu instrumento, fazendo o que quer com o baixo, passeando pelo jazz e pelo funk. O problema é que, apesar de refrães soul interessantes, ele coloca esse virtuosismo a serviço de uma música bastante derivativa, com um resultado que fica aquém de suas próprias capacidades, em um show pouco acessível que ficou pequeno demais para o palco verde, o maior dos três do Boston Calling. Ou, em português claro: “pra quê tanta nota, meu Deus do céu?”.

Pausa para reabastecer o estômago: como estava frio, a reportagem do Scream & Yell optou por um mac-and-cheese de US$ 10. Não estava aquela maravilha, mas atraiu olhares na pracinha de alimentação do festival de quem buscava algo quentinho e confortável. (Aliás, vale aqui o elogio: perto das barraquinhas de comida, havia sempre mesas, bancos e balcões para quem quisesse comer com um pouco mais de conforto, uma ideia que deveria ser copiada pelos festivais brasileiros. Outra é o protetor solar de graça distribuído pela organização, que evitou que muita gente ficasse laranja no evento). De quebra, outra parada no galpão da Mikkeller para uma cerveja: a escolha da vez foi a Pomegranate Blush, uma sour com romã bastante salgada no sabor e no bolso (US$ 10 o pint).

Foi uma boa pedida para acompanhar o show do Decemberists, em uma apresentação singular. Assim como o Alvvays e o Dirty Projectors, o grupo de Portland, Oregon, tem grandes canções. A diferença é que, ao vivo, elas são cantadas por Colin Meloy, um tipo muito especial de frontman: com cara de bibliotecário ou analista de sistemas, ele não se furta apenas em cantar suas músicas, por vezes esquisitas, sobre amor (“Sucker’s Prayer”) ou o ritmo de trabalho de mineradores (“Rox in the Box”). Ele também se ajoelha, cruza os braços indignado e faz piadas dignas de tiozão do pavê como, logo no início do show, quando diz que o tempo frio estava perfeito para uma banda que carrega o nome do mês mais frio do Hemisfério Norte.

Mais que isso, ele é um dos poucos nomes do pop/rock do festival que tem consciência do momento político em que vive, e o melhor exemplo disso aparece em “Everything is Awful” (“Tudo é horroroso”), uma das canções do novo álbum “I’ll Be Your Girl”, lançado em março pela banda. Na parte final da música, quando surge um coro “la la la la la awful”, Meloy vai desdobrando frases que dão a ironia do momento. (“Tem um supremacista branco na Casa Branca/ e um monte de idiotas em seu gabinete/ E você está aqui cantando num show/ Ouvindo um cara branco e hétero te dizer que tudo é horroroso”).

Ele também vem acompanhado de uma banda versátil – com destaque especial para o multi-homem Chris Funk, que toca de bandolim a saxofone, e para Jenny Conlee – e que sabe destilar suas referências e variedade musical. Há o folk, claro, mas também há Smiths (citado diretamente em “Once in My Life”), R.E.M., canções de trovadores e até mesmo musicais (a incrível “Ben Franklin’s Song”, parceria de Meloy com Lin Manuel Miranda, o autor do hypado “Hamilton”).

No fim das contas, uma hora pareceu pouco para os Decemberists, em um show que mesclou bem as novas canções com o repertório anterior da banda – destaque especial para a dobradinha final com “O Valencia!” e a épica “The Mariner’s Revenge Song”, com direito a 10 minutos de performance, interação com a plateia e até uma baleia inflável voando pela frente do palco. Um showzaço.

O mesmo não se pode dizer do DJ set feito pelo beastie boy Mike D, outra apresentação que pareceu grande demais para o palco verde, marcada por muita trucagem e pouca performance. Nem mesmo quando Mike D pegou o microfone para animar a plateia houve motivo para empolgação, fazendo sua presença ali (e até parte da memória dos Beastie Boys) um exercício ruim de nostalgia. Para quem estava ali para ver Eminem, no único momento do festival em que o espaço do complexo esportivo de Harvard pareceu ser apertado para o público do dia, foi o suficiente.

Melhor fechar o dia com o Fleet Foxes, que, mesmo debaixo de chuva, arrastou um bom número de presentes para o palco azul, em um show que mostrou bem o disco mais recente da banda, “Crack Up”, mas também saudou os fãs dos primeiros anos do grupo liderado por Robin Pecknold. Ao todo, foram nada menos que seis canções do disco de estreia homônimo, lançado em 2008, em uma apresentação calorosa e afetiva, que poderia ter sido ainda mais interessante caso o clima estivesse melhor.

Ao final de três dias de muita música, comida, cerveja e uns filmes esquisitos escolhidos pela Natalie Portman, o Boston Calling se coloca com uma ótima opção de festival para quem quer ver grandes artistas sem precisar passar perrengue e aproveitar para fazer turismo, na melhor acepção da “escola Marcelo Costa de viagens”. A comparação com um festival brasileiro pode ser injusta por diversas questões de escala, logística e mercado, mas vá lá: o ingresso para cada noite do Boston Calling custava US$ 105 (R$ 395, na conversão do dólar da segunda-feira após o festival). Já o passaporte para os três dias saía US$ 289 (R$ 1077). É praticamente a metade do ingresso de inteira para os três dias do Lollapalooza – com a diferença dá pra pagar uma parte da passagem de avião ou a hospedagem na cidade durante o festival, por baixo.

O Boston Calling também sai ganhando na estrutura. Afinal é um festival para cerca de 30 mil pessoas (contra as 100 mil do brasileiro), praticamente sem filas, com variedade de comidas, boas cervejas e facilidade para sair e chegar (a estação de Harvard fica a cerca de 20 minutos do centro da cidade e nos três dias de shows os trens não chegaram a estar lotados na ida ou na volta). Isso para não falar nos shows que não deu para acompanhar, por falta de pernas ou conflito de horários, como Pond, Tyler the Creator, Khalid, Oh Sees ou Paramore.

Estrutura, porém, seria apenas um detalhe se não fossem os shows. Chamou a atenção a disposição dos artistas em tocar na cidade que deu ao mundo nomes como Pixies, Modern Lovers, Lemonheads e… vá lá, Boston. “Foi mais legal tocar aqui que no Coachella”, disse Tyler the Creator, segundo o parceiro de cobertura Bruno Dias. Foram três dias de momentos especiais, do rap ao rock, do stoner à fofice, do folk à esquisitice. Ano que vem, quem sabe, tem mais.

TOP 5

Bruno Capelas (Scream & Yell)
1 – The Decemberists
2 – The Killers
3 – Brockhampton
4 – St. Vincent
5 – Alvvays
Menção honrosa: Lillie Mae

Bruno Dias (Urbanaque/Capricho)
1 – Tyler the Creator
2 – St. Vincent
3 – Brockhampton
4 – Lillie Mae
5 – The Decemberists

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e trabalha no caderno Link, de O Estado de São Paulo. Todas as fotos e vídeos por Bruno Capelas, exceto fotos por Boston Calling: DIA 1 – Natalie Portman DIA 2 – Geral de abertura / Segunda foto do Royal Blood / QOTSA / Jack White / St. Vincent e Brockhampton  DIA 3 – Geral de abertura / Mike D / Fleet Foxes / Fotos finais de público.

One thought on “Balanção: Festival Boston Calling 2018, EUA

Deixe um comentário para Adriano Mello Costa Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.