Entrevista: Lee Ranaldo

entrevista e resenha por Janaina Azevedo

Lee Ranaldo esteve no Brasil mais uma vez. Desde 2015, o guitarrista veio ao país três vezes, o suficiente para estreitar seus laços com as pessoas e a música daqui. Convidado pelo diretor Gustavo Galvão, fez a trilha do filme “Ainda Temos a Imensidão da Noite”, que deve estrear no ano que vem. Ganhou muitos CDs de bandas de rock, mas se interessou mesmo por Tropicália e música caipira, que ele chamou de “classic music of Brasil”, escrito assim mesmo, na grafia nacional. Tanto que a leitura que deve acompanhar essa sua nova passagem pelo país deve ser “Tropical Truth”, a versão traduzida de “Verdade Tropical”, de Caetano Veloso.

Diferente de outras passagens, porém, dessa vez Lee Ranaldo acrescentou duas novas cidades brasileiras em seu mapa pessoal: ele tocou no último domingo (06/05), em Porto Alegre, um show acústico surpreendente. E no sábado participou da Festipoa Literária, lançando o seu livro “Jrnls 80” na capital gaúcha. Do cineasta Cris Oliveira, que participa da produção de “Ainda Temos a Imensidão da Noite” e é gaúcho, Lee recebeu a recomendação de provar o churrasco. Também abriu a 20ª edição do Festival Bananada, em Goiânia, em dois shows, nos dias 7 e 8 de maio. E dessa forma vai ficando cada vez mais habitué do país.

Nesta entrevista, concedida por e-mail e com o intermédio de Luciano Valério, da produtora Desmonta, ele fala sobre esses shows, e também sobre “Electric Trim”, seu disco experimental lançado em 2017, sobre como utilizar o estúdio como uma ferramenta, além de contar como é seu hábito de escrita e criação, comentar o atual cenário da música e afastar, mais uma vez, as possibilidades de reunião com sua antiga e célebre banda – embora tenha deixado em aberto essa resposta durante participação em um evento.

Você fará shows acústicos desta vez no Brasil. Como serão? Como você escolhe o repertório para apresentações assim?
Em Porto Alegre, me concentrei na música de “Electric Trim”, em um formato acústico. Para mim, tocar de um jeito acústico “tradicional” parece bastante experimental, considerando meu histórico com a guitarra elétrica. Mas ainda tem um tanto de eletricidade no ar e uso de amplificação. E, na verdade, vai ter um pouquinho de guitarra elétrica durante o show também! Me concentro muito na voz e em vocais, mas estou tocando meus próprios acordes abertos e também criando algumas paisagens sonoras durante o concerto. Melodia é muito importante nas apresentações acústicas. Estou tentando me desafiar a fazer algo diferente – e os locais de apresentação, teatros com lugares para sentar, também é uma parte desse desafio. É bem recompensador compartilhar uma experiência com uma audiência nesses locais menores – me sinto muito mais conectado com o público.

Em Goiânia, você tocará em um dos maiores festivais de música independente do Brasil. O que você conhece desse festival? E o que está preparando?
Ouvi falar no festival, e sei que é grande. Vou apresentar dois shows lá – um acústico e um mais experimental, com guitarra elétrica e projeções. Dois concertos muito diferentes.

Você está muito ligado ao Brasil ultimamente: é a sua terceira passagem aqui nos últimos quatro anos. Também trabalhou em uma trilha sonora de um filme brasileiro. O que o país significa para você?
Demorou muito para o Sonic Youth vir ao Brasil e à América Latina – nós estávamos a 20 anos juntos quando isso finalmente aconteceu. Desde então, passei a amar muito o Brasil e outros países na América Latina e fico muito feliz de voltar. Eu amo as pessoas, a comida, a música e a cultura. Ainda é menos familiar pra mim do que, digamos, Europa ou Austrália ou Japão, então ainda estou aprendendo em cada viagem que faço para cá. Espero continuar voltando!

Você acompanha o cenário da música brasileira quando está por aqui?
Sempre ganho CDs de bandas novas e ouço-os. Tento manter os ouvidos abertos para a cena independente. Mas também estou aprendendo mais sobre a música clássica do Brasil, – a cena tropicalista, por aí. Estou lendo o livro de Caetano, ‘Verdade Tropical’, agora. Recentemente, me interessei pelo instrumento chamado viola caipira – na verdade, comprei uma na minha última visita aqui. Então tenho ouvido Helena Meirelles, e outros que tocam esse estilo “hillbilly”. Tanta coisa para aprender!

Sobre o teu livro: “Jrnls80” foi recém lançado em edição brasileira pela Editora Terreno Estranho. Como foi para você ver seus escritos traduzidos para o português? Como foi a reação dos teus fãs brasileiros?
Fico feliz de ser traduzido. O livro cobre a primeira metade da existência do Sonic Youth. Embora não seja a ‘história’ da banda, é um registro dos meus sentimentos e pensamentos durante aqueles anos enquanto nós nos tornávamos mais conhecidos. Eu já tive livros traduzidos para o espanhol e o italiano. Estou feliz de ter esse agora, em português. Acho que o livro ficou muito bonito e, até agora, as reações que ouvi foram muito gentis.

Qual a importância da escrita para você? De que forma se conecta com a sua criação musical?
Acho que está tudo relacionado de alguma forma, em termos de tentar levar uma vida criativa, reflexiva. Três coisas – criar arte visual, fazer música e escrever – me interessam desde que eu era muito jovem. De alguma forma, eles se complementam. Não pretendo desistir de nenhuma delas. Palavras escritas acabam em letras, ou poemas, ou, às vezes, na tela de uma pintura. A inspiração das minhas viagens me levam aos meus desenhos de estradas ou impressões que faço em discos antigos. São atividades diferentes, mas todas vêm de algum lugar, dentro de mim.

Você ainda escreve diários, como os que se tornaram “Jrnls80”?
Ainda mantenho anotações, mas não tanto quanto costumava. Por esses dias, meu “diários” de viagem tendem a ser mais desenhos que faço nas turnês, de estradas por onde estou viajando – são os meus “journals” do momento!

E sobre o “Electric Trim”, fala mais sobre ele e como foi a concepção e criação do seu último disco?
Desde o início, o disco era pra ser um processo novo, de exploração. Tudo que eu sabia era que seria diferente de qualquer outro projeto com que eu já tinha trabalhado. Encontrei dois novos colaboradores em Jonathan Lethem e Raul Fernandez, que se encaixavam perfeitamente com o meu método de trabalho, e cada um deles abriu novas ideias em um momento que foi importante. Tem sido empolgante que, neste momento já avançado da minha carreira, eu ainda esteja aprendendo coisas novas e tentando novos métodos. As músicas do meu disco novo nasceram no estúdio, com o meu produtor Raul Fernandez e eu – trabalhando em intervalos (ele mora em Barcelona) por cerca de um ano, construindo as músicas de rascunhos, usando o estúdio como uma ferramenta mesmo. Raul trabalhou comigo. Começamos com demos cruas, e construímos as canções de formas muito diferentes – cada uma é, de fato, como um pequeno filme – porque não há banda tocando em todo o álbum, cada música é independente e tem seu som único. O estúdio foi o instrumento primordial nesse caso, mais do que qualquer coisa. Estávamos usando o estúdio para construir esse disco de uma forma muito moderna, aproveitando os computadores, samplers, baterias eletrônicas, mas sem esquecer dos músicos. Eu queria conseguir trabalhar no aspecto da linguagem das músicas, de uma forma colaborativa similar, mais do que gerar todas elas eu mesmo, sozinho. Para o novo disco, me abri para muitas táticas e métodos, e quis uma forma de fazer o mesmo com as letras. Queria outro ponto de vista para as palavras, para que tudo não fosse do meu ponto de vista, apenas. Lá pelo fim, pedi a um amigo, o escritor americano Jonathan Lethem, para trabalhar comigo criando as letras para o disco. Foi um novo processo de desenvolvimento para mim, acho que nós dois curtimos. Eu queria permitir outras perspectivas, ao invés de apenas a minha, que influenciasse as letras – então Jonathan e eu trocamos escritos durante o período em que o disco se desenvolveu – acho que ficamos ambos bem satisfeitos com os resultados e espero que façamos mais juntos.

Você fez parte de uma geração de bandas que marcou a música independente. O que você pensa do cenário underground hoje? É mais fácil ter uma carreira hoje, com todos os recursos que você não teve?
Não tenho certeza se é mais fácil ou não. A internet abriu o acesso de uma forma que permite a qualquer um lançar sua música, mas também contribuiu para uma situação onde há uma quantidade tão grande de música que é difícil saber por onde começar! Então, de algumas formas, os velhos métodos – boca a boca, ou assistir a um show, ou ler uma resenha – ainda são as formas de descobrir novas músicas. Nunca é “fácil” ter uma carreira, isso requer muito trabalho e dedicação. Isso é algo que não muda. Ouço músicas novas o tempo todo, pop, experimental, todo tipo de coisa. Eu ainda encontro muitas músicas inspiradoras, o tempo todo.

E sobre o Sonic Youth. As pessoas costumam a te pedir para a banda voltar? O que você pensa sobre isso?
As pessoas estão sempre pedindo uma “reunião”, uma “volta”. Preciso dizer que não acho que qualquer um de nós está pensando sobre uma reunião do Sonic Youth mesmo. Nunca falamos sobre tocar ou fazer shows juntos. Sei que muitas pessoas pensam nisso, mas devo dizer, nós não pensamos. Acho que todos estão muito felizes agora, trabalhando separadamente.

Tu toca músicas do Sonic Youth nos shows solos?
Eu já toquei algumas vezes, mas não é uma prioridade para mim. Como era comum no Sonic Youth, em boa parte da nossa carreira, estou mais interessado na música que faço agora do que olhar pra trás, com nostalgia do passado. Eu amo a música que fizemos, e é divertido de vez em quando relembrar uma ou outra.

Qual foi a importância, para você, de ter tocado numa banda como o Sonic Youth?
O Sonic Youth foi uma banda especial, de um tipo que não acontece todo dia. Era um grupo de quatro iguais, todos trabalhando nas músicas, compondo juntos (menos as letras). O mais democrático que conseguíamos ser. Ficamos juntos por 30 anos e tivemos muitas experiências interessantes – do mundo do indie-rock nos anos 80 a entrar no mundo da música “corporativa”, junto com amigos tipo Nirvana e Mudhoney, tocando com Iggy Pop ou Neil Young, coisas maravilhosas, especialmente quando você percebe o quão “difícil” nossa música era. Ainda não é palatável e nem vai ser “mainstream”, mas mesmo assim sobrevivemos e construímos uma carreira ligada à arte, à cultura e ao rock and roll com os quais crescemos. Lançamos discos e vendemos uma boa quantidade deles, discos que foram, em sua maioria, adquiridos por pessoas que entendem de música. Quando a banda chegou ao fim, já tinha passado mais da metade da minha vida. Foram 30 anos juntos, uma jornada inacreditável. Fomos sortudos por estar em Nova York durante um período muito fascinante de exploração e experimentação. Nós – Thurston, Kim e eu – tínhamos ido para lá para ver mais, e para participar, então absorvemos o que podíamos e então formandos a banda para mostrar para o público o que tínhamos visto, e onde tínhamos estado, e levamos muitas pessoas junto para onde quer que fôssemos. Agora, estamos todos com nossos próprios projetos, como fizemos nos últimos anos. Todos muito comprometidos com o que estamos fazendo AGORA. Não acho que nenhum de nós está olhando pra trás. O Sonic Youth ainda tem um grande arquivo e fazemos lançamentos de arquivos, etc. Mas estamos olhando para frente, agora. Eu sei que eu estou.

Resenha: Lee Ranaldo em Porto Alegre

Thurston Moore esteve em Porto Alegre e 2012, Steve Shelley (baterista do Sonic Youth) em 2017. Em 2018, foi a vez de Lee Ranaldo, o ourives da guitarra do Sonic Youth, aportar por aqui. Agora, nos resta esperar por Kim Gordon. O fim de semana de Lee na capital gaúcha começou com a participação na Festipoa Literária, programação que celebra a literatura na capital. O guitarrista foi uma das atrações do penúltimo dia do evento, em que falou brevemente sobre o livro “Jnrls 80”, e autografou para fãs empolgados com a presença de um ídolo tão querido e acessível. “Acho muito legal estar aqui em um evento sobre livros. Nós vivemos em uma época em que precisamos de livros”, disse ele.

Pelo recinto, passeavam diferentes gerações da poesia brasileira, da jovem Luna Vitrolira até o experiente Marcelino Freire, e o marginal Chacal. Perguntado por um fã, Lee respondeu sobre a possibilidade de retorno do Sonic Youth: “you never know”. No dia seguinte, enfim o primeiro show de Lee Ranaldo em Porto Alegre. No excelente teatro do campus Porto Alegre da Unisinos, Lee subiu ao palco sozinho, munido de guitarras, violões, o arsenal de pedais, arco de violino, um celular e uma gatorra. Sim, o instrumento inclassificável criado pelo esteiense Tony da Gatorra foi parar na mão do ex-Sonic Youth, que conseguiu contextualizar o barulho bizarro daquela espécie de foice bizarra, dotada de cordas e circuitos elétricos, dentro de seu show. A plateia assistia incrédula.

Só isso já teria valido a pena. Mas o show foi muito mais. Com ecos inconfundíveis de sua antiga e celebrada banda, Lee vai construindo um túnel de som, nem tanto acústico quanto o anúncio da apresentação pregava. O repertório é baseado em “Electric Trim”, mas também inclui versões de canções de sua banda, Lee Ranaldo and the Dust, como “The Rising Tide”. É impressionante notar como a canção sai tão ruidosa somente com Lee tocando quanto a versão executada pela banda completa.

Porque Lee Ranaldo dá corpo ao barulho. Cria canções passando o braço da guitarra no chão, bate nas costas da guitarra, passa o celular pelas cordas, eletrifica o violão acústico com uma hipnose de pedais. Experimental sim, mas muito acessível também, porque tem, afinal de contas, melodia. Temos muitas bandas influenciadas, de alguma forma ou de outra, por Sonic Youth em Porto Alegre. Quem circulou pelo teatro, esbarrou em vários integrantes dessas bandas. Foi um verdadeiro fim de semana de celebração da música barulhenta e da cultura post-punk na capital gaúcha.

– Janaina Azevedo (www.facebook.com/janaisapunk) é jornalista e colabora com o Scream & Yell desde 2010. A foto que abre o texto é de Liliane Callegari / Scream & Yell

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