Texto por Cristiano Castilho
James Rhodes escreve como se vomitasse desabafos com um amigo em quem confia. “Instrumental: Memórias de Música, Medicação e Loucura” (Rádio Londres Editores, 2017, 288 páginas) é um livro que passa longe da moderna autoficção. É literatura da realidade. Uma denúncia sobre violência sexual infantil. Um relato sobre traumas físicos e psicológicos derivados disso. E um tratado particular sobre a música clássica, que se um dia presenciou o depressivo Schumann se atirar no rio Reno, viu Chopin crescer na periferia de Varsóvia para revolucionar a execução pianística, Brahms tocar em bordéis em troca de uns caraminguás e Liszt, um obcecado pela morte, visitar manicômios para se inspirar, hoje ainda tenta, com ajuda da imprensa “especializada” e elitista, de agentes interesseiros e dos próprios músicos, encravados em sua redoma asséptica, manter uma pompa artificial e excludente.
Relativamente conhecido concertista, apresentador de TV e agora escritor, James Rhodes nasceu em Londres, em 1975. Demonstrava talento para a música e, como a maioria das pessoas sensíveis, fugia dos embates competitivos das aulas de educação física. Mas aí um professor lhe deu atenção, uma atenção que pouca vezes tinha conquistado. James Rhodes foi abusado pela primeira vez quando tinha cinco anos. A última foi aos 10.
A meia década de tortura o transformou num homem frágil e descompensado, depressivo e irritadiço, propenso à adicção, incapaz de manter relações funcionais, com TOC, alucinações e anorexia. Ao mesmo tempo em que colhia silenciosamente os frutos do abuso, demonstrava talento nato para o piano. A música clássica é sua paixão e sua salvação. Seu “tesão”. No início de cada capítulo, “Instrumental” “homenageia” a obra de um compositor, com intérprete escolhido a dedo. As “Variações Goldberg de Bach nas mãos de Glenn Gould” abrem e fecham a obra, como se o livro se tornasse uma partitura cíclica. “O conceito de tema e variações é similar a um livro de contos, no qual todos se baseiam em um só tema unificador – uma história de abertura sobre um tema específico, seguida por várias histórias, cada uma delas relacionadas de algum modo com o tema”, escreve Rhodes.
“Instrumental”, porém, não é um livro de contos porque o tema não é circundado, mas aprofundado. Aos 18 anos, James Rhodes recebeu uma bolsa para estudar na Guildhall School of Music and Drama, mas parou com o piano. Sua vida empacou até revelar ao mundo o que lhe acontecia. E contar essa história, em detalhes, é como revivê-la novamente. O britânico viciou-se em álcool e heroína, foi internado num instituto mental e finalmente, com a ajuda de remédios e terapia, conseguiu ser quem sempre deveria ter sido.
Por publicizar o caso, o nome da escola e do professor abusador, o texto de Rhodes enfrentou uma batalha judicial até ser publicado. Outra vitória do britânico. No meio disso tudo, a música clássica como panaceia eficiente. Ao ser liberto de seus demônios, ao finalmente conseguir ter uma relação estável e duradoura e um filho, encontrar num golpe de sorte um agente, voltar a praticar o instrumento, Rhodes tornou-se uma espécie de ativista da música dita erudita, para colocá-la novamente no lugar em que sempre pertenceu. “O que vocês estão de fato dizendo com esse monstruoso espetáculo é que o cara da plateia tem uma cultura precária demais, que é obtuso e estúpido demais para lidar com uma mazurca de Chopin não editada, com uma bela interpretação, ou com um concerto de Mendelsohn ou com uma sonata de Beethoven. Que, em vez disso, precisam ser alimentados por conta-gotas com a música do comercial da Hoves, com toda a parafernália de luzes extravagantes, palco reluzente e pompa de salão de baile, e que precisam que eles façam vocês acreditarem que música clássica é isso. (…) Vocês continuam a corrompê-la e desvalorizá-la, até que, em pouco tempo, ela tenha sido erodida a ponto de ficar irreconhecível.”
Coragem e denúncia, ideias modernas e cotidianas para uma música que se faz de difícil porque assim o quiseram. James Rhodes, aquele que faz concertos de camisa, tênis e calça jeans, usa a literatura para desafogar. A si mesmo e ao mundo dito “erudito”.
– Cristiano Castilo (@criscastilho) é jornalista, colunista do Portal Bem Paraná, onde mantém a coluna Pista 1, e colaborador do Chicken or Pasta e da Folha de São Paulo.
Me,emocionei quando li a história desse famoso pianista.