A temporada 4 de “Black Mirror”

por Marcelo Costa

contém spóilers

No crepúsculo de 2017, o ano sombrio que observou timidamente a extrema-direita acenar e sorrir em vários cantos do planeta, a quarta temporada da série “Black Mirror” estreou no canal Netflix com seis episódios inéditos em meio a estômagos que ainda digeriam os restos da ceia de natal enquanto a espera pelo ano novo prometia ressaca, esperança e… assassinato, já que a criança que nasceu no dia 25 de dezembro será crucificada (ok, uns 33 anos depois) lá em abril, mas não se preocupe: ele irá ressuscitar após três dias. E foi em meio à tempestade de emoções da virada do ano que “Black Mirror” foi devorado por um público voraz e cuspido logo em seguida no mesmo prato: “É a pior temporada da série”, disseram. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Só para demarcar território: “Black Mirror 4” vai muito além de “Stranger Things 2”, um delicioso passatempo escapista para velhos que querem se sentir jovens, e vice-versa.

Quando Charlie Brooker criou a série em 2011, visava questionar a sociedade moderna, particularmente a respeito das consequências imprevistas das novas tecnologias. E num mundo cada vez mais violento, em que a arte já não consegue acompanhar as loucuras cometidas pela vida e redes sociais podem decidir uma eleição, o status que “Black Mirror” criou em suas três temporadas apoiou-se muitas vezes num mindfuck que ficou ausente desta quarta temporada (ou foi deixado para “Handmaid’s Tale”, a obra prima mindfuck de 2017). Essa ausência deixou a série (aparentemente) mais direta, mesmo que o mundo dos personagens ainda seja o futurismo possível das temporadas anteriores, numa opção por linearidade (será que a troca da BBC pelo Netflix pesou na decisão? Serão públicos muuuuito diferentes?) que despiu a trama de impacto, sim, mas valorizou os detalhes, e o segredo (ou Deus ou o Diabo, como diria outro) está ali, nos detalhes.

A rigor, nenhum dos seis episódios desta temporada arranha o status de obra-prima do Top 7 da série até agora, a saber:

01) The National Anthem – S01E01
02) San Junipero – S03E04
03) The Entire History of You – S01E03
04) Be Right Back – S02E01
05) Hated in the Nation – S03E06
06) Shut Up and Dance – S03E03
07) White Bear – S02E02

Por outro lado, nenhum dos seis episódios é ruim a ponto de figurar entre os três mais fracos das quatro temporadas (que, juntas, somam 19 episódios):

17) The Waldo Moment – S02E03
18) Fifteen Million Merits – S01E02
19) Playtest – S03E02

Ou seja, os seis episódios de “Black Mirror S04” mantém o padrão de qualidade de “Nosedive – S03E01” com um ou outro alcançando o nível de “White Christmas – S02E04”. Pode parecer pouco, mas vamos dar uma olhadela em cada um deles:

“USS Callister” (S04E01)
A grande frase meme da temporada está aqui, mas “USS Callister” oferece um pouco mais ao espectador ao discutir manipulação de DNAs e vidas alternativas, este último um tema caro a Charlie Brooker, que vem questionando suavemente ao longo das quatro temporadas o quanto a tecnologia pode transformar em “vida” uma memória (“Black Museum” irá aprofundar esse tema que perpassa também “San Junipero”, “Hang The DJ” e “Be Right Back”) e o quanto isso se choca tanto com eutanásia (desligar uma réplica virtual é assassinato? Se existe uma réplica sua em um universo paralelo, a de um jogo, ela “existe” realmente? No que isso implica?) quanto sobre conceder poder a algo que pode se libertar e dominar a raça humana (um dos temas de “Metalhead”). O plot flagra um solitário e talentoso programador de jogos que se vinga das pessoas (virtualmente) colhendo seus DNAs e recriando uma réplica virtual que participará de um game (notadamente inspirado em “Star Treck”) comandado por ele (e todos serão humilhados no jogo). Isso até a tripulação (funcionários do escritório em que ele trabalha) se revoltar. Um episódio menor, mas com reflexões interessantes.

“Arkangel” (S04E02)
Dirigido pela atriz e diretora Jodie Foster, “Arkangel” é outro episódio que questiona os limites da tecnologia (nos moldes de “The Entire History of You”). Aqui, uma mãe solteira se assusta quando a filha pequena desaparece em um parquinho após seguir um gato. A garotinha é logo encontrada, mas o susto faz com que a mãe descubra o Arkangel, um aparelho que através de um chip inserido no cérebro da criança, permite aos pais rastreá-los, monitorar sua saúde e ver o que eles estão vendo através de um tablet. Como diria o cara do canal de vendas, não desligue agora, o Arkangel faz mais: ele pode detectar os níveis de estresse da criança, e pixelar qualquer coisa que possa causar estresse ou medo. A mãe investe no aparelho e o que pode auxilia-la quando Sara é um bebê poderá ser a ruína da sua relação com a filha quando a garota atingir a adolescência. Um grande episódio sobre censura, escolhas, limites e educação infantil.

“Crocodile” (S04E03)
Outro episódio que esbarra em temas já tocados na série, o de recuperação e registro de memórias (como em “The Entire History of You” e “Be Right Back”), “Crocodile” começa com um atropelamento: um casal bêbado atropela um ciclista numa rodovia próxima ao oceano, na Islândia, e decide jogar o corpo do homem ao mar. Décadas depois, já separados, o homem procura a mulher dizendo que quer confessar o crime, mas ela tem uma reação inesperada, que irá aumentando conforme as coisas fogem ao seu controle. Paralelamente, uma agente de seguros tenta desvendar a velocidade de um carro num atropelamento. Para isso, ela utiliza um aparelho que recolhe as memórias das pessoas que estiveram próximas ao acidente no momento citado. O destino das duas, lógico, irá se encontrar. Com um dos finais mais surpreendentes de toda a série e uma bela fotografia, “Crocodile” é um dos grandes episódios da quarta temporada.

“Hang the DJ” (S04E04)
O equivalente a “Nosedive” em 2017 transporta o espectador para dentro de um aplicativo de relacionamento, tipo Tinder (mas você só saberá isso quando o episódio chegar próximo ao fim). Lá dentro do aplicativo, casais estão fadados a se conhecer e se relacionar durante um tempo pré-determinado (você já viu “O Lagosta”?. Se não viu e gostou desse episódio, assista) que pode ser de 11 minutos a cinco anos ou, quem sabe, a eternidade. Seguimos as histórias de Amy e Frank, que acabaram de se conhecer e terão apenas 12 horas de relacionamento. A “vida” dos dois irá se esbarrar aqui e ali no mundo do aplicativo e o cínico final feliz do episódio soa uma crítica aos apps de namoro tal qual a música de Morrissey e Marr (que toca no final do episódio e o nomeia) soava uma crítica ao cara que tocou uma música do Whan! logo após avisar do desastre nuclear em Chernobyl. E quem nunca pensou: “Enforque o programador dos algoritmos do Tinder que escolheu essa pessoa que não tem nada a ver comigo para eu sair hoje à noite!”, né mesmo. Um baita episódio.

“Metalhead” (S04E05)
O episódio mais esvaziado da temporada, o que permite ao espectador criar um universo próprio para a história de Bella, Clarke e Anthony, um trio que vagueia num carro tentando cumprir uma missão arriscada. A câmera P&B flagra um cenário devastado, uma terra arrasada que, segundo Clarke, foi detonada pelos cachorros. “Eles acabaram com tudo”, avisa. Há uma singela discussão sobre ser ou não ser um porco e, depois, um dos motes do episódio, quando Bella fala que quer aliviar a vida de alguém. Os três partem para a missão, que falha. Não há nenhuma explicação do cenário, mas percebe-se que um grupo de rebeldes (seres-humanos) tenta sobreviver num território dominado por máquinas, que eles chamam de cães. É um dos finais mais tristes e bonitos da série, acrescentando esperança e humanidade num mundo hostil: Bella buscava ursinhos de pelúcia para (aparentemente) seus filhos. Doloroso.

“Black Museum” (S04E06)
O grande episódio da temporada é dividido em três histórias, todas com um potencial enorme de mindfuck, e conecta diversos episódios da série, o que leva a crer que tudo acontece em realidades simultâneas (ou, no mínimo, de maneira próxima no mesmo mundo). Aqui uma garota estaciona o carro em um posto de gasolina abandonado em lugar nenhum, tira a placa solar para abastecer o veículo de energia e vai fuçar o museu aparentemente abandonado ao lado. Quem a recebe é Rolo Haynes, o dono do museu, que coleciona e expõe objetos de crimes. Na sala há referências aos eventos de “White Bear” nos telões e na exposição, a abelha-robô de “Hated in the Nation”, o tablet de “Arkangel”, o jogo de “Playtest”, a banheira onde acontece um dos assassinatos de “Crocodile”, o aparelho que Daly usava para transformar o DNA em “USS Callister” e a tecnologia dos cookies vista principalmente em “White Christmas” – essa tecnologia também faz parte da trama. Um dos personagens lê a história de “Fifteen Million Merits” nos quadrinhos. E, claro, “San Junipero”, cuja ideia da trama – idosos indo para uma nuvem – é rapidamente citada por um personagem. Descobrimos que a TCKR, a empresa que desenvolveu e mantém a realidade de San Junipero, foi também a empregadora de Haynes, e fica implícito que o nome do projeto vem do Hospital Saint Juniper, onde ficava o laboratório da TCKR onde Haynes trabalhava. E isso é só o início do roteiro, que em uma das histórias irá tratar de download e upload de mentes (e vidas) e, no outro, de compartilhamento de dor para uso médico num resultado devastador. O fechamento, simplista, é bacana, mas não está na altura do desenvolvimento das duas histórias. Ainda assim, uau, que episódio!

No frigir dos ovos, “Black Mirror Season 4” é uma ótima temporada que tende a rescer após a expectativa das pessoas baixarem. Atropelada pelo próprio padrão que criou (o que, por si só, já seria um tema bem interessante para um episódio da série), Charlie Brooker foi mais sútil aqui do que de costume, o que também faz pensar no quanto de ideias escabrosas sobre a humanidade um único homem pode ter – vale lembrar que dos 19 episódios, Charlie escreveu sozinho o roteiro de 14, cinco deles no Top 7 lá em cima. Dos outros cinco, ele dividiu a tarefa em quatro. Ou seja, apenas um dos 19 episódios não leva sua assinatura (“The Entire History of You”, de Jesse Armstrong). Ainda sombria e assustadoramente satírica, “Black Mirror” continua genial na maneira que observa o fracasso de um mundo que, pelo visto em 2017, ainda irá inspirar muitas temporadas da série. Infelizmente.

Ps. A proposito, meu ranking atualizado ficou assim. Coloque o seu nos comentários!

01) The National Anthem – S01E01
02) San Junipero – S03E04
03) The Entire History of You – S01E03
04) Be Right Back – S02E01
05) Hated in the Nation – S03E06
06) Shut Up and Dance – S03E03
07) White Bear – S02E02
08) White Christmas – S02E04
09) Black Museum – S04E06
10) Crocodile – S0403
11) Arkangel – S0402
12) Hang The DJ – S04E04
13) Nosedive – S03E01
14) Men Against Fire – S03E05
14) Metalhead – S04E05
16) USS Callister – S04E01
17) The Waldo Moment – S02E03
18) Fifteen Million Merits – S01E02
19) Playtest – S03E02

– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

2 thoughts on “A temporada 4 de “Black Mirror”

  1. Eu gosto de pensar que os episódios são histórias que o Rolo também contou pra Nish. Enfim…

    Meu ranking:
    01 White Christmas
    02 White Bear
    03 The Entire History of You
    04 Black mUseum
    05 San Junipero
    06 Hang the DJ
    07 The National Anthem
    08 Crocodile
    09 Hated in the Nation
    10 Nosedive
    11 Fifteen Million Merits
    12 Be Right Back
    13 Arkangel
    14 Metalhead
    15 USS Callister
    16 Men Against Fire
    17 Playtest
    18 Shut Up and Dance
    19 The Waldo Moment

  2. Eu recomendo que asssistam Hang the Dj, adorei ver no episódio a Georgina Campbell, é uma atriz preciosa que geralmente triunfa nos seus filmes. Recém a vi em Rei Arthur a Lenda da Espada, é um dos melhores lançamentos de filmes de 2017, inclusive a passarão em TV, sendo sincera eu acho que a sua atuação é extraordinário, em minha opinião é a atriz mais completa da sua geração, mas infelizmente não é reconhecida como se deve.

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