Música: “Songs of Experience”, U2

Texto e faixa a faixa por Rodrigo Salem

“Songs of Experience”, o 14º disco de estúdio do U2, saiu na sexta-feira (1) que abriu o mês de dezembro. Era para ter sido lançado um ano depois de “Songs of Innocence” (2014), finalizando o que seria um projeto duplo. Mas vieram as eleições americanas, as crises de refugiados, Síria, avanço da ultradireita, comemorações do “The Joshua Tree” (1987) e uma experiência de quase morte sofrida por Bono. E tudo mudou.

Dois anos depois da data prevista para o lançamento, a banda entrega um álbum que reflete o trabalho anterior – pincelando versos reagrupados em algumas das novas canções –, mas que serve como testamento do espírito do U2 ao longo desses 40 anos. É um disco politizado, mas também o mais íntimo desde “Boy” (1980). Digo isso porque Bono deixa um pouco de lado a formação emocional que teve com a morte da mãe quando ainda era criança para lidar com a própria mortalidade.

Os questionamentos começam já na emocionante “Love Is All We Have Left”: “Eu queria o mundo, mas você era mais inteligente/ E que tudo que possuímos é a imortalidade”. Na seguinte, “Lights of Home”, Bono é mais direto: “Eu não deveria estar aqui, porque deveria estar morto/ Posso ver as luzes na minha frente”. O grupo não fala sobre o que aconteceu e nem vou comentar as teorias que pululam nos sites de fãs – mas não tem relação com o acidente de bicicleta do vocalista em 2014.

“Songs of Experience” foi muito afetado pelos acontecimentos globais do ano. As letras são cartas de amor, que podem ser lidas tanto de maneira pessoal quanto em um contexto mais genérico. Amar é ser político hoje em dia, os rebeldes novamente estão com flores nas mãos. Foi um risco para o grupo. Ser cínico hoje em dia é quase uma obrigação, mas o álbum é direto e otimista. Pode ser taxado de piegas e quem o fizer talvez não esteja errado. Mas não dizem o mesmo de “All We Need Is Love”?

São 13 canções na versão tradicional e 17 na versão deluxe acrescentando dois remixes – “Lights Of Home (St Peter’s String Version)” e “You’re The Best Thing About Me (U2 Vs. Kygo)” – mais “Ordinary Love (Extraordinary Mix)”, que a banda fez para o filme “Mandela: Long Walk to Freedom” (2013) e surge em versão renovada, e uma canção inédita, “Book of Your Heart”. 

Musicalmente, o disco não é coeso. Você pode encontrar vários U2 nele. O U2 de “War” (1983) em “Red Flag Day”; o U2 de “All That You Can’t Leave Behind” (2000) em “Get Out of Your Own Way”; o U2 de “Achtung Baby” (1991) em “The Blackout”; o U2 de “No Line on The Horizon” (2009) em “Summer of Love”; o U2 de “Pop” (1997) em “American Soul”; e o U2 de “The Joshua Tree” (1987) em “Lights of Home”. Tem para todos os gostos.

Não que não tenha novidades. “Love Is All We Have Left”, a minha preferida, é como se a banda tivesse um filho com o Daft Punk criado pelo The XX. “The Showman (Little More Better)” é Beatles em início de carreira, quando a inocência ainda imperava.

Ironicamente, o álbum deveria soar como uma despedida. Mas sua mensagem de que “o amor vencerá” é mais “innocence” que “experience”. Um passo ousado e bem-vindo. É um U2 renovado, mas melancólico e ciente de que seus dias estão contados. É triste e alegre. Como uma mensagem de amor em meio a tanto ódio.

FAIXA A FAIXA

U2 – SONGS OF EXPERIENCE

“Love Is All We Have Left” – Se o U2 queria mostrar que “Songs of Experience” é diferente de tudo que eles produziram, escolheram bem a música de abertura. Bono em uma das suas letras mais íntimas chora por cima de um oceano cinza de sintetizadores. Em determinado momento, usa um vocoder e a canção vira um encontro melancólico de U2 com Daft Punk e The XX. Possivelmente, uma das melhores músicas do grupo. Não pensei que havia energia no quarteto para mudar tanto as regras e ainda sair vencendo.

“Lights of Home” – Depois do impacto da abertura, essa música precisa de certa paciência. Mas vale a pena. É o U2 do “The Joshua Tree” com um ar de Bruce Springsteen. Música para ouvir na estrada com o volume no talo. Traz o fã mais tradicional de volta. The Edge entrega um solo poderoso no terço final que abre para um coral gospel inesperado – cantado pelas Haim, que emprestaram o ritmo de “My Song 5”. A letra fala do misterioso encontro de Bono com a morte e a banda começa a brincar com as referências ao disco anterior, algo que percorre quase todo o “SoE”. Só lembrando: “Songs of Innocence” e “Songs of Experience” seriam um projeto duplo inspirado em William Blake. Aqui, Bono pincela a frase “free yourself to be yourself”, de “Iris”.

“You’re The Best Thing About Me” – O tema do amor como herança retorna com força no primeiro single. Até entendo a escolha para vender o disco, mas é como fazer um trailer de comédia para um filme de terror. É legalzinha, fica ainda melhor no fim, quando The Edge começa a cantar, mas o disco é bem mais complexo.

“Get Out Of Your Own Way” – A música que menos gosto do álbum. Recicla “Beautiful Day” na cara dura e tem o pior refrão do grupo desde a criação de “Miami”. Posso ouvir Taylor Swift cantando facilmente “I can help you/ but it’s your fight, your fight”. A mensagem é juvenil demais para quem já escreveu “Bullet The Blue Sky” e nem a pregação de Kendrick Lamar no fim (e começo da faixa seguinte) salva.

“American Soul” – Lamar continua seu poema subversivo bíblico até a guitarra de The Edge começar a comandar a melodia. Tem ruídos estranhos e bips como se a faixa tivesse saído do “Pop”. Seria uma das melhores faixas se a banda não utilizasse parte da letra de “Volcano” (“We are rock and roll. You and I are rock and roll”, que nem é o melhor trecho da canção original) e quebrasse o clima de originalidade. É a música mais politizada do álbum.

“Summer Of Love” – Inspirada pelo jardineiro de Aleppo, a música tem uma pegada mediterrânea com Lady Gaga cantando um “loooove” discretamente no fim. Tem uma referência a “The Ground Beneath her Feet”, que a banda escreveu para o filme “O Hotel de Um Milhão de Dólares” (2000), de Wim Wenders (inspirados em Salman Rushdie) na guitarra de The Edge, mas não é uma das minhas preferidas.

“Red Flag Day” – A segunda canção que Bono compôs pensando na situação da Síria. Encaixa bem depois de “Summer of Love”. Uma mistura de The Clash com Police, a música caberia fácil em “War”. Talvez seja a música mais retrô do U2 em anos.

“The Showman (Little More Better)” – Aposto que será a música que mais dividirá os fãs. A levada feliz e solar com ar sessentista de Beatles traz uma banda alegre, solta e relaxada como não eu ouvia desde “All That You Can’t Leave Behind”. Tem metais, letra sarcástica refrão grudento pop e uma homenagem à “In a Little While” na guitarra de The Edge no fim. Podia ter sido o primeiro single para mostrar que o álbum não é o mesmo de sempre.

“The Little Things That Give You Away” – A música fez sua estreia ao vivo em maio, mas a versão do disco é mais poderosa que as versões no palco B. The Edge reveza entre o teclado climático e os riffs rápidos de “Where The Streets Have no Name” por baixo do vocal. A balada crescente ganhou muito mais camadas em estúdio.

“The Landlady” – Apesar da letra boba, a melodia é uma das mais fortes do disco. Bono volta a arriscar seus famosos falsetes, The Edge continua atuando por baixo da linha principal melódica de maneira quase jazzística e não há nenhuma mudança óbvia no tempo da música. Há uma clara influência de The Police no final e o riff de abertura é uma referência à “Raised By Wolves”, do “Songs of Innocence”.

“The Blackout” – Até agora não entendi como o U2 não investiu nesta música como primeiro single – apesar de ter sido o primeiro vídeo. A guitarra tem uma vibração meio “The Fly” encontra Jack White. Mas quem manda é levada de baixo, filha bastarda de “Volcano”. A letra trafega com precisão entre o político e uma relação amorosa. Pode ser um dos melhores momentos da próxima tour.

“Love Is Bigger Than Anything In Its Way” – Uma pesquisinha rápida pelos sites de fãs e você notará que é a canção que mais chamou a atenção. Normal. É uma balada tradicional do U2 levada no piano e nos sintetizadores até explodir em guitarras. Ironicamente, o coral no terço final parece muito o que o Coldplay fez em “Ghosts”. Ladrão que rouba ladrão…

“13 (There Is A Light)” – A última brincadeira de referência ao disco anterior fica ainda maior. “Song for Someone”, do “SoI”, empresta seu refrão para a música e vira espinha dorsal da canção, apesar de cantada em uma melodia rearranjada. A ideia de ser o lado final de um projeto duplo distrai.

– Rodrigo Salem, um jornalista brasileiro trabalhando em Los Angeles

Leia também:
– U2 em São Paulo: The Joshua Tree Tour 2017 (Noite 2), por Marcio Guariba (aqui)
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– U2 em São Paulo: um megashow com jeito de festinha particular, por Tiago Agostini (aqui)
– “How To Dismantle An Atomic Bomb“: um disco frouxo do U2, por Jonas Lopes (aqui)
– “All That You Can’t Leave Behind”: a volta do U2 ao rock básico, por Marcelo Costa (aqui)
– Bono: um gênio de coração mole ou um completo imbecil?, por Diego Fernandes (aqui)

4 thoughts on “Música: “Songs of Experience”, U2

  1. Rodrigo, O filme de Mandela é biográfico, mas não é um documentário. Parabéns pelo texto. Sempre informativo, mas com opiniões de quem conhece a banda profundamente.

    1. Patricia, o equivoco do editor 🙂

      Achei importante incluir a informação das músicas extras da versão deluxe, e na rapidez não me atentei que era um filme biográfico e não uma documentário. Obrigado pela correção.

      Marcelo

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