Entrevista por Gil Luiz Mendes
Ir para um show do BaianaSystem é ter a certeza de ir ao encontro de um estado de quase catarse coletiva. O que se vê em cima do palco e na parte de baixo, em meio ao público, é uma espécie de transe dançante embalado por graves fortes e uma batida que traz uma nova linguagem para ritmos tradicionais da cultura de Salvador, como o samba reggae e afoxé.
Reconhecidos pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como a melhor apresentação ao vivo do país em 2016, o grupo soteropolitano confessa que só chegou a esse nível de excelência depois de errar muito e continuar experimentando coisas novas a cada novo show. Outro fator que levou o BaianaSystem a outra patamar é o aclamado álbum “Duas Cidades”, que figurou em diversas listas de melhores do ano passado (Scream & Yell incluso) e estas prestes a ganhar edição em vinil (via Vinyl Land Records).
Não à toa, “Duas Cidades” já é considerado por muitos como um dos melhores discos da década, e a própria banda sabe que os holofotes em torno deles está cada dia mais forte. Longe da pretensão de serem os ressignificadores da música baiana, eles afirmam que não fazem parte da indústria do Axé, mas reconhecem que o modelo que foi vendido para o Brasil como arte da Bahia se esgotou. Foi aí que eles ocuparam o espaço, sendo a voz de quem aprende a arte de uma Salvador que está nas ruas.
Russo Passapusso (voz) e Beto Barreto (guitarra baiana) conversaram com o Scream & Yell minutos depois do show que a banda vez o Festival Bananada 2017, em Goiânia. Durante a entrevista a dupla falou sobre experimentalismos ao vivo (“Através do erro a gente encontrou o caminho”), público (“A vida das pessoas mudou, elas não pegam ônibus do mesmo jeito, elas já reclamam de outra forma”), política (“Literalmente aconteceu um golpe, e dentro disso as coisas começam a se perder”) e arte. Confira o bate papo!
Por que vocês são considerados o melhor show do Brasil atualmente?
Russo – Acho que é por conta do Pelourinho (risos). Aquele lugar ali o cara vai e o corpo arrepia, e as vezes não sabe o porquê. Muito sangue desceu por aquelas ladeiras. O Mercado do Peixe, que é um lugar onde os negros eram guardados, é onde une todas as coisas, a Cidade Alta e a Cidade Baixa… Esses são os lugares onde a gente aprendeu a cantar e a tocar. O BaianaSystem é experimentação e através do erro a gente encontrou o caminho. Logo, a gente é o melhor show porque a gente errou bastante.
E como vocês lidam com essa questão do erro?
Russo – A gente não tem medo de errar. É meio um ensinamento da cultura do jazz norte-americano, mas a gente não se vangloria por isso. Não é nada que a gente sabe, mas é algo pelo qual estamos passando. A gente faz isso naquele momento do palco, mas não conseguimos pasteurizar e obter a fórmula. A gente sempre se coloca no sentido de humildade muito grande para que a música continue utilizando a gente como um tipo de instrumento.
E de onde vem a referência para fazer shows tão empolgantes?
Russo – É o bule-bule, é a música do Sertão, a coisa de Cachoeira, o samba-reggae, o frevo, as ressignificações de Beto com a guitarra baiana, tudo isso junto com a energia do rock n’ roll e a cultura do grave. Antes éramos muito Bahia e Jamaica dentro das nossas experiências, mas agora também tem Angola e as distorções. A gente bota isso tudo no caldeirão e pegamos um pouco de cada um desses temperos para colocar em cada show.
Qual a importância do “Duas Cidades” para a história da banda?
Beto – Quando o “Duas Cidades” chega, em 2016, a banda já tinha seis anos. O primeiro disco foi meio um primeiro quadro de possibilidades que permitiu que a gente experimentasse. Fomos fazendo isso e lançando singles, porque ainda não tínhamos um disco pronto. Com isso deu para sentir um pouco a resposta do público. Houve uma maturação nossa e do público. Formatamos isso no “Duas Cidades’ junto com o (produtor) Daniel Ganjaman. Ele viu nosso show e juntando com as referências dele conseguimos fazer um bom trabalho. Sabíamos que depois desse disco o Brasil ia conhecer aquilo que, de certa forma, já fazíamos antes. Mas o disco também teve uma vida própria e nos shows permanecemos fazendo as nossas experimentações, porque somos uma banda de ao vivo.
Vocês se veem como a nova música baiana ou os reinventores da axé music, como muitos rotulam?
Russo – Eu acho que não tem nada de novo. A gente aprendeu que samba-reggae já era uma experimentação, novos derivados de samba, novos derivados de reggae. Aí bota uma ragga com um samba-duro, mistura o kuduro com mais não sei o quê… Chegou uma hora que a gente parou de nomear. A gente fala desses ritmos para o público se localizar, mas se não falássemos, eles dançariam e entenderiam da mesma forma.
E você acha que público consegue entender esse recado?
Russo – O nosso grande agradecimento à música baiana são aos ouvidos das pessoas que estão na rua, que são tão inquietas quanto a nossa voz. Se eles perceberem que eu não tô ali fazendo uma coisa igual àquele mesmo formato de jabá da rádio, de ficar falando nome da banda e mandando recado e blá, blá, blá… ele pensa: “Opa, eu também não tô mais afim disso”. A vida das pessoas mudou, elas não pegam ônibus do mesmo jeito, elas já reclamam de outra forma e diante disso começa a rolar um espelho da situação.
É aí que vocês se diferenciam desse axé mais comercial?
Russo – Essa coisa de axé é enriquecedor quando falam dos músicos e dos mestres que começaram com isso, com as escolas, com o samba-reggae, ijexá, afoxé, mas quando se fala de indústria, a gente não tem essa participação, procura não entender e não participar. Distraídos venceremos a indústria do axé que se utilizou tanto dessa cultura de massa, que acabou secando o pote de assunto e de essência. A gente vem por outro viéis.
O discurso político está muito presente na música e nos shows de vocês. Esse mês completa (ou) um ano do golpe. Como vocês enxergam o país após esses 12 meses?
Beto – A gente está no meio de um maremoto sem conseguir entender o que está acontecendo. O momento do Brasil hoje talvez seja o mais delicado de muitos anos. Literalmente aconteceu um golpe, e dentro disso as coisas começam a se perder. O depoimento do Lula para o Moro foi muito emblemático. Parece que tudo se resume naquilo, nos atropelamentos que acontecem. A gente fica tentando reagir de uma maneira com a verdade do nosso dia a dia e tentando modificar, porque tem horas que dá uma desacreditada política.
As letras de vocês tem bastante cunho social, enquanto o som é dançante. Isso mostra que dá pra fazer música para pensar ao mesmo tempo?
Russo – Totalmente. A gente incorpora isso. Exemplo: quando você sonha seu sangue está se movimentando da mesma forma que se você estivesse fazendo aquilo com que você está sonhando. Se você sonhar que está caindo, seu sangue acelera. Nosso sangue com a música faz isso. Ela faz a gente viver como se realmente estivéssemos fazendo parte daquilo que a música está falando. Acreditamos realmente que as pessoas incorporam a música. O movimento está nisso. Se engana quem pensa que o show é só aquilo que está no palco! É toda caminhada que tivemos para estar ali.
– Gil Luiz Mendes (https://www.facebook.com/gil.luizmendes), jornalista, 32 anos, viveu boa parte da vida no Recife e hoje mistura a sua loucura com a de São Paulo. Tem passagens pelas rádios Jornal do Commercio, CBN , Central3 e tem textos publicados no IG e na Carta Capital. É skatista e músico quando dá tempo.
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