por Renan Guerra
Depois de nove anos sem gravar, a cantora e compositora norte-americana Diamanda Galás lança dois novos discos em 2017, “All The Way” e “At The Saint Thomas The Apostle Harlem”, que trazem canções tradicionais e clássicos do jazz em releituras típicas da artista, que sempre consegue ressignificar suas canções, inserindo-as na atualidade. Ambos os discos trazem a marca de Diamanda, com seu canto intenso, de formação clássica, porém rasgando sílabas, desmontando versos e fazendo os ressurgir em seu piano microtonal ou em sons guturais, como que a celebrar a dor e a morte como forma de seguir vivendo.
Toda vez que se fala de Diamanda Galás se recai em uma lista de “polêmicas”: suas acusações de blasfêmia; sua luta em torno da AIDS; suas declarações agressivas; suas performances chocantes ou mesmo seu ensaio com Annie Leibovitz, onde aparece nua e crucificada. É como se a mística em torno da artista fosse maior que sua obra. De qualquer modo, essa mística é parte da construção de sua imagem: misteriosa, afrontosa e intensa. Galás fará 62 anos em 2017, já são mais de 30 anos de carreira e sua voz segue com a força de um canhão. Como se cada vez mais próxima da morte, mais ela pudesse ir além, arrancar essas dores do fundo da alma.
Em entrevista a Vice, Diamanda disse: “Para mim, se canto uma música que você diria que é bonita, minha interpretação a leva para outro lugar, porque mostra a morte da virgem, o animal que sai na primavera e leva um tiro de um caçador. É a beleza que é muito ameaçadora para mim, então costumo fazer uma justaposição de algo que pode ser bonito com algo que é duro, só porque eu acho que na vida eles existem juntos. Faço isso para salvar a mim mesma, para me proteger para que eu não saia por aí como Bambi. Tenho muito medo de fazer isso e é muito melhor estar alerta”. Nesse sentido, violência, morte, medo e solidão engendram-se como temas clássicos da humanidade e que nunca deixarão de reverberar sobre nós, portanto esse universo de Diamanda segue sendo fértil e instigante.
O disco “All The Way” apresenta o lado mais pop de Diamanda; entenda-se pop apenas no sentido de formatação das canções, mais acessíveis, não tão conceituais. Aqui elas seguem esse padrão início-meio-fim, com refrão e tudo, aproximando-se de seus discos “Malediction and Prayer” (1998) e “The Singer” (1992). Para aqueles que desconhecem o universo da artista, talvez o início mais apropriado seria começar pela faixa final deste disco, “Pardon Me I’ve Got Someone To Kill”, antigo sucesso country que aqui mais se aproxima do jazz. Para os iniciados, “All The Way”, a música-título, traz um piano que parece uma faca a nos apunhalar, com a voz de Diamanda assumindo sua força de cantora lírica. “The Thrill Is Gone”, faixa de Roy Hawkins e Rick Darnell, que foi sucesso na voz de B.B. King, é esmigalhada para ressurgir em forma de uivos, em meio aos atritos de sua voz, como se fosse uma canção nascida para Diamanda. “All The Way” foi gravado em estúdio, em San Diego, e ainda traz alguns trechos gravados de forma ao vivo, durante sua turnê, em cidades como Paris e Copenhagen. Entre as várias releituras de clássicos do jazz, o disco traz também um solo, ao piano, de “Round Midnight”, de Thelonious Monk.
“At The Saint Thomas The Apostle Harlem”, por sua vez, é mais Diamanda impossível: complexo, dúbio, cheio de curvas. Saint Thomas é uma igreja católica de estilo neogótico localizada no Harlem, em Manhattan. Construída por imigrantes no início do século XX, ela está fechada desde 2003, quando foi condenada pela prefeitura de Nova York. Os padres salesianos, em crise econômica, disseram não poder reformar o espaço e desde esta data se debate a demolição do espaço. Protestos, abaixo-assinados da população e um debate acalorado sobre preservação do patrimônio histórico rondam o espaço, que serviu de cenário para o seu disco ao vivo.
Produzido pela Intravenal Sound Operations e pela Red Bull Music Academy, “At The Saint Thomas The Apostle Harlem” foi gravado em maio de 2016, tendo a acústica da igreja criado um espetáculo único para esta gravação, especialmente com seu repertório de “death songs”, como gosta de chamar a própria artista. Este repertório inclui canções tradicionais, como as de Jacques Brel e textos musicados pela própria Diamanda, incluindo-se aqui obras do francês Gérard de Nerval, do italiano Cesare Pavese e do grego Lefteris Papadopoulos. Sempre viajando sozinha, ela e seu piano, é como se aqui existisse uma universalidade de sons, mas tudo o que temos e a voz e as teclas, a criar um cenário de completa angústia e disrupção.
A faixa tradicional “O Death”, curiosamente aparece em duas versões distintas em ambos os álbuns, isso que “O Death” já aparecia em outra versão em seu último disco, “Defixiones – Will and Testament”, de 2008. De qualquer modo, são duas versões distintas e tão intensas, que ambas merecem seu destaque, trazendo algo que nos afeta de uma forma inexplicável, como se não soubéssemos muito bem o que esperar durante os mais de 10 minutos que cada uma delas têm. Ambas as versões incluem gritos, ranhuras, grunhidos, como que a ouvirmos porcos a serem assassinados, criando um cenário de caos e tensão.
Os dois novos discos foram lançados de forma independente por Diamanda, que cuida de sua própria carreira há anos. Não podemos dizer que ela ficou à margem da indústria fonográfica, mas sim que ela queria explodir essa indústria. “A música não é deles, é minha. Isso me deixa puta”, afirmou a artista. “Eles que se fodam. Esses porcalhões gordos que têm uma renda fixa e não entendem nada de música. Eles não fazem ideia do que realmente interessa ao público e só lançam o mesmo chorume de novo e de novo. Essas não são pessoas que me interessem”.
O interessante e vibrante destes dois novos discos é que agora Diamanda já entraria no hall da terceira idade, ela seria quase uma vovó da obscuridade avant-garde, e não mais aquela jovem violenta e escandalizante de “The Litanies of Satan” (1982). Agora uma senhora com maquiagem pesada a revisitar um catálogo de canções que dão frio na espinha, que nos levam a essa hecatombe de sentimentos que só sua voz poderia nos levar. E há certos momentos em que precisamos relembrar que isso que ouvimos é a voz de uma mulher de 62 anos, a lutar pela vida, a enfrentar a morte de frente e a escancarar seu grito de dor. Curiosamente, Galás já afirmou que “quando era muito jovem, me sentia muito velha porque estava totalmente desligada de todo mundo à minha volta. Para nós mulheres, dizem que somos velhas quando temos 20 anos. Isso é muito cruel. Sempre me senti mais jovem do que a primavera e mais velha que Deus quando estou trabalhando; quando não estou, me sinto como qualquer outra pessoa, sinto que não sei para onde estou indo. Não sei o que sou, isso é horrível”. É revigorante vê-la envelhecer com tanta ousadia. Além disso tudo, Diamanda anda mais atuante virtualmente, divulgando muito de sua turnê no Facebook e postando bastante em sua nova conta do Instagram, trazendo à tona um lado mais palpável da artista: seguindo-a nas redes sociais até parece que ela é um pouco mais humana e próxima de nós do que seus discos fazem parecer.
“All The Way” & “At The Saint Thomas The Apostle Harlem” estão disponíveis nas plataformas digitais e em CD. “All The Way” também está disponível em vinil, porém sob encomenda, já que sua primeira edição está esgotada. Fica a dica: vá atrás destes dois grandes discos!
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites A Escotilha e Scream & Yell.