por Leonardo Vinhas
O visual de uniformes escolares à inglesa da Quartabê já sugere humor à primeira vista e, realmente, o quinteto paulista gosta de brincar. Só que a folia aqui não são sacadinhas irônicas em letras – até porque o som é instrumental. A brincadeira está na impressionante naturalidade com qual eles revisitam o repertório do maestro Moacir Santos, em releituras cheias de personalidade e ousadia – sem perder de vista a obra original inspiradora.
Moacir Santos (1926-2006) foi um compositor, arranjador e multi-instrumentista praticamente sem par na música brasileira (Hermeto Pascoal é outra história). Foi professor, entre outros, de João Donato e Baden Powell. Seu trabalho é referência em conservatórios e escolas de música. Bandas que interpretam sua obra tendem a ser excessivamente reverentes, a ponto de engessar o que fluía naturalmente nos registros fonográficos do mestre.
Não é o caso do Quartabê, que “quebra” e reconstrói algumas de suas estruturas, tudo isso em meio a uma presença de palco festiva, que inclui dancinhas, coreografias e performances dos cinco integrantes – Mariá Portugal (bateria), Joana Queiroz (saxofones), Maria Beraldo Bastos (clarinete e clarone), Ana Karina Sebastião (baixo) e Rafael “Chicão” Montorfano (piano e teclados). A banda foi rapidamente incorporada ao circuito de festivais, principalmente os dedicados ao jazz e à música instrumental, e tem uma programação de shows para 2017 que vai do festival Sonido, (que acontece nesta semana) em Belém (PA), passa pelo sul do país e chega até alguns palcos europeus.
Em entrevista ao Scream & Yell, Chicão e Mariá Portugal relembram o recente começo da banda (formada em 2015) e comentam sobre os passos a seguir, que incluem novo disco e outros objetos de estudo.
Vamos começar pela formação da banda: é fácil imaginar o clichê de “amigos escutam _______ (insira banda ou gênero pop aqui), todos gostam, e decidem se juntar para formar uma banda”. Mas é bem pouco comum pensar em “amigas (e um amigo) decidem virar no avesso a obra de Moacir Santos” (risos). Como isso tudo começou?
A Quartabê foi praticamente uma invenção da Andrea Ernst Dias, flautista, pesquisadora e biógrafa do Moacir e idealizadora do Festival Moacir Santos. Em março de 2014, ela foi ver o show do Arrigo Barnabé, “Claras e Crocodilos”, na Audio Rebel, no Rio de Janeiro, e encomendou um projeto para as meninas da banda, especialmente para o Festival. Éramos eu, Mariá Portugal, Joana Queiroz, Maria Beraldo Bastos e Ana Karina Sebastião, e a Andrea nos deu carta branca para fazermos algo completamente diferente das interpretações convencionais da obra do Moacir. Como precisávamos de uma harmonia, chamamos o Chicão, que era um amigo próximo e já tinha tocado bastante com a Maria, para completar o quinteto. Acontece que o grupo deu liga muito rápido e o primeiro show foi super bem sucedido, com o público pedindo disco. Então resolvemos seguir com o projeto e gravamos o “Lição #1: Moacir”. Acabamos de gravar um EP, com mais músicas do Moacir e convidados especiais nos vocais, e a nossa “Lição #2” será de novo dedicada a um outro compositor brasileiro.
Outro? Podem adiantar qual?
Não (risos). O disco sai em 2018, em breve a gente conta…
Mesmo o “Lição #1” tendo a base de Moacir Santos, as releituras do Quartabe apresentam outros elementos que não apareciam na obra do maestro. Qual é a raiz dessa estética mais “quebrada” e imprevisível da banda?
Todos os integrantes vêm de cenários musicais bem diferentes e possuem referências distintas também. Ouvimos de tudo: canção popular de vários gêneros, música eletrônica, música contemporânea, música clássica, música experimental. Nós colocamos tudo isso no nosso caldeirão, sem discriminar nada. Isto fica evidente nos mashups que costumamos fazer: no “Lição #1” tem mashup de Moacir Santos com Brad Mehldau, Tony Allen, Arrigo Barnabé, [George] Gershwin. A colagem, a citação, a sobreposição, são recursos que usamos muito, o que acaba dando essa cara pra banda.
Ao vivo, a banda é bastante performática. Por que a performance tem esse papel – não de protagonista, mas certamente de destaque – nos seus shows?
Esse caráter performático foi uma coisa espontânea que pintou desde o princípio da banda, e achamos que tem muito a ver com as personalidades que compõem o grupo. Mas mais que isso, que tem a ver com a própria maneira como encaramos a música do Moacir e a música em geral. Desde os primeiros ensaios para nossa estreia no Festival Moacir Santos, nosso clima era de brincadeira, de diversão, de experimentação, um clima lúdico, no fim das contas. A gente se sentia uma classe, aprendendo com um professor, e fazendo uma lição de casa ou um trabalho em grupo super divertido de fazer. Por isso o nome da banda, Quartabê, e o nome do primeiro disco. Acho que, quando está no palco, um performer se conecta com o que ele tem de infantil de maneira geral. Você vê isso em grandes artistas de palco. Pra nós, estar no palco é pura diversão e brincadeira.
Esse ano reserva a primeira turnê europeia. Que lição os palcos brasileiros trouxeram será levada para a Europa?
Uma coisa que deixa a gente muito feliz nos shows da Quartabê, é que as pessoas ficam realmente emocionadas e tocadas. Os shows realmente comunicam com o público, e acho que isso se dá por uma série de fatores. Acho que não é comum uma banda instrumental e experimental ter esse tipo de postura no palco, lúdica, performática. Além disso, a Quartabê joga com a tradição de uma maneira bem particular, bem latino-americana, no fim das contas. Porque lida com o que é considerado tradição de uma maneira bem mais leve, sem romper exatamente, e nem colocar num pedestal. E, claro, tem a música assombrosa do Moacir, que nunca deixa ninguém incólume.
Eu sei que a pergunta é clichê, mas ao mesmo tempo imagino que vocês reconheçam que a presença de mulheres instrumentistas no universo do jazz não é comum. É triste que seja assim, mas o fato é que assim ainda é. Mas a pergunta é: em que sentido isso ajuda a atrair atenção para a banda, e até onde essa atenção por esse fator é nociva?
Não achamos essa atenção nociva, de maneira nenhuma. Nocivo é o machismo que ainda impera no meio musical, infelizmente. Quanto mais bandas houver como a Quartabê, melhor. Num primeiro momento as pessoas podem até se sentir atraídas por ser uma banda feminina em sua maioria, mas o fato é que nunca ouvimos coisas do tipo “pra um bando de mulher vocês tocam bem”, ou qualquer coisa assim. As pessoas vêm falar do som, da performance, do show em geral. No fim das contas, ter quatro mulheres na banda é só mais uma coisa que é jogada no caldeirão do que é a Quartabê.
A música instrumental brasileira parece estar num momento muito especial. Nunca houve tantos espaços – de festivais a casas noturnas – para bandas que dispensam letras tocar, independentemente do gênero. Claro que estamos longe de entender “instrumental” como “pop” (mesmo quando é acessível), mas a que vocês atribuem esse bom momento?
Talvez tenha a ver com uma construção que os grandes monstros da música instrumental brasileira foram criando durante anos e anos de carreira. Hermeto, Egberto, Arismar – para citar poucos, porque são muitos – criaram uma obra muito consolidada, que virou referência total para os jovens musicistas embarcarem na onda instrumental. E tivemos grandes conservatórios e universidades que deram um foco bem direcionado à esse tipo de som, por isso acho que nossa geração tem tão bons músicos que se jogaram nesse tipo de música. A partir desse cenário com ótimos músicos, e um caminho que os antigos mestres foram trilhando [incluindo aqui a cativação de um público atento e entendedor], acho que abriram-se algumas janelas para o estilo, fora a organização dos próprios músicos, como por exemplo o Movimento Elefantes aqui em São Paulo, que foi uma união de várias big bands da cidade que se organizaram e promoveram um show de graça por semana durante dois anos das melhores big bands que estavam rolando.
Em algum momento, caberá uma busca mais autoral no trabalho da Quartabe?
Claro, já estamos pensando sobre isso. Todos nós da banda somos compositores e temos bastante vontade de fazer um trabalho autoral da Quartabê. Mas o fato é que não separamos muito composição de arranjo, e satisfazemos bastante nossas vontades criativas relendo a obra de compositores como o Moacir, porque absorvemos tanto a obra e criamos tão livremente em cima que por um instante parecem ser nossas próprias músicas. Por enquanto queremos seguir nessa linha, aprendendo com outros professores, mas quem sabe no futuro…
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell. A foto que abre o texto é de José de Holanda / Divulgação