por Marcelo Costa
Gênio, provocador e revolucionário, Jean-Luc Godard mudou o curso da história do cinema com seu filme de estreia, “Acossado” (1960), uma rara obra em sua filmografia que sobrevive acima do bem e do mal no Fla x Flu do ame-o ou odeie. Suas obras que vieram na sequencia, porém, navegam num oceano de clichês reducionistas por parte dos detratores que elevam termos com “cabeçudo” e “chato” ao status de arte. Com uma carreira vastíssima (seu primeiro curta, “Operação Concreto”, data de 1954; seu trabalho mais recente, o longa “Adeus a Linguagem”, é de 2014), se perder na obra de Godard é um risco sério, mas há algumas pistas que podem facilitar o caminho de interessados, como atentar-se às suas fases:
A primeira, como define Ruy Gardnier no excelente catálogo da Retrospectiva Jean-Luc Cinema Godard, que aconteceu em São Paulo em 2015 (baixe o catálogo aqui), é a Fase Pop, que outros chamam de Primeira Nouvelle Vague, e compreende exatamente os 10 filmes abaixo e praticamente todo o período em que Godard foi casado com a atriz Anna Karina, sua musa presente em sete dos 12 primeiros filmes entre 1960 a 1966 – seis deles integrantes desta primeira fase. “Made in USA” (1966), o sétimo e último, integra o primeiro período de transição do cineasta, do qual ainda fazem parte “Masculino e Feminino” (1966), “Duas Ou Três Coisas Que Sei Dela”, “A Chinesa” e “Week-End à Francesa”, os três de 1967.
A partir de 1968 começa a Fase Militante (ou de Filmes Políticos), que se seguirá até 1972 (e da qual faz parte os filmes “One Plus One” e “Sympathy for the Devil”, sobre a gravação da canção dos Stones – na verdade, sobre muitas outras coisas com a canção como pano de fundo). Outro período de transição surge entre 1974 e 1978 e, então, Godard entra na Segunda Nouvelle Vague, que, segundo alguns estudiosos, vai de 1979 a 1988 (e engloba filmes como “Salve-se Quem Puder”, 1980; “Carmen de Godard”, 1983; “Je Vous Salue, Marie”, 1985; “Detetive”, 1985; e “Rei Lear” – além de “Meetin’ WA”, sobre Woody Allen, ambos de 1987). De 1989 até os dias de hoje, Godard vive sua quarta fase cinematográfica.
Os 10 filmes listados abaixo somam cinco anos de trabalho do cineasta, que, além, filmou mais de 15 curtas neste primeiro período (da Fase Pop). Nestes 10 filmes, Godard vai do romance policial (“Acossado”) à comédia romântica feminista (“Uma Mulher é Uma Mulher”); do filme de guerra (“Tempo de Guerra” e “Um Pequeno Soldado”) ao drama pessoal – e social (“Viver a Vida”, “O Desprezo” e “Uma Mulher Casada”); da ficção científica (“Alphaville”) ao cinema policial (“Bande a Parte”) ao road movie (“O Demônio das 11 Horas”). Em todos os casos, o cineasta francês apenas se apropria do estilo e o utiliza como um trampolim para subverter o cinema e criar algo novo, provocante, palpitante, genial. Abra os olhos (o coração e a cabeça) e mergulhe.
“Acossado” (“À Bout de Souffle”, 1960)
A partir de um argumento de François Truffaut, Godard homenageia o cinema b americano (Truffaut havia feito o mesmo com “Atirem no Pianista” também de 1960) contando uma história batida, ainda que nobre e trágica: Michel (o feio bonito Jean-Paul Belmondo), um malandro que passa o dia aplicando golpes sujos (Marcos, personagem de Ricardo Darin em “Nove Rainhas”, é irmão de alma) acaba assassinando um policial. Ele volta a Paris e tenta convencer a namorada norte-americana Patricia a fugir com ele (quantos meninas cortaram o cabelo curto para imitar Jean Seberg na época? Em qualquer sexta no Globo Repórter). Ela tem dúvidas se o ama, e ele, apaixonado, está cansado de fugir, mas o cerco se fecha, ela o denuncia e… não se preocupe com a obviedade, pois a história não importa tanto, mas sim a maneira (totalmente desconstruída) com que Godard a conta. A lógica da trama é simples: “Dedos duro deduram; assaltantes assaltam, assassinos assassinam, amantes amam: é normal”, diz Michel em certo momento. Poucos filmes na história do cinema são tão urgentes, revolucionários e, ao mesmo tempo, retratos de época e atuais quanto esta estreia de Jean-Luc Godard em 1960. “Acossado” valoriza a liberdade da filmagem, a força da montagem (recortada e acelerada) e a grande atuação dos atores num daqueles filmes em que a forma, provocativa e instigante, parece sobrepor-se ao conteúdo, mas Godard, aparentemente nonsense, deixa frases soltas que ficam ressoando por dias. Uma obra prima obrigatória para ser ver, no mínimo, uma vez por ano.
“Um Pequeno Soldado” (“Le Petit Soldat”, 1960)
A parceria de Jean-Luc Godard com Anna Karina (que irá totalizar sete dos doze primeiros filmes do cineasta francês entre 1960 a 1966) começa em “Le Petit Soldat”, que Godard filmou na sequencia de “Acossado”, em 1960, tendo como pano de fundo a Guerra da Argélia – entre 1954 e 1962, argelinos lutaram para tornar o país independente da França. Censurado pelo governo francês por exibir cenas de tortura referenciando tanto a Frente de Libertação Nacional da Argélia quanto ao Comando Antiterrorista de Direita francês e repudiado tanto pela Esquerda quanto pela Direita francesa (ou seja, atirando para todos os lados), o filme só chegou aos cinemas em 1963 (três anos depois) exibindo um rapaz refletindo e se questionando por estar perdido em seu próprio espaço tempo, querendo desertar e abandonar uma guerra em que não acredita enquanto se apaixona por uma revolucionária da facção contraria (Anna Karina) e sonha fugir com ela deixando tudo para trás e recomeçando a vida no Brasil. Esse é o filme da famosa frase “A fotografia é a verdade. E o cinema é a verdade 24 vezes por segundo” e funciona como um delicado retrato de época, com uma juventude romântica, confusa e despolitizada que não se sentia representada pela extrema violência que a cercava: “Até aqui minha história tem sido simples: a história de um sujeito sem ideal. E amanhã?”, comenta Bruno Forestier (Michel Subor) logo na abertura do filme, que mantém a radicalização da câmera na mão da estreia enquanto o roteiro cria um interessante painel: Bruno mostra paixão pelas cores, mas seu mundo é preto e branco. Um ótimo filme!
“Uma Mulher é Uma Mulher” (“Une Femme est Une Femme”, 1961)
Hanna Karin Blarke Bayer chegou a Paris com 17 anos (1957) e logo o diretor Jean-Luc Godard se viu apaixonado por ela. Ele a queria para “Acossado” (1960), mas a jovem top model dinamarquesa não aceitou o papel devido a um nu exigido pelo roteiro (que ficou de fora da versão final do filme). Ele não desistiu: casou-se com ela, que passou a ser o principal rosto da Nouvelle Vague. Sua estreia sob as lentes de Godard foi em “Um Pequeno Soldado” (1960), que ficou retido na censura, mas é com “Uma Mulher é Uma Mulher” (o terceiro filme de Godard e seu primeiro longa em cores) que Anna Karina desponta para o mundo ganhando o Urso de Prata de Melhor Atriz em Berlim. Homenagem singela aos musicais norte-americanos, “Uma Mulher é Uma Mulher” é uma comédia doce, descompromissada, adolescente e leve que conta a história da stripper Angela (Anna Karina). Ela vive um relacionamento conturbado e apaixonado com Émile (Jean-Claude Brialy) enquanto é cortejada pelo melhor amigo do marido, Alfred (Jean-Paul Belmondo). Feminista por inércia, (“Sou uma fêmea, não uma infame”), Angela quer ter filhos, Émile não, e isso é pretexto para algumas situações provocativas do roteiro, como o marido oferecê-la para passantes na rua (“Por favor, você poderia engravidar a minha mulher?”). Destaque para a trilha invasiva de Michel Legrand, para o roteiro apaixonado (e feminista) de Godard e para Jeanne Moreau, que faz uma ponta, num bar, contando que está filmando… “Jules et Jim”. Um filme simples e eficiente (como Godard raramente seria daqui pra frente) que mantém seu charme.
“Viver a Vida” (“Vivre Sa Vie”, 1962)
No quarto filme de Godard (o terceiro em sequencia estrelado pela esposa), Anna Karina vive o papel de Nana, uma garota sonhadora de 20 anos que trabalha em uma loja de discos e deixa marido e filho para tentar realizar o sonho de ser atriz, não consegue e acaba precisando se prostituir para sobreviver – indo de novata a profissional. Prêmio do Júri em Veneza, “Viver a Vida” é dividido em 12 pequenos atos que permitem a Godard fragmentar a história e divertir-se em cenas que trazem seus personagens de costas para a câmera, como a genial abertura, uma longa conversa no balcão de um bar em que Nana rompe com o marido. Nana flutua entre o ingênuo sonhador e o silêncio contemplativo enquanto Godard explica em detalhes a profissão de prostituta na França (leis, polícia, quanto ganha, quem atender, onde circular, como usar o quarto, etc…) numa metáfora das relações sociais, num plano mais amplo, e das relações no próprio cinema (de ator e diretor), num plano mais fechado, questionando a importância da verbalização: “Quanto mais falamos, menos as palavras significam”, ela diz. Depois pergunta a um filósofo: “As palavras nos traem?” e ganha como resposta: “Nós nos traímos”. Ela questiona o amor, e o filósofo diz que ninguém com 20 anos pode entendê-lo. O olhar de Nana atravessa a câmera (a atriz e sua personagem questionando o marido cineasta e o próprio público). Ela encontrou o amor (Godard também), mas o destino será cruel… no cinema. Um dos melhores Godard da primeira fase (fresco e atual mesmo hoje).
“Tempo de Guerra” (Les Carabiniers, 1963)
Uma comédia nonsense sobre as mentiras da guerra, “Les Carabiniers” se passa em um país imaginário, local em que uma família camponesa bastante pobre (uma mãe com uma filha e dois filhos) recebe a visita de soldados do rei com uma carta de convocação: os dois homens precisam se alistar para ir à guerra. Nenhum dos dois se interessa pelo “convite” do rei, mas os soldados iniciam um processo de sedução que acaba por convencer os garotos: “Vocês podem ter tudo o que quiserem! Tudo que saquearem na guerra será de vocês!”, eles prometem. E os garotos questionam: “Podemos ter mulheres? Rolls Royces? Elefantes? Fábricas de chocolate? Aviões?”. “Sim”, respondem os soldados. “Podemos quebrar o braço de crianças? Massacrar inocentes? E sair dos restaurantes sem pagar?”. “Sim”, respondem os soldados. Convencidos, os dois irmãos partem para a guerra e enviam postais para a mãe e para irmã: “Deixamos atrás de nós um rastro de sangue e morte. Beijos carinhosos”. Em outro: “Espalhamos a morte nas famílias, cumprimos nossa missão sanguinária. Estamos tão felizes com o verão”. A saga termina com o rei assinando um tratado de paz com a nação vizinha que condena como criminosos de guerra todos os homens que lutaram pela pátria. Desta forma, os irmãos são fuzilados. Cinco anos antes de maio de 68, Godard vislumbra a força dos estudantes (que resistem aos espiões do rei e a polícia) nessa colagem recortada e desfocada chamada “Tempo de Guerra”, um filme nonsense, experimental e difícil que fracassou nos cinemas, mas carrega uma ingenuidade comovente.
“O Desprezo” (“Le Mépris”, 1963)
Godard retorna ao cinema “tradicional” neste que é seu primeiro filme fora da França com as filmagens se dividindo entre a mítica Cinecittà, em Roma, e a belíssima Casa Malaparte, com as rochas Faraglioni ao fundo incrustadas no Golfo de Salerno, na Ilha de Capri. Um quinteto de personagens divide a tela: Jeremy é um produtor arrogante e mulherengo (Jack Palance) que bate de frente com o diretor Fritz Lang (interpretando a si mesmo), contratado para filmar a “Odisseia”, de Homero, e escala o roteirista Paul (Michel Piccoli) para mexer no roteiro – de olho em sua bela esposa Camille (Brigitte Bardot no auge). Um dos temas caros do cineasta – a mercantilização da mulher – é sugerido aqui: Jeremy notadamente interessado por Camille convida o casal para ir à sua casa discutir ideias para o filme. No carro, porém, cabe apenas uma pessoa, e Paul pede para Camille acompanhar Jeremy enquanto ele segue de táxi – mas passa por imprevistos e demora no trajeto. Camille, então, se sente “doada” a Jeremy, e imagina que seu marido armou a situação para ela ficar a sós com o produtor, o que garantiria o trabalho. Começa assim uma espiral de afastamento do casal e desprezo: ela já não quer mais dormir com o marido, e como punição a ele cede às investidas do produtor. Outro dos grandes filmes desta primeira fase de Godard, “O Desprezo” traz uma frase clássica – “Quando ouço a palavra cultura, puxo o meu talão de cheques; Anos atrás, quando os hitleristas ouviam a palavra cultura, puxavam o revolver” – que inspirou uma música da banda paulistana Fellini (ouça). Um clássico.
“Bande à Part” (“Bande à Part”, 1964)
Dois outsiders conhecem uma garota (Anna Karina, aqui de cabelos compridos e postura adolescente não exalando a sensualidade a flor da pele de “Viver a Vida” e “Uma Mulher é Uma Mulher”), que conta a um deles que seu tio tem uma fortuna guardada dentro do guarda-roupa (sem tranca, chave, cadeado, nada). Já imaginou o filme inteiro, certo? A forma sobrepõe o conteúdo em “Bande à Part”, mas há subtextos interessantes: se a épica “Odisseia” de Homero movimenta o filme exatamente anterior, “O Desprezo”, aqui Godard opta por adaptar “Fool’s Gold” (1958), romance policial barato da americana Dolores Hitchens, e explica (através de uma professora) no começo do filme que clássico e moderno são equivalentes. Ele usa e abusa do estilismo em várias passagens que ainda soam geniais mesmo sem o contexto de época (repetições de fala, câmera tremida, improvisações e a brilhante cena do literal “um minuto de silêncio” além da dança, que Godard já havia explorado delicadamente em “Viver a Vida”, mas que soa muito melhor resolvida aqui), mas que se perdem em uma história (quase) previsível: a radicalização/desconstrução visual não tem um complemento textual à altura, o que não impede deste ser um dos filmes mais amados da primeira fase do diretor pelos fãs. Ainda assim, o triângulo amoroso consegue cativar o espectador que fica aguardando o desenlace fatídico. O quase entre parênteses tem seu motivo: por mais previsível que o roteiro (de centenas de filmes franceses) seja(m), Godard consegue fugir do estereótipo no desencadear da trama deixando para o espectador um final levemente surpreendente. Detalhe: o nome da produtora do cineasta Quentin Tarantino é… A Band Apart.
“Uma Mulher Casada” (“A Married Woman”, 1964)
Se a improvisação e o tom alegre juvenil movem “Bande à Part”, “Uma Mulher Casada” opta pela via contrária utilizando a frieza e a falta de emoção. A primeira vista, o roteiro é tão óbvio quanto o do filme anterior: uma mulher, Charlotte, está dividida entre o amor que sente pelo marido aviador que passa longos períodos longe de casa e pelo amante ator. Para complicar, está grávida, e não sabe qual deles é o pai. O plot simplista, porém, não impede Godard de desconstruir com elegância uma obra cujo cerne está no subtexto e na forma fria em que o romance (nada romântico) se desenvolve neste triangulo amoroso (sem amor). O foco do cineasta é uma crítica ao capitalismo através do adultério, que aqui resulta da sociedade de consumo, e os personagens, apresentados em fragmentos de closes frios (mãos, costas, pernas, olhos, anúncios, eu te amos, mentiras), algo que o PB amplia, são meros objetos negociados por um sistema que sustenta esse capitalismo. Em muitos momentos, Charlotte, a mulher casada (Macha Méril), se vê envolvida por anúncios de publicidade (a grande maioria de sutiãs) e num trecho direto apresenta, na companhia do marido, sua casa a um amigo como se ela fosse um objeto à venda. Tudo, inclusive ela própria, está à venda. Na trama, o discurso amoroso nada tem de amor afinal tanto ele quanto o sexo são apenas objetos de consumo que replicam clichês de felicidade. Não é a toa que “Uma Mulher Casada” é o primeiro filme a mencionar no cinema o extermínio dos judeus nos campos de concentração nazistas. Na sociedade do consumo, a banalidade do mal impera e o eu suplanta o social. Um pequeno grande filme para se prestar atenção aos detalhes.
“Alphaville” (“Alphaville”, 1964)
Nono filme de Jean-Luc Godard (em quatro anos!), “Alphaville” foi lançado em 1964, mesmo ano de “A Mulher Casada” e “Bande à Part” (este também com Anna Karina), tendo ido mais longe ao ganhar o Urso de Ouro em Berlim, 1965. É uma trama de ficção científica distópica noir em que o personagem central, o anti-herói Lemmy Caution (Eddie Constantine), é um agente secreto enviado para Alphaville, uma nação dominada por um computador que aboliu os sentimentos das pessoas. Anna Karina interpreta a filha do programador que criou a máquina, e Caution precisa tentar livra-la da hipnose social que lhe foi imposta. Godard junta George Orwell (“1984”), Jean Cocteau (“Orpheus”), Paul Eluard (“A Capital da Dor”) e Jorge Luis Borges (os ensaios “Nova Refutação do Tempo” e “Formas de Uma Lenda”, ambas do livro “Outras Inquisições”, coletânea de ensaios lançada em 1952 – no Brasil em 2007 pela Cia das Letras) sob o preto, branco e cinza de uma Paris irreconhecível, modernista e decadente, numa fotografia saturada para defender que a compreensão do eu, através da aceitação das emoções que ousam suplantar a razão (o passional vs racional), é a saída para se defender ante o totalitarismo (tanto capitalista quanto comunista) disfarçado de tecnologia avançada tendo o amor, em primeiro plano na belíssima cena final, como arma para enfrentar o vazio da sociedade. “O que transforma as trevas em luz?”, pergunta o computador em certo momento. “A poesia”, responde Lemmy Caution. Grande filme!
“O Demônio das 11 Horas” (“Pierrot Le Fou”, 1965)
Fechando essa listinha, em seu décimo filme em cinco anos, Godard busca se renovar motivado pelo cenário caótico do mundo (com a Guerra do Vietnã em foco), pelo fim de seu casamento com Anna Karina (a relação durou quatro anos conturbados, com relatos de discussões, paixão intensa, a perda de um bebê e tentativas de suicídio – eles já estavam separados durante as filmagens e voltariam a trabalhar juntos apenas uma única vez, em “Made in USA”, de 1966) e por sua própria absorção pelo meio cinematográfico. Tentando fugir de uma caricatura de si mesmo, ele radicaliza no formato, no fluxo de inconsciência e nas cores pop art ao contar a história simples (inspirada no livro “Obsessão”, de Lionel White) de um marido (Jean-Paul Belmondo) insatisfeito com o amor burguês e a vida que leva a ponto de abandonar esposa e filho fugindo com a jovem amante (Anna Karina) para seguir uma vida e um amor marginal após ela ter assassinado um homem (seria o destino dos personagens de “Acossado” caso ela não tivesse denunciado ele?). O casal começa uma rotina de roubos (que irá influenciar Warren Beatty a desejar contar a história de “Bonny & Clyde”, de 1967) até a tentativa de se aquietar na Riviera Francesa. Ele passa a se dedicar a literatura; ela, entediada, parodia musicais norte-americanos. O desastre é iminente. Godard não sente pena e se despede da sua primeira fase com um filme romanticamente torto e trágico que soa como um bolo de casamento arremessado na cara dos noivos em pleno altar. Ele enterra o cinema noir e a Nouvelle Vague sob uma profusão de cores, premia a traição com uma saraivada de tiros e o romantismo desastrado com um colar de dinamites. Acabou. Godard está pronto para começar tudo de novo… de maneira diferente. E ele não irá perder a oportunidade…
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– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.