Tardes Scream & Yell na Sensorial Discos

Texto por Marcelo Costa
Fotos de Marcelo Perdido

Não me lembro direito como o jornalista lisboeta Pedro Salgado chegou ao Scream & Yell, mas em outubro de 2010 nós publicávamos no site sua primeira entrevista com uma banda da “Terrinha” no site, Os Pontos Negros, que logo viraria uma fixação pessoal. Lembro-me ainda que lhe pedi um texto, na sequencia, mapeando as novidades da nova cena portuguesa, e que esse texto abriu-me os ouvidos para o que estava sendo feito além-mar (e Deolinda hoje é uma das minhas bandas favoritas entre tudo que vendo ouvindo do mundo todo).

Já lá nos comentários daquela entrevista de 2010 d’Os Pontos Negros no Scream & Yell, o Zuca avisava: “Obrigatório ouvir Tiago Guillul”. Tiago Guillul é Tiago de Oliveira Cavaco, nascido em 77, em meio ao levante punk, um pastor evangélico que em 1999 fundou com amigos o selo FlorCaveira, cujo lema “Religião e Panque Roque” galgou as paradas de sucesso em Portugal destacando nomes como BFachada, Samuel Úria, Manuel Fúria, Diabo na Cruz e os próprios Os Pontos Negros além de projetos diversos de Tiago.

Responsável por uma discografia repleta de grandes discos como “Tiago Guillul – V” (2010), o álbum duplo “Amamos Duvall”, de 2012, e o mais recente, “Sou Imortal Até Que Deus Me Diga Regressa” (2015), Tiago havia concedido uma entrevista antológica a Bruno Capelas, publicada no Scream & Yell em 2015, e tinha na agenda uma pequena tour de pregação evangélica pelo Brasil neste mês de março de 2017 (Fortaleza, Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba), no que pensamos: será que não há espaço para um pouco de punk rock?

Desta feita nasceu de sopetão o Tardes Scream & Yell, um projeto lo-fi cuja realização no sábado passado (18/03) aconteceu na Sensorial Discos (grande Lúcio, obrigado por nos receber mais uma vez, e principalmente por abrir espaço para um projeto desses em cima da hora), e contou com pocket shows de Marcelo Perdido (cujo terceiro álbum, “Bicho”, foi produzido durante sua estadia de 13 meses em Portugal), Tiago Cavaco e Felipe S, o vocalista do Mombojó, fechando a noite com uma apresentação de seu álbum solo “Cabeça de Felipe”.

As linhas tortas que seguimos muitas vezes promovem encontros especiais. Por exemplo: Silas Ferreira, d’Os Pontos Negros, esteve em São Paulo anos atrás e fomos assistir a um show do Passo Torto. Nos aproximamos e, tempos depois, uma prima dele veio ao Brasil, e separei uma leva de CDs para ela levar a ele, entre eles “Lenhador”, primeiro disco de Marcelo Perdido, que eu havia chamado certa vez para tocar na noite de lançamento em São Paulo do livro (sobre música portuguesa) “Tudo Isto é Pop”, do carioca Tiago Monteiro, que inspirou a entrevista de Tiago Cavaco ao Scream & Yell.

Quando Marcelo Perdido chegou a Lisboa, se aproximou de Silas Ferreira, e ambos acabaram fazendo algumas coisas juntos lá (“Bicho”, o terceiro disco de Marcelo, foi produzido por Filipe Sambado e Silas toca oboé em três faixas e teclados numa quarta canção do álbum). Natural, então, que Marcelo Perdido tenha se aproximado da nova cena portuguesa, e se empenhado em tornar essa primeira Tardes Scream & Yell, na Sensorial Discos, em algo especial. Por isso, natural de Marcelo Perdido abrisse os trabalhos.

Desta forma, abrindo à tarde, Marcelo Perdido mostrou de forma acústica algumas canções do álbum registrado em Lisboa. “Bicho”, a faixa título, foi a primeira, numa versão delicada. Sobre “Calefação”, segunda faixa do disco, Marcelo Perdido contou sobre a experiência de viver em um país frio, imagem cristalizada no belo refrão: “Todo dia eu tento ser feliz / Mas tem dia eu choro / e o choro congela”. Ainda vieram uma das minhas favoritas do disco, “Passarinha”, “Receitas de Bolo” (que Marcelo apressou-se a explicar sobre a época em que a Censura vetava reportagens em jornais, que no lugar imprimia receitas bolo), e, no bis, “Merda”, de seu primeiro disco.

Tiago Cavaco veio na sequencia e avisou: “Vocês vão perceber que vou falar mais do que cantar”, e assim começou uma tarde de canções e histórias. “Também Queres Cantar”, do álbum “Amamos Duvall”, de 2012, abriu a apresentação com seu refrão “Lembras-te do Paul e do cantor do futebol / O Jorge Ben a filosofar / Os anjos na arquitetura movem-te a dentadura / Também queres cantar”. Do álbum “IV” surgiu “Igrejas Cheias ao Domingo” seguida de “Nabucodonosor” e de “Os Abutres Estão na Pista” (com citação de “Spanish Bombs”, do Clash), presente no álbum mais recente de Tiago, “Bairro Janeiro” (2016).

Segundo Tiago Cavaco, “London Calling”, do Clash, é um dos melhores discos da História. Ele também elogiou o disco “Chico e Caetano”, de 1972, que o marcou bastante, e cuja canção “Partido Alto” (muito mais forte na voz de Caetano, segundo ele) cedeu o refrão para “Canção para a Sílvia e para a Fátima”, outra de “Amamos Duvall”. Ainda rolou “Canção Para Rodrigo”, “Respirar Não Dói”, “Os Meus Braços Estão Aqui” e, encerrando, “Contigo Sou Sempre Agradecido”, cuja versão original conta com sampler de “Aids, Pop, Repressão”, dos Ratos de Porão (“Antes de descobrir Chico e Caetano, quem me conquistou na música brasileira foram os Ratos de Porão”, explicou, brincando: “Se alguém não conhece esse refrão – do RDP – não sei se há salvação possível”).

Para encerrar um dia especialíssimo, Felipe S, do Mombojó, em sua versão solo mostrando as canções do recém-lançado álbum “Cabeça de Felipe” acompanhado por guitarra, eventual sax e as bases demo do álbum gravadas em um vinil. O show seguiu o ritmo variado do disco com o afoxé “Anedota Yanomami”, o reggae “Na Calçada Proibida”, a capoeira “Da Capoeira pro Samba”, a climática “Tigre Palhaço”, o samba “Santo Forte” e a toada “Maracatu”, entre outras faixas do debute, num clima contagiante de banda de um homem só.

A sensação ao final da tarde já noite foi de alegria no coração. O público foi pequeno, mas caloroso e familiar, permitindo que o sonho voasse além-mar. Mais importante do que sonhar é fazer, é passar a mensagem, é tornar possível que situações poéticas como essa tarde se realizem. O desafio de ultrapassar a barreira da língua portuguesa nativa (tanto quanto da língua da América Latina) é imenso, mas nos permite momentos especiais como esse da Tardes Scream & Yell. E eu só tenho a agradecer a Marcelo Perdido, Tiago Cavaco, Felipe S, Antonio Lucio, Bruno Capelas, Silas Ferreira e Pedro Salgado. Obrigado. De coração.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.