“Cantoria” ao vivo em Fortaleza

por Daniel Tavares

Até quanto um artista pode expressar sua própria opinião em um palco? E se ele o fizer, deve ser hostilizado pelo público? E se isso acontecer, deve devolver a hostilidade? Ou um artista deve apenas se restringir a fazer aquilo para que foi pago: cantar suas canções, tocar seu instrumento, seguir o script de uma apresentação? É falta de respeito para com o público exagerar na defesa de suas convicções políticas? Mais que isso, quando acontece o exagero? Quando se pode perceber que ele aconteceu? E quanto aos outros músicos, amigos de banda, colegas de apresentação, o quão se deve envolver em rompantes prejudicando o que havia sido previamente acordado? Bem, cada um tem sua verdade, e até quando é coerente atacar alguém defendendo sua verdade contra a verdade dele? Em Fortaleza, no show “Cantoria”, revivendo os célebres álbuns lançados em 1984/1985 pelo pernambucano Geraldo Azevedo ao lado do paraibano Vital Farias e dos baianos Elomar e Xangai, quatro grandes nomes da música nordestina, alguns limites foram ultrapassados. E depois que os corações voltam a bater como uma canção de Elomar é possível refletir um pouco e entender melhor o que aconteceu na noite de 12 de novembro no Centro de Eventos do Ceará.

Pra começo de conversa, o show começou atrasado. Fato. E, apesar das reclamações, um mea-culpa do próprio público (ou parte dele) também se faz necessária. Com o show programado para começar às 9 da noite, até cerca de 9h30 a casa ainda não estava cheia. Talvez já estivesse ali apenas metade do público e quem chegou na hora se sente prejudicado (e tem direito a tanto), mas, se o show começasse na hora marcada, quantas pessoas não iriam reclamar da produtora? É quase um costume no Brasil, tanto por parte dos artistas (que eles reconheçam também sua participação nisso) quanto por parte do público, só chegar depois do horário marcado pra festa. Esta é a primeira das verdades deste texto, o que não quer dizer que seja uma verdade para você também.

Às 22h, sem malabarismos de iluminação, os quatro menestréis começaram com o “Desafio do Alto da Catingueira” chamando uns aos outros para a “briga”, aquela que todo público queria há muito tempo ver (ou rever). Xangai é quem dá início “pedindo licença pra puxar viola rasa” contando seus feitos. Na parte de Elomar, com seu “canto tão significante sem fama sem atrevimento”, muitos gritos em reverência ao mais veterano dos quatro cantadores. Vital Farias “pediu licença aos senhores” e avisou que o que ia “falar não era francês nem inglês, apenas o português que aprendera em seu sertão”. Geraldo, por sua vez, subverte (num acorde forte, bruto, inesperado) o desafio com “Novena” como se apaziguasse e não quisesse saber da briga sugerida no desafio. E, até aquele momento, tudo era apenas figura literária. Não havia como prever o que aconteceria minutos depois.

São quatro violas, quatro cantadores extraindo o máximo de seus instrumentos e até utilizando os violões não apenas como instrumentos de cordas. Em “Novena”, Vital faz do tampo de seu violão um instrumento percussivo, salientando ainda mais a conexão da música sertaneja com a música flamenca. E continua transformando seu violão num cajón em “Matança”, na voz de Xangai, com Elomar e Geraldo Azevedo nos violões. Em seguida, Elomar canta “Quadrada das Águas Perdidas” e sai. Não pareceu ser um grande acontecimento. Num show em que há quatro grandes artistas dividindo o palco, é normal que haja momentos em que os quatro participem, outros em que sejam um trio, duetos, momentos solos e até que recebam outros convidados (como Francisco Aafa, que marcou presença com a canção “Arrumação” eternizada em um dos álbuns originais). Parecia ser um momento normal, previsto no script da apresentação. Não era.

Vital Farias recordou que fazia bastante tempo que não voltava a Fortaleza, “A minha ausência marcou muito a minha presença”, e falou sobre a próxima canção. “Faz 35 anos que a fiz, tentando barrar como uma formiguinha o que estava acontecendo lá atrás e ainda acontece”. Ele então canta “Saga da Amazônia” sozinho, com Xangai e Geraldo observando. Na canção, Vital denuncia males como o do grileiro que matou posseiro, do seringueiro que virou peão, do castanheiro que perdeu seu lugar para um estrangeiro. Enquanto isso, do lado esquerdo da pista, parte do público, um grupo de pessoas mal-educadas, começa a se acumular junto à grade. O espaço tinha ficado vazio porque não havia uma boa visibilidade para espectadores sentados naquele local. No entanto, quem ficasse em pé também tinha a chance de ficar mais perto dos quatro artistas, quase tanto quanto como quem tinha pagado os ingressos do setor mais caro. O que essas pessoas sequer cogitaram pensar foi que haviam pessoas sentadas logo atrás. Talvez a produtora tenha falhado em não prever o problema isolando aquela área, mas quem espera que num show de alto nível como o proposto haja sujeitos tão desprovidos de respeito pelo próximo como aqueles? Quem seriam, nessa canção, essas pessoas. Este pessoal mal educado estaria em que papel nessa canção? Seriam o grileiro, o posseiro, o seringueiro, o estrangeiro? Gritariam “Fora Dilma” há meses atrás? Gritariam “Fora Temer” agora? Gritarão “Fora” para o próximo? Não deixam de ser como o grileiro que matou posseiro.

Vital é aplaudido de pé ao final da canção por todos os presentes, todos os que respeitosamente ficaram em seus lugares quanto por aquelas duas dezenas que se acharam mais importantes ou mais espertos que os outros. O show continua com Geraldo (e Xangai fazendo os backing vocais) e “Semente de Adão”. Ao fim da canção, Xangai comenta que “muitas das vezes que a gente faz música, é inspirado pela força musical de algum amigo”. “A Pedra e o Linho”, próxima na sequência, tem um geraldoazevedismo, conclui o cantador. Elomar volta, mas ainda não participa quando Geraldo e Xangai levam “O Menino e os Carneiros”. Então, o professor dá início a “Cantiga do Boi Encantado”, que divide com Xangai, seu mais aplicado aluno.

Vital assume novamente o protagonismo do show comentando o prazer de estar em Fortaleza e a coisa grandiosa que era aquele show. “Esse é o Brasil de verdade”. O paraibano também convidou para a missa dos agricultores que promove. “É uma missa com respeito a Deus, sem aquela festividade que eu não gosto”, comentou. “Quando a pessoa procura Deus tem que ser com muita seriedade”, concluiu, mas também informou que a missa (e a próxima canção) baseia-se na premissa “venham todos que estais cansados que eu vos aliviarei”. Em seus versos, não apenas religiosidade, mas também mais crítica social: “camponeses, agricultores, juízes, doutores, suas leis tão fora da lei”. E continuou para o ato penitencial, outra parte musicada do rito católico em sua versão da celebração. Vital falou que falava da Igreja Católica porque nascera e se criara nela, fora até coroinha. E nos versos de “Senhor, tende piedade de nós”, mais preocupações com o povo, com o pobre, com o desvalido e indefeso, “Senhor, protegei a agricultura, não deixai que ela seja a sepultura”, mas também um traço de deselegância. Conclamando pela participação do público (o velho “só os homens / só as mulheres / só estes /só aqueles”) “Senhor, tende piedade de nós, Senhor, tende piedade de nós”, alfineta – a primeira vez que foi um tanto descortês – quem, entre o público, não comungasse de sua fé. “Agora só os ateus”. “Senhor, tende piedade de nós”.

Finda a parte religiosa do show (e ainda sem grandes contratempos), Geraldo Azevedo lembrou que tem um parceiro no Ceará, também arquiteto, como Elomar, referindo-se a Fausto Nilo, ao que é corrigido por Vital Farias. “Desculpe atrapalhar, ele é de Quixeramobim, terra de Antonio Conselheiro” – e recebeu ainda muitos aplausos. “Chorando e Cantando”, indiscutivelmente o sucesso mais popular até ali da noite foi cantado por todos. “Estampas Eucalol”, na voz de Xangai, com Geraldo Azevedo improvisando no violão enquanto Vital continua no seu cajón-violão, também teve uma boa recepção.

Elomar Figueira de Melo, lenda viva da música nordestina, se pudesse talvez não tivesse fama nenhuma. Mas não pode. Sua obra é imortal demais para que fique guardada apenas em sua cabeça, no passado que viveu ou na Casa dos Carneiros, onde vive (recluso, o adjetivo que já faz parte de qualquer texto que se escreva sobre ele). Mas pode ainda manter um rígido controle sobre a própria imagem. Não permite fotos, não permite filmagens, não dá entrevistas (segundo Xangai, depende da maneira como for abordado). E, por um lado, de certa maneira, Elomar está certo em não querer que as pessoas que vão aos seus concertos os percam porque estão ocupados demais mexendo em botões em seus smartphones ou porque algum insensível colega resolveu empunhar o aparelho bem na frente. Uma foto ou outra, um selfie para provar que estava lá, não machuca ninguém, mas Elomar resolveu ser a voz (provavelmente de forma involuntária) de quem quer assistir os shows com os próprios olhos. Um breve aviso da produção antes do show era imprescindível, mas diante da gana de alguns pelo melhor selfie, era impossível esperar que teria tido todo o efeito desejado. À aquela altura do show, a paciência do poeta se esgotara. “Se eles não se importam – referindo-se aos três companheiros de palco – eu me importo”. Ele ainda explicou que saía constantemente do palco por não gostar que lhe registrassem a imagem. E, gerando um temor de que o espetáculo fosse encerrado de forma abrupta ali mesmo, ameaçou: “Se não apagar eu vou me retirar”. Vital Farias defendeu o mestre: “É o direito dele”. Mas até pareceu por mais lenha da fogueira: “Eu não me incomodo. A mim, pode filmar”. Elomar continuou a bronca: “Eu, verbo e graça, me importo”. E apontando para o público: “Tem um aqui… Outro ali… Se não apagarem não vou cantar”. O show até ali merecia um DVD, um registro visual profissional, mas isso é coisa que nunca vai acontecer.

E Elomar conseguiu um milagre. Num show (ou melhor, num concerto – “show, xô, é o que se diz com galinha”, ele dissera em um programa de rádio), naquele show, todo mundo assistindo com seus próprios olhos, não pela tela dos celulares. E, milagre feito, Elomar canta “Campo Branco”. No entanto, este ainda não seria o ponto crítico da noite. Vital emendou um discurso: “Eu sou um cidadão brasileiro e como cidadão tenho a obrigação de “homenagear” as coisas que estão acontecendo no Brasil. A minha presença aqui eu quero agradecer a Lava-Jato”. Foi a senha para que parte do público começasse as vaias.

“Tu Não Engana de Novo”, a próxima canção que Vital cantou, tem versos como “Tu enganasse uma vez, mas não engana de novo” e “Tu foste desonesto com o povo que te elegeu”. Vital foi militante petista por muitos anos. Desiludiu-se com o partido (e teve suas razões) antes ainda de candidatar-se a uma vaga para representar sua Paraíba no Senado pelo PSOL. Agora mostra uma revolta grande contra o partido que ele considera que o traiu. Convicções à parte, estando certo ou não em suas próprias verdades, Vital esqueceu por alguns momentos que era um artista, um cantador, e que pessoas pagaram caro para vê-lo cantar sua música. Não fora ali para fazer discurso político a favor de A ou de B, nem stand-up comedy, nem dar aula de matemática nem rezar sua missa. Vital desrespeitou o público.

E o público esqueceu que, antes de ser um cantador, Vital é também uma pessoa, com suas opiniões, com a vida já vivida e a que ainda espera viver. Se a citada operação da Polícia Federal é parcial (só investiga pessoas relacionadas a um partido e faz vista-grossa a outros) ou se é o Salvador da Pátria (assim mesmo, no masculino, como a novela), uma apologia ou uma crítica não seriam motivo para que o artista fosse vaiado. Ninguém vaiou quando Vital desrespeitou os ateus em seu disparo a esmo minutos antes (diferenças religiosas agora até são toleradas, mas políticas jamais, não é mesmo?). O público (parte dele, fique isso claro) também desrespeitou Vital.

E nessa guerra de desrespeito mútuo, entre vaias e aplausos, Vital não se conteve. “Esse pessoal que tá vaiando é do PT”, atacava no microfone. “Fora Temer. Fora Temer”, devolvia o público indignado. “Aqui é um cidadão. Eu pago a justiça, o congresso e vocês também [pagam]”. Elomar, com mais anos vividos, tenta acalmar o amigo. “Vital, Vital”, e com sua experiência e anos vividos, ergue a mão para cima tentando mostrar autoridade parecendo um avô em meio a uma briga de família. Mas o filho-neto Vital, completamente fora de controle, ainda partia para o ataque pessoal (apenas em palavras – pelo menos isso) contra uma pessoa no público. “Você tá é bêbo[sic]. Vá-se embora”.

A “Eu Peço Licença Pra Falar Alguma Coisa”, acudiu Xangai. “Cada um tem o direito de falar o que quer, as pessoas fazem um sacrifício, saem de casa pra realizar esse desejo de nos ver. A minha obrigação é dar um espetáculo pra essas pessoas. Ele [Vital] tem a opinião dele, eu tenho a minha, mas jamais vou falar de política num palco. Canta Geraldo, canta”. E “Dia Branco” apazigua os ânimos.

Não é exatamente pelo sucesso, pelo menos não dessa vez, mas a música realmente foi um momento para acalmar os ânimos acirrados, as mãos trêmulas. Geraldo levanta e, em pé, improvisa enquanto o público canta a resposta aliviado. Segue-se a suíte do São Francisco – “Barcarola do São Francisco” e “Caravana”, sem “Talismã” – e “Caravana”, a qual Xangai divide o vocal com Geraldo. “O Bolero de Isabel” também foi cantada antes de “Veja (Margarida)”, de Vital Farias, outra cantada a plenos pulmões pelo público, até pelo sucesso com “O Grande Encontro”. O cantador parecia perdoado pelo rompante, mas ainda se ouvia “Golpista, golpista”.

Vital começa a falar novamente: “Infelizmente estamos chegando ao fim…”. Geraldo já começa a tocar e até a cantar – interrompendo o amigo (antes que ele ponha tudo a perder outra vez) e aparentemente impedindo outro discurso. O show se encaminha pro final. Xangai reedita o desafio inicial em uma breve reprise e parte para os agradecimentos. “Agradecemos ao povo do Ceará. Agradecemos ao povo que é uma autoridade de conhecimento na música brasileira”. E os quatro cantam a nordestiníssima “A Volta da Asa Branca”. Xangai lembrou que cantava também a música por causa da versão de Cristiano Pinho, guitarrista cearense. “Me fez chorar” ele havia confidenciado em entrevista dias antes. Vital canta também “Acauã”, de Luiz Gonzaga. Teria sido um belo momento não fossem os ânimos ainda acirrados e uma nova tentativa de discurso ao final, “agradecendo às pessoas que aqui estão de uma forma muito carinhosa. As discussões que vão acontecendo precisamos discutir”. Nova chuva de vaias. Elomar, que tinha saído novamente, chega. “Vamos, graças a Deus, pra gente terminar”, dizem os quatro e começam “Cantiga de Amigo”. Deus, como os quatro tocam. Somos levados à Casa dos Carneiros, onde mora Elomar.

Fim de show. Fim de concerto. Fim de espetáculo. Fim do desafio do alto do Centro de Eventos, mas os ânimos estão acirrados demais para que todo mundo vá em paz para casa. Xangai ainda tenta fazer um merchandising, mas a gritaria “Fora Temer, fora Temer” se faz ouvir mais alto. Geraldo Azevedo, com os punhos para o ar, acompanhava os gritos de Fora Temer. Ele e Xangai tinham-se mostrado íntegros, convictos de suas opiniões, mas respeitaram o público e foram respeitados por ele. Eles e os presentes que souberam se comportar, mesmo sem concordar com Vital Farias, merecem elogios.

Depois do show, toda sorte de comentários foram tecidos (adivinha onde?) nas redes sociais. Muitos injustos. De reclamações acerca da postura de Vital Farias ao som do local e aos fatos já relatados aqui. A respeito do som. E entre vivos, mortos e mortos vivos, 25 canções foram executadas na íntegra ou enxertadas em medleys numa noite – de diferenças políticas e boa música – que vale ser reprisada.

Setlist
1. Desafio do Alto da Catingueira / Novena
2. Matança
3. Quadrada das Águas Perdidas
4. Saga da Amazônia
5. Semente de Adão
6. A Pedra e o Linho
7. O Menino e os Carneiros
8. Cantiga do Boi Encantado
9. “Missa dos Agricultores”
10. Senhor, tende piedade de nós
11. Chorando e Cantando
12. Estampas Eucalol
13. Campo Branco
14. Tu não engana de novo
15. Dia Branco
16. Barcarola do São Francisco / Caravana
17. O Bolero de Isabel
18. Veja (Margarida)
19. Ai Que Saudade d’Ocê
20. Desafio do Alto da Catingueira (reprise/encerramento)
21. A Volta da Asa Branca / Acauã
22. Cantiga de Amigo

– Daniel Tavares (Facebook) é jornalista e mora em Fortaleza.

17 thoughts on ““Cantoria” ao vivo em Fortaleza

  1. O Vital é quem está certo, o PT traiu a confiança das pessoas que acreditavam nos ideais apregoados pelo partido. Essas pessoas tem motivos de sobra para abominarem Lula, o PT, e toda cúpula do partido. O Vital apenas elogiou uma operação que é um marco na história do Brasil. Além do mais, em quase todos os shows os artistas tem se manifestado politicamente e tem havido respeito. Então, essa manifestação só é respeitada se for a favor da esquerda, é isso?

  2. Eu concordo com o Xangai. O Artista pode ter sua opinião e pode até emitir nas suas redes sociais, em entrevistas … mas no show não é hora de fazer discurso, senão vira comício. Independente se é de esquerda ou direita, eu paguei uma grana para ouvir as músicas que eu gosto e o cara me vem falar de lava-jato? Acho totalmente equivocado

    1. Eu discordo completamente de você e do Xangai. Dinheiro não compra (ou ao menos não deveria) o artista. Quem compra o ingresso de um show está embarcando em uma obra de arte, e o artista (com A maiúsculo) pode fazer o que ele quiser no palco, e o público tem o direito de não gostar da arte que está sendo proposta (Jim Morrison, inspirado em Kurt Weil, fazia o diabo a quatro), mas esse argumentinho besta de “eu paguei, tenho direito” não funciona (ou ao menos não deveria funcionar) com arte. O problema é que está todo mundo tão afundado na propagação de massa da indústria cultural que espera que um show seja apenas um artista inerte tocando canções, e se ele está em Amsterdã, Bogotá ou Salvador, foda-se, o lance dele ali é ser um robô que deve receber ordens de um senhorio que pagou por isso. Se a pessoa não está a fim de ser surpreendida, para o bem e para o mal, que fique em casa ouvindo o disco. Para mim, delimitar o que o artista pode ou não fazer no palco é ridículo.

  3. Marcelo Costa, se um cantor que você admira, que dificilmente virá um novo show, pára o show pra dizer que o Bolsonaro é a solução para o Brasil, que o Trump tá certo em xingar latino de bicho, etc e deixa a música em segundo plano você iria gostar? Ninguém está falando para o cara ser um robô e que eu paguei o cara tem que fazer o que eu quero. O que estou dizendo é sobre o bom senso. Esse tipo de discurso “a lava-jato veio para salvar o Brasil, o Moro é nosso salvador” é a tudo o que não espero de um show assim como “O Lula é o nosso herói, merece uma estátua”. Fora que o cara estava em um show conjunto com mais três artistas que não necessariamente concorda com ele, isso também acho uma falta de respeito. Se eu faço um show em parceria com o Zé bocó e ele no meio do show fala que Hitler era o cara, eu não concordo com ele mas quem está assistindo vai me associar com esse discurso.

    1. Não vou gostar, mas ele tem o direito de fazer o que quiser e eu de não gostar. O que é errado é dizer que é errado ele fazer isso. Discordar é ótimo, agora dizer “paguei e você tem que fazer x, y, e z” não dá porque a arte não é um pacote numa gôndola de supermercado. Artista não é papagaio (ou ao menos não deveria ser). O palco não é uma prisão. E as relações entre os artistas no palco, eles que se resolvam. É ótimo que eles discordem entre si, e estejam juntos. É terrível e extremamente frustrante ter que se podar em qualquer relação – de casal a trabalho. Ter que deixar de ser quem a pessoa realmente é para atender demandas da sociedade, demandas do mercado. É terrível.

    2. Tendo a concordar com o Marcelo. Para mim, o desrespeito inaceitável é o artista que sobe ao palco lesado demais para conseguir tocar, que não se deu nem ao trabalho de fazer uma passagem de som. Enfim, o que falta com o profissionalismo. Se ele vai fazer um discurso – a favor do Bolsonaro como líder latino-americano ou da implantação de uma política de eliminação de propriedade privada – isso é direito dele, e se estiver ligado à arte do fulano, faz mais sentido ainda. Pode ser que eu me decepcione se ele falar algo que me causa repulsa, mas a relação num show não é de servilidade. O que eu vou fazer é simplesmente aceitar que aquele cara mandou mal.

      Não conheço muito do trabalho do Vital. Imagino que a religiosidade faça parte dele. Eu – e aí é algo totalmente pessoal – provavelmente me aborreceria muito com qualquer citação a ritos católicos, mas isso é problema meu. Ele tem direito de fazer isso no palco (e pelo que vejo, é até condizente com o corpo de sua obra), como tem o direito de manifestar sua desilusão com determinado partido. Se isso é desrespeito para com os outros três artistas no palco, que podem ter posturas diferentes, aí é algo para refletir melhor. Mas o mesmo poderia ser dito da questão religiosa. Mas aí, se formos buscar essa postura anódina, realmente vamos ver a arte como produto e nada mais. OK, ela é produto TAMBÉM (nego tem que vender para viver, né?), mas não só.

  4. O discurso de ‘paguei e tenho direito a tudo’ é bastante sintomático de uma parcela da população. E os comentários políticos, dentro de determinados contextos, são válidos sim. Posso não concordar com alguns, mas é ótimo que isso exista. Quanto ao PT ter ou não traído o país, só tenho a dizer que insatisfação e impopularidade se vencem nas urnas, não aplicando um golpe, que foi o que ocorreu no Brasil. Recentemente vi um longa chamado ‘Rondon, o desbravador do Brasil’ e é uma produção de longa-metragem rara em Mato Grosso. Essa descentralização cultural e regionalização de produções se deve a um certo partido que ‘traiu’ o país. Mas os que estão agora ocupando o lugar pensam em cultura como um apêndice apenas. Que o diga Roberto Freire, o novo manda-chuva do pedaço.

  5. Vocês não entenderam o que eu quis dizer com o “pagar para ver um show”. Não estou dizendo que porque paguei o artista tem que fazer o que eu quero e que ele se torne um robô. O que estou dizendo é que deve haver um respeito do artista para seu público. Se o cara quiser fazer um mega discurso na sua página de internet, beleza, lê quem quer. Mas você pagar para ver um show que você espera há tempos (e pela matéria não foi pouco) e o cara interromper, acabar com o clima do show, passando por cima dos companheiros de palco para incensar a lava-jato e o Moro para mim não é o apropriado. Mas é a minha opinião, não estou dizendo que todo mundo tem que concordar assim como não estou dizendo que o artista não tenha liberdade. Só acho que bom senso nesse momento é mais do que adequado.

  6. Chico Buarque defende a quadrilha PeTralha e não deixa de ser artista e pra vc e não desrespeita o público quando fala de golpe nos shows, mas, Vita sehundo vc: “Vital esqueceu por alguns momentos que era um artista, um cantador, e que pessoas pagaram caro para vê-lo cantar sua música. Não fora ali para fazer discurso político a favor de A ou de B, nem stand-up comedy, nem dar aula de matemática nem rezar sua missa. Vital desrespeitou o público”.

    1. Essa foi a questão que me incomodou um pouco…. O texto no geral está bem escrito, interessante, tanto que despertou o interesse de muitos. Entretanto, me pareceu que o texto, em algum momento, desaprovou a postura do Vital devido ao teor da opinião dele. Será que se ele tivesse mandado um “Fora Temer”, ou depreciado o juiz Sérgio Moro, a postura do autor do texto seria a mesma? Me parece que não…

  7. Me lembrei de um episódio que os Babasónicos contaram na RS argentina: quando eles começaram a ter sucesso radiofônico, teve os queixumes de sempre dos fãs de primeira hora. Até que, num certo show, parte do público pediu o tempo para tocar só as faixas velhas. Vai que, no meio de uma canção velha, eles param e ficam em silêncio no palco por uns três minutos, até que o Dárgelos pega o microfone e diz: “isso é para vocês entenderem que, no palco, fazemos o que NÓS queremos”. E retomou o show.

  8. Aqui fala um assíduo frequentador de shows e advogado.
    Não se pode querer romantizar o artista ao extremo como alguns tentam fazer acima. Tal qual a relação entre um time de futebol e seu torcedores, temos uma empresa (ou indivíduo) que vende entretenimento de um lado e um que compra do outro.
    Se de um lado alguém oferece um show de música por determinado preço e outra pessoa se dispõe a pagar por ele, um show de música deve ser oferecido. Não pode o artista passar 1 hora fazendo embaixadinhas ou mostrando as fotos das últimas férias no telão. Se o fizer, a parte lesada tem todo o direito de ter o valor do ingresso devolvido, além de danos materiais com transporte e hospedagem e, se eu fosse o juiz, daria danos morais.
    A liberdade do artista que oferece um show de música esta na escolha das músicas, na forma de tocá-las, etc. Pode até fazer uns comentários no meio como relata a matéria acima, mas fica nisso. Nem pela duração do show ele tem total liberdade, pois se seus shows costumam ter 1h30 de duração e em determinado caso ele toca apenas 3 músicas e da piti indo embora, também cabe indenização.
    Por outro lado, o consumidor também não pode tudo, não pode querer o dinheiro de volta pois o artista fez comentários políticos que ele não gostou ou por ter deixado de tocar aquele hit que ele queria ouvir por exemplo, caso no qual o artista teria direito à indenização.

    1. Boas colocações, Carlos, e ai entram algumas questões: o contrato é fechado com o contratante, e via de regra prevê 60 minutos de apresentação (o padrão). No Rock in Rio 3, o Oasis teve que enfrentar o público do Guns, que tocaria depois, e a cada intervalo ficava pedindo “Axl, Axl, Axl”. O que os Gallagher fizeram?? Cortaram cinco músicas do set (já distribuído para a imprensa), tocaram 1 hora exatamente, e saíram do palco. Cumpriram a parte deles. Uma coisa é o contrato especificar: “Fulano tem que tocar a música x, y e z” – e olha que isso acontece! Se o contrato não especificar (e o contratante pode especificar e o contratado não aceitar – em dezenas de shows, o Nirvana não tocou “Smells Like a Teen Spirit”, por exemplo), o artista pode tudo sim no palco. Claro: se o contratante contratou o show “Cantoria”, os artistas têm que apresentar o show “Cantoria” no palco, como foi apresentado. Todo o resto está no direito do artista tanto quanto se manifestar politicamente quanto religiosamente ou, por uma hora, declamar um poema. Se durante o tempo previsto pelo contrato (60 minutos) ele apresentou o que foi contratado, o contrato está cumprido.

      Nesse caso, e ai entramos em outra questão, o contrato cerceia a arte, ele coloca o artista numa jaula e o obriga a imitar a si mesmo. É a indústria cultural em sua essência máxima (alguns artistas pop sem qualidade amam essa “qualidade” porque se pedirem para eles saírem um pouco que seja do script, eles não conseguem) vendendo cópias de um mesmo objeto de arte. Sou contra isso, mas aceito pessoas que entendem a arte como um mero entretenimento de repetição: “estou aqui para ouvir a música igual ao disco”. Se eu quisesse ouvir isso, ficava em casa, mas o evento todo vai além, tem a sensação de pertencimento, mesmo que o objeto cultural a sua frente seja uma mera representação fantasiosa que justifica um mundo construído o que as pessoas acham que são, e não sobre o que elas realmente são. Não se pode racionalizar o artista ao extremo também.

      Um caso clássico da música pop: David Geffen conseguiu tirar o Neil Young da Reprise Records no começo dos anos 80 e traze-lo para a Geffen Records. Na nova gravadora, Neil lançou um disco de música eletrônica (“Trans”), um de rockabilly (“Everybody’s Rockin”), um de country true (“Old Ways”) e um new wave (“Landing on Water”). Em 1 ° de dezembro de 1983, David Geffen processou Neil Young argumentando que os álbuns que havia entregue não eram “representativos” de sua música e que ele havia violado seu contrato. Neil Young alegou que seu contrato lhe dava completa liberdade artística. David Geffen perdeu o processo e teve que pedir desculpas a Neil Young.

  9. Ainda tem gente que entra nessa de Petralhas. Eu sempre sugiro que essas pessoas viajem pelo Brasil e abandonem um pouco a Avenida Paulista…um pouco de vida de verdade faria bem

  10. No final das contas considero que esse show foi histórico e que daria um excelente Cantoria 4. Tomara que o tenham gravado e que o lancem em disco algum dia, quando o distanciamento histórico permitir.

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