Entrevista: NoPorn

por Renan Guerra

Já faz 10 anos que o NoPorn lançou seu primeiro disco, registro sobre a noite de São Paulo, olhar sedutor sobre uma geração banhada em paetês e electroclash, poesia cantada para coreografias poderosas. Aquilo que parecia algo de um nicho específico foi ganhando significados múltiplos nessa última década. Uma nova geração, dessas que já cresceu em frente ao computador, foi descobrindo sua sexualidade e sua liberdade ao som de faixas do NoPorn.

Depois de uma década, o NoPorn era quase algo mítico da noite de São Paulo dos anos 2000, uma referência clássica no universo gay e uma trilha sonora constante para montações. Nessa atual dicotomia – entre liberdade sexual e de gênero e um fortalecimento do conservadorismo religioso dentro da política –, Liana Padilha e Luca Lauri resolveram expor sua “Boca”, segundo e provocativo disco do duo.

Produzido entre Rio (morada de Liana) e São Paulo (morada de Luca), “Boca” fala sobre encontros distintos, amores quase auto-destrutivos e sexualidade à flor da pele, tudo com camadas e camadas de sintetizadores, que fazem a cama para a voz provocativa de Liana, em seu spoken word quase litúrgico. Para entender o que motivou esse retorno, os novos caminhos e as mudanças do NoPorn, leia a nossa entrevista com a dupla:

Foram dez anos de hiato, nesse meio tempo vocês já deixaram claro que seguiram produzindo e compondo, mas quais as circunstâncias levaram ao lançamento de um segundo disco apenas agora?
Liana – Acho que foi um conjunto de fatores… Vemos o Noporn como um projeto de arte, teatro e música. Pra mim sempre foi importante escrever sobre a época que a gente vive e ter o que falar (uma história, uma sinopse). O Luca sempre pesquisou e estudou música, é DJ. Acho que se tivéssemos feito outro trabalho logo após o primeiro, seria repetitivo, ainda estávamos na mesma dobra espaço-tempo. Agora já temos um distanciamento, é um outro momento, uma outra onda. Fizemos outras coisas nesse intervalo, eu voltei pro Rio de janeiro, depois de 20 anos morando em SP, sou artista plástica e comecei a fazer trabalhos de arte sonora. O Luca continuou tocando, eu sempre escrevi muito e mandava coisas pra ele, fizemos algumas trilhas e músicas. Quando eu voltei pro Rio, vi que tinha uma cena forte eletrônica, bem livre, que aceitava outras sonoridades e que conhecia o NoPorn. No ano passado, o povo do Drag-se fez um clipe de “Sonia”, teve o filme “Beira-Mar” que resgatou [a faixa] “Xingu” e uma leva de pessoas que eram crianças na época do primeiro disco começou a curtir. E fizemos um show na Festa REBOLA, que foi meio divisor pra gente sentir que tinha um público querendo ouvir nossas histórias.

Nesse meio tempo, o NoPorn se tornou um ícone underground, criando uma nova relação com um público jovem que nem frequentava a noite naquela época (eu mesmo tinha apenas 13 anos quando o primeiro disco foi lançado e morava no interior do Rio Grande do Sul, mesmo assim o disco fez parte da minha formação musical e estética). Isso foi um pontapé para esse retorno?
Liana – Quanto mais careta é o momento do mundo, mais precisamos de escapes e de festas. A comunidade Gay sempre soube disso e sempre soube rir de si mesma. A liberdade do corpo é uma arma muito poderosa. A comunicação através da música e das palavras também. O NoPorn é uma troca, uma Boca querendo falar pra quem quiser ouvir.

Outra coisa que, como fã, me deixou doido foi ver a Fernanda Lima cantando “Baile de Peruas” no Amor & Sexo, da Rede Globo. Como vocês reagiram a isso, foi divertido?
Liana – Foi lindo, “Baile de Peruas” é especial, é um hino ao excesso de julgamento sobre o trabalho alheio.

O primeiro disco do NoPorn é um reflexo muito forte de uma época e de uma cena noturna de SP, na hora de lançar um novo disco vocês não ficaram receosos de repetir fórmulas ou mesmo cair em chavões datados?
Liana – Foi tudo bem orgânico, gostamos de pensar no disco como um filme, uma história de amor, com começo, meio e fim. Como todas as histórias de amor… A gente cria com muita facilidade junto e agora, temos outras cenas, outros atores e outras histórias pra contar.

Em “Boca”, o sexo e a sexualidade aparecem de formas complexas, relacionadas também as discussões sobre aceitação, violência, liberdade, esse foi um caminho que vocês buscavam ou que surgiu de forma natural durante a produção do disco?
Liana – Foi tudo natural, falamos dos assuntos que estão na nossa pauta afetiva, sexo, aceitação, ciúme, violência e um estado escravizado que só a paixão é capaz de fazer com o ser humano, coisas que nós e nossos amigos vivem, sobre carência, solidão e necessidades físicas. A gente faz umas jams, o Luca vai criando a atmosfera e eu vou lendo e adaptando os textos, o que a gente gosta, trabalhamos até virar música. Várias músicas ficaram fora desse álbum, talvez a gente lance depois como singles.

Nesse novo lançamento há uma preocupação visual grande: vocês já lançaram vários clipes e buscam uma identidade artística bem marcante, essa era uma vontade de vocês: poder lançar um trabalho que viesse ancorado numa linha estética bem forte, que marcasse a atualidade do NoPorn?
Liana – Sim, sempre misturamos, sou artista plástica e o Luca é designer. No primeiro álbum também tinha essa busca, tivemos a sorte de ter o Fernando Zarif, um grande artista e amigo, que morreu precocemente, e que fez toda a arte e a capa. Neste, desde o início, associamos as músicas com imagens. Os desenhos e pinturas são meus e a arte gráfica é do Luca.

O disco conta com inúmeras participações e referências, o que até poderíamos chamar de uma “marca NoPorn”, pois o primeiro disco era construído quase como um emaranhado de diálogos com outras frentes. Isso é uma forma de produzir que vocês desenvolveram ou surgiu de uma necessidade natural de criar essa conversa entre as referências de vocês?
Liana – O primeiro disco tinha um roteiro de colagens e uma história de amor e de perda, era mais íntimo, como um segredo. O segundo saiu essa coisa mais safada, mais solta, pós gay. Na real a gente vai fazendo e cria uma pós sinopse do que vai sendo feito, muito é improvisado, sentido, não pensamos: “ah, vamos fazer uma música falando disso, etc.” Não, a música e a letra se criam através de nós. Nós somos o Cavalo.

Falando em referências, certamente nesses 10 anos muitas coisas mudaram a forma de ambos visualizarem o mundo, o que tem influenciado o NoPorn atualmente e o que disso tudo ressoou no disco?
Liana – Tenho pensado muito em liberdades individuais e coletivas, vidas simultâneas, experiências espirituais, corpos livres, amores paralelos, tanta coisa que passa pelo corpo e as formas de demonstrarmos esse afeto fisicamente, politicamente, de forma única e ao mesmo tempo comum a todos. O porquê do sexo e da sexualidade ainda serem tabu? O porquê da violência ser melhor aceita que a sexualidade? Por que uma pessoa acha que pode bater ou matar outra por essa pessoa ser o que é?

O NoPorn está tão relacionado ao universo gay e a cena clubber que eu acho fundamental que drag queens dublem as canções da banda, rs, por isso eu pergunto: vocês também são fãs de RuPaul’s Drag Race? Se sim, quais as suas drags preferidas? E vocês acompanham a cena atual brasileira, como o Academia de Drags, da Silvetty Montilla, ou mesmo todas as drags jovens que estão surgindo pelo país? A Liana cedeu uma entrevista para o canal Drag-se…
Luca – Sim! Sou muito fã de Ru Paul’s Drag Race. Minhas drags favoritas são Katya e Detox. Na nossa história em clubes de São Paulo e do Rio a gente acabou conhecendo e trabalhando com várias delas. A Renata Bastos é nossa musa desde os tempos do Xingu. A Alma Negrot fez um clipe lindo para uma música do novo disco, junto com as manas. E as meninas do Drag-se, um coletivo de drags da nova geração do Rio, foram responsáveis por impulsionar a nossa vontade de fazer um novo disco quando fizeram um clipe para a música “Sonia”, de 2006. A gente ama se divertir com elas. É uma relação de admiração mútua, eu acho.

Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites You! Me! Dancing! e Scream & Yell. A foto que abre o texto é de Candé Salles / Divulgação.

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