Diário: Cineamazônia Itinerante

Texto por Ismael Machado
Fotos por Zeca Ribeiro

Filhote do festival Cineamazônia, o Cineamazônia Itinerante se propõe a levar pequenas mostras de filmes (geralmente curtas) e apresentações de artistas como músicos e palhaços de circo para comunidades afastadas, distantes dos grandes centros, da Amazônia, Peru, Bolívia, Colômbia, África e até Portugal. Neste diário de viagem, o jornalista escritor e roteirista Ismael Machado, autor do livro “Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem”, conta suas impressões acompanhando a caravana do Cineamazônia Itinerante.

Guajará-Mirim (Texto 1)

Há que ter paciência e um bom olhar. Felipe e Chrystian têm as duas coisas de sobra. Os dois caminham por uma estradinha de terra bem iluminada por uma lua crescente e um céu pra lá de estrelado. Vão em direção às margens do rio. A intenção é fazer fotografias com exposição demorada. Fotos noturnas, algo que realmente requer um pouquinho a mais de fotógrafos.

Para os dois é pura diversão. O encontro entre nós se desenrola enquanto a sessão em Iata, um pequeno distrito pertencente a Guajará-Mirim, inicia. Os dois não viram o que eu vi. Às margens do rio, sozinho, vejo uma luz vermelha, como se fosse um grande vaga-lume (ou pirilampo, como queiram). Só que não era.

No dia seguinte leio que há esse fenômeno das luzes estranhas em Iata. Já rendeu reportagem na TV. É desses mistérios que o mundo se alimenta.

Ainda não desatracamos rio Guaporé adentro. Por enquanto as apresentações são em locais onde o deslocamento básico é por estrada. De chão e de asfalto. Há tempo para discussões sobre o papel de canções do Oásis no cenário musical dos últimos anos. Lui diz que “Wonderwall” talvez tenha sido a canção mais emblemática dos últimos 20 anos. E como não se emocionar com “Don’t Look Back in Anger”?

É sempre interessante notar em viagens que cada um vai criando sua trilha sonora particular. Como os consensos musicais são difíceis de alcançar, talvez essa seja sempre uma boa solução. Fone de ouvido, santa invenção!

Para quem nunca participou de uma itinerância pelo Guaporé, um aviso: cuidado com Henrique. Ele não nasceu para fazer o bem. Explicando… o cara é um dos melhores cozinheiros que podem existir. Impossível não comer, comer, comer… o resultado é previsível. Quilinhos a mais virão, com certeza.

Vamos nos conhecendo. Nos entrosando. Bete Bulara dança animada ao som de uma bate estaca tecno que toca enquanto a estrutura do Cineamazônia está sendo desmontada. Inevitável pensar na vida que levou e leva durante esse tempo de existência digna. Descubro que é amiga de Gonda, amigo querido de Belém. As sintonias se cruzam e se espalham.

No segundo dia, logo depois da consagradora apresentação dos palhaços, o bordão de Chiquita começa a ser repetido. “O queeee? Não acreditooo!”, repetimos, engrossando a voz a qualquer frase mais ou menos diferente.

Ale, o palhaço, quer convencer a mim e Lui que o Corinthians não é beneficiado pelo apito amigo. Passo a entender mais a profissão que ele escolheu. Só pode ser brincadeira…

Michelle aparece com uma boina lindinha. Comprou do outro lado em Guayaramerin, mas diz que o cenário lá é de decadência. Crise internacional e seus reflexos. E na fronteira entre Brasil e Bolívia isso se traduz em quedas de venda, dólar em alta e lojas fechando. Mas ó, a culpa não é do PT, ok?

Fernanda anuncia, entre grave e divertida, que uma frente fria está chegando. E vai nos alcançar no Guaporé. O que me preocupa são os mosquitos, os insanos mosquitos que costumam deixar uns calombos na perna e nos braços e que parecem beber o repelente com o mesmo prazer com que eu provei, ainda em Porto Velho, a Proibida Puro Malte.

Vez em quando ainda lembro a conversa tida com algumas mulheres na Resex Rio Ouro Preto, no primeiro dia dessa itinerância. Uma das mulheres conta, enquanto serve a mim e Michelle um prato de pato e galinha, que aos 13 anos foi oferecida a um homem, mas como não sabia o que era casar, foi feita de escrava durante três anos. Aos 16, o homem a amarrou e a estuprou. Nasceria o primeiro filho dela. Um por ano pelos sete anos seguintes.

Só depois que ele morreu é que aos poucos ela foi descobrir o que era bom no sexo. Aliás, só no quarto marido. “Não é todo homem que sabe fazer não”, ela nos diz. Logo depois pergunta se não vai tocar uma musiquinha pra ela dançar um rasqueado.

Cineamazônia tem essa peculiaridade. Nos faz encontrar pessoas com histórias que abrem nossa cabeça, trazem reflexão e emoção.

Muito disso ainda virá, tenho certeza. Estamos apenas começando. E o barco nem desatracou.

De reis e rainhas (Texto 2)

Pinduca é rei em Guayaramerin. Tomo um susto ao entrar na casa da velha Aidê e no quintal deparar com um adolescente ouvindo um DVD do rei do carimbó. Quando digo ao rapaz que ele é da minha terra, os olhos do moleque brilham.

É necessário recapitular.

Estamos na segunda etapa da itinerância do Cineamazonia. Serão uns 20 dias navegando por rios exibindo cinema, palhaços etc. Um dos braços dessa caravana cultural se chama Museus Vivos, um projeto que idealizamos numa tarde em Niterói com Fernanda e Jurandir, que organizam o Cineamazonia.

A ideia é registrar a história de pessoas que viram e fizeram a historia. Que viveram e tem o que contar.

Então, agora estamos Lui, eu, Gabriel e Zeca Ribeiro entrando na casa de Aidê. Não custa ressaltar que estou feliz de olhar ao lado e ver os meus dois filhos trabalhando comigo. Lui é quem dirige o Museus Vivos nessa etapa. Só dou uma ajuda nas entrevistas. Gabriel tem sido uma espécie de roadie do Lui. Uma hora depois de iniciarmos a entrevista estamos todos com os olhos mareados. Culpa de Aidê.

Na carteira de identidade está Edith. Mas entre uma e outra há um mundo. E isso me soa simbólico, a mudança de Edith para Aidê.

É uma mulher de uns 80 anos, negra de cabelos brancos curtinhos, brincos dourados e dedos repletos de anéis prateados. Um sorriso calmo, uma voz pausada.

Aidê não teve infância. Não brincou. A mãe morreu de meningite quando Aidê ainda era muito pequena. Ficou passando de mão em mão, de família a família. Neta de escravos, descendente de barbadianos que ajudaram a construir a estrada de ferro Madeira Mamoré, Aidê chorava sozinha quando via que carinho de mãe não existia para ela.

Teve cinco filhos, de dois parceiros diferentes com quem morou. Ela enfatiza que nunca casou e isso parece mais um rombo na fantasia de jovem que foi dissipado pelo tempo.

Aidê derrama uma lágrima solitária quando nos conta isso. Todos ficamos embevecidos com a mulher que estudou até a terceira série, mas tem uma filha fazendo doutorado nos Estados Unidos. Aidê encerra dizendo essa é minha história. Sem mácula, sem rancor, serena.

Abraçamos essa mulher com genuíno afeto. Saímos melhores, todos nós. Nunca irei esquecê-la. E esse é apenas o começo do dia.

De noite, nos perdemos na cidade escura. Até encontrarmos o local das apresentações. Foi estranho. A quadra estava lotada e os palhaços adaptaram o espetáculo para o novo publico.

Ao lado da quadra onde os filmes eram exibidos havia um bar surreal. Decidimos tomar umas Pacenas por lá, enquanto a mistura de Madonna, Leandro e Leonardo e Led Zeppelin vai fazendo a cama sonora. Faço foto de um grupo chamado Los Iracundos para mandar ao Marcelo Damaso, produtor do Festival Se Rasgum.

A volta é feita no caminhão que carrega os equipamentos. Antes, bom dizer que reencontrei o velho Abraham, o último comunista da face da terra, que conheci na primeira itinerância Peru-Bolívia em 2008. Nos abraçamos e eu apresentei Michelle, Lui e Gabriel a ele.

No dia seguinte, um vento frio nos diz que o tempo pode mudar. E vai mudar. Daqui a pouco será lua cheia. Olho para o rio e prevejo os próximos dias.

Estamos bem. Principalmente porque Chicao Fill, de Manaus, me informa que estamos no páreo num edital amazonense. Boas novas.

E Pikachu desencantou fazendo o primeiro gol pelo Vasco. Agora ninguém segura.

Vamo que vamo.

Na fronteira Brasil – Bolívia (Texto 3)

Na estrada e nos rios desde o dia 13 de julho, a segunda etapa do Cineamazônia Itinerante 2016 já chegou à praticamente metade do percurso envolvendo principalmente os rios Mamoré e Guaporé, com cinema, circo e oficinas para comunidades ribeirinhas, quilombolas e pequenos distritos entre Brasil e Bolívia.

A primeira parada foi inédita. A Reserva Extrativista Rio Ouro Preto recebeu o Cineamazônia pela primeira vez. Depois foi a vez do distrito de Iata, pertencente ao município de Guajará-Mirim. Em Iata, os palhaços Chiquita e Cotonete tiveram uma das melhores participações do público até então.

Depois foi a vez da dobradinha Guajará Mirim e Guayaramerin, a autêntica fronteira Brasil e Bolívia. Só depois desses dois locais é que a itinerância tomou o rio Mamoré como destino. A primeira parada foi San Lorenzo.

San Lorenzo é uma pequena comunidade boliviana às margens do rio Mamoré. Povoado simples, com uma igreja, uma escola, um posto de saúde e uma pracinha de frente ao rio onde botos exibem-se aos olhos curiosos de quem não está acostumado a eles diariamente.

A tela do cinema ao ar livre do Cineamazônia foi montada em frente ao rio. A lua cheia era um presente a mais. Quase 100 pessoas assistiram à exibição, aberta com o resultado da animação na técnica Pixilation feita com crianças da comunidade, dentro do projeto ‘Animando a Amazônia’.

Roteirizado e dirigido por Christian Ritse, com assistência de direção de Lui Machado e assistência de produção de Ian Gabriel, o filme ‘El Paño Mágico’ contou uma pequena história de um pano misterioso que ‘engolia’ as crianças do vilarejo por obra de um mágico. Ao final o feitiço se volta contra o feiticeiro.

Assim como o filme em Pixilation outro projeto que também faz parte do Cineamazônia Itinerante é o ‘Museus Vivos’. Em San Lorenzo, a personagem escolhida foi Marta Pereira, uma mulher que perdeu os pais ainda criança, assim como logo depois a avó. Criada praticamente sozinha e trabalhando em ‘casas de família’, conseguiu criar todos os filhos com dignidade. Hoje é uma mulher que luta para trazer melhorias a San Lorenzo.

A fotógrafa Bete Bullara também falou sobre o resultado da oficina matutina de fotografia artesanal com quatro crianças da comunidade de San Lorenzo que conheceram as técnicas básicas dos primórdios da fotografia.

Entre os filmes, o público teve a atenção despertada com o curta ‘Dos Tomates e dos Destinos’, uma produção com a assinatura da Organização Não-Governamental ‘Veterinarios Sin Fronteiras’, que discute a questão alimentar, com o risco de agrotóxicos e outros elementos que contaminam frutas e verduras levadas à mesa.

A noite foi encerrada com a apresentação versão ‘portunhol’ dos palhaços Chiquita e Cotonete, da Trupe Koskowisck.

Em Surpresa, a parada seguinte, o cinema e o circo tiveram o maior público até agora. Cerca de 300 pessoas pelo menos, se aglomeraram no campo de futebol do distrito para acompanhar as atrações.

Além dos moradores de Surpresa, houve a presença de índios da aldeia Sagarana, que chegaram em rabetas. Não houve cadeiras para todos, com o público precisando se acomodar nas arquibancadas de madeira do campo.

Entre os índios 13 crianças participaram da oficina de fotografia artesanal ministrada pela fotógrafa Bete Bullara, utilizando a técnica do ‘Pinhole’, ou ‘buraco da agulha’, que remete aos primórdios da fotografia.

Na apresentação, a coordenadora Fernanda Kopanakis informou que há a pretensão de levar a itinerância para as terras indígenas. A aldeia Sagarana fica distante cerca de 30 minutos de barco de Surpresa e é formada por sete etnias. Já está acostumada com o audiovisual. Foi na aldeia que o curta-metragem ‘O Homem que Matou Deus’, já exibido e premiado no Cineamazônia, foi filmado.

Na sessão em Surpresa foi inserido o filme ‘The Change’, anteriormente só exibido nas apresentações em terras bolivianas. O filme, uma animação em desenho, mostra de forma divertida a ameaça que o desenvolvimentismo das grandes metrópoles pode ocasionar a pequenas comunidades rurais e florestais.

De Surpresa a itinerância foi até o Forte Príncipe da Beira, uma das edificações mais imponentes e intrigantes que o período colonial legou ao Brasil. Situado às margens do Rio Guaporé é repleto de histórias e lendas. Uma história não contada é a da própria construção do forte. A oficial diz que 200 trabalhadores erigiram a muralha de pedra. A não oficial revela que pelo menos mil escravos e 5 mil índios escravizados foram utilizados durante os sete anos que o forte levou para ficar pronto.

Durante a lua cheia da noite de 21 de julho, o Forte Príncipe da Beira recebeu a caravana cultural do Cineamazônia Itinerante. Como sempre, noite especial. Guarnecida por uma brigada de fronteira do Exército, as muralhas do forte foram o palco de oito filmes em curta-metragem e de uma apresentação marcante da Trupe Koskowisck. Os palhaços Cotonete e Chiquita tiveram de se desdobrar para conter o entusiasmo das crianças do local, que interagiam a todo momento.

O local também recebeu as oficinas de fotografia artesanal ministrada por Bete Bullara e o filme em curta metragem de animação na técnica Pixilation, de Christian Ritse.

Durante a tarde, a equipe do Amazon Sat conheceu uma das histórias intrigantes do Forte. Guiados pelo presidente da Associação Quilombola de Forte Príncipe da Beira, Elvis Pessoa, a equipe foi até um labirinto de pedras situado no meio da mata. Local que é cercado por lendas. Do labirinto, Elvis Pessoa já encontrou diversos artefatos, inclusive peças que remetem a colonizações incas.

O distrito de Buena Vista, na Bolívia, marcou a estreia de dois novos quadros dos palhaços, para melhor adaptação ao idioma espanhol. A exibição em frente a uma pequena praia de areia foi marcada pela forte participação das crianças. No sábado, 23, é a vez do município de Costa Marques, em Rondônia receber o Cineamazônia. A caravana segue.

Cineamazonia, 14a EDIÇÃO, tem o patrocínio do BNDES, Governo Federal, Ministério da Cultura, Secretaria do Audiovisual, Lei Rouanet. Apoio Cultural da Prefeitura de Porto Velho, através da SEMA.

– Ismael Machado é jornalista, escritor e roteirista. Lançou o livro “Sujando os Sapatos – O Caminho Diário da Reportagem”. Saiba mais aqui

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