Conexão Latina: Pascuala Ilabaca

por Leonardo Vinhas

A passagem curta, de apenas três apresentações, da chilena Pascuala Ilabaca pelo Brasil rendeu fãs apaixonados. Se duvida, pergunte ao público que compareceu aos shows de Rio de Janeiro, São Paulo e Caxias do Sul em abril de 2016: acompanhada de sua banda, Fauna, a cantora e compositora entregou, em cada uma dessas noites, um espetáculo composto de elementos artísticos de seu país, de outros países latino-americanos, do jazz estadunidense e da Índia. A música era o motor e o motivo dos shows, mas a estética que a dança, o figurino e os elementos cênicos que a acompanhavam não podiam ser ignorados.

Ao contrário da meticulosa assepsia oca à Cirque du Soleil tão facilmente encontrável nas “divas” do pop, as apresentações de Pascuala Ilabaca y Fauna tinham aquele sentimento de oportunidade única que caracterizam os shows mais marcantes. Tanto que alguns músicos que se apresentariam após ela perguntavam uns aos outros: “O que a gente vai fazer depois de uma coisa dessas?” Era compreensível: mesmo que viesse boa música na sequência, seria difícil superar o que veio como algo que não pode ser chamado de nada que não seja “grande arte”. O sorriso daquela elegante jovem chilena no palco se tornava o chileno de todo o público presente.

Entender a construção da carreira e das canções que compõem o corpo do trabalho de Pascuala Ilabaca foi o propósito desta entrevista, concedida poucos dias após ela ter sido anunciada como vencedora do Prêmio Pulsar (o mais importante da indústria fonográfica chilena) de Melhor Cantora e Compositora. A história da moça renderia um filme – mas ela optou por transformá-la em discos. Portanto, entenda essa entrevista como uma espécie de “trailer musical” de um dos trabalhos mais significativos da música latino-americana contemporânea.

Você ganhou o Prêmio Pulsar de Melhor Cantautora. Além de ser um reconhecimento da indústria, o que representa isso para você, pessoal e artisticamente, nesse momento da sua carreira?
Para mim é muito importante que tenha sido com “Rey Loj” (2015). No ano passado fui indicada também com um disco que é um tributo aos grandes compositores e poetas chilenos, “Me Saco el Sombrero” (2014). No “Rey Loj”, sinto que me expressei muito livremente, deixei correr a criatividade, e me preocupei a fazer tudo 100% do meu gosto, da qualidade do meu som à expressão musical. É um disco que me representa muito – também pela temática do tempo. Quando terminei o disco, senti que ele é um disco que me agradou demais. É um disco ousado, estranho, tem muitas canções e algumas muito longas, diferentes entre si, mas todas com uma mesma temática. Pensei que a opinião geral era de que achariam o disco uma loucura, mas, quando ele saiu, meus amigos mais próximos me diziam “uauuuu”! Falaram que eu entrei numa viagem muito profunda com esse disco. É menos folclórico, e o Chile está em uma etapa de lutar por reivindicar a identidade chilena. Ainda assim, esse álbum traz música da Índia, é mais aberto, mais… “world”. Me fortalece e me faz sentir segura que tenha sido esse o disco que ganhou o prêmio. Ele mostra que tenho que confiar em mim mesma, tenho que fazer a música do jeito que ela nasce em mim, sem sentir medo, confiar nessa busca criativa.

Também é um disco que parece deixá-la muito à vontade no palco.
Sim. Por exemplo, ontem fiz um show no Cine Arte de Viña del Mar, e incorporei essa canção “Sabatanasa”, que é em hindi e tem mais de 14 minutos ao vivo (no disco, dura 11min23seg). Em um festival massivo – ou em qualquer instância – tocar uma canção que dura 14 minutos é um risco, não? Mesmo assim, ela funcionou muito bem. Lembro-me que no festival de Caxias do Sul essa canção foi justamente um dos momentos mais bonitos da apresentação: havia crianças e avós no público, e me causa uma alegria enorme que uma criança vá a um concerto e escute uma canção assim. São escassas as canções assim!

Já que falamos de show: é impressionante notar que, ao vivo, não acontece algo do tipo “Pascuala Ilabaca e o resto”. Fauna, sua banda, se porta mesmo como um coletivo, todos vocês atuam em uma unidade muito aparente, e cada um tem seu momento protagônico, não é um show centrado apenas na sua figura. Então gostaria que você me contasse sobre como eles participam do seu processo criativo.
Me interessa muito que se valorize o instrumental. No mundo da indústria pop e da imprensa, criou-se a tradição de concentrar-se demais nos vocalistas. Ok, dá para entender que exista esse foco nos artistas solos, mas mesmo nesses casos há uma enorme falta de informação sobre as bandas que acompanham esses cantores. Não há nem informações sobre os instrumentos que estão na gravação. Me perguntam como me coube tocar o acordeão, “um instrumento tão estranho”. Mas na música tradicional chilena os estilos todos têm acordeão: cumbia, tango, cueca… Mas são gêneros em que o vocalista não toca um instrumento, então as pessoas nem notam! Mas isso é uma falta de educação tremenda, escutar todo dia uma música que tem acordeão e considerá-lo um instrumento estranho. Em nenhum show o acordeonista tem papel central, então ele vira um instrumento invisível. Por isso faço questão que os músicos apareçam claramente nos shows. Inclusive acompanhando com meu corpo! Se o guitarrista está tocando, me aproximo e aponto para ele. No começo da minha carreira, eu via vídeos que faziam dos meus shows em que me filmavam cantando, e aí vinha o solo de guitarra, e continuavam filmando a mim (risos). Isso me aborrecia muito. Nunca davam protagonismo ao instrumentista, por isso faço essas danças que me colocam perto do instrumentista, até me ajoelho em frente de alguns, para que as pessoas tenham o músico em evidência. Inicialmente eu comecei como um trio de voz, guitarra e bateria – porque nunca fui solista, sempre estive acompanhada de músicos. Quando gravamos o primeiro disco, “Pascuala canta a Violeta” (2008), era esse formato cru, mas logo incorporamos um baixista nos shows. Miguel, o saxofonista, era músico convidado, e logo ele passou a fazer parte de todos os shows. Então foi em 2010 que se consolidou esse formato quinteto. Já são então quase seis anos em que fazemos cerca de 100 shows a cada ano. Ou seja, são mais de 500 shows juntos! Então por isso todo esse entrosamento que se vê no palco.

Você nasceu na Espanha, mas cresceu no Chile, é isso?
Sim. Mas fui muito pequena para o Chile. O que acontece é que meus pais, que são chilenos, são dois artistas que foram morar na Espanha nos anos 1980, porque era a época da ditadura. Em 1988 voltamos ao Chile, e em 1989 foi a volta da democracia no país.

Pergunto isso porque a música chilena pega muito forte. E você citou Violeta Parra, certamente sua maior referência. Mas imagino que outros membros da família Parra tenham impacto na sua formação cultural, não?
Sim. Todos os irmãos mais velhos de Violeta, por exemplo. Violeta sempre disse sobre seu irmão, o poeta Nicanor Parra, que “sem Nicanor não existe Violeta”. Era um gênio físico e poético que influenciou na educação de todos os seus irmãos. Ele saiu para estudar em Santiago, e depois mandou buscar Violeta para salvá-la da vida no campo em meio à pobreza e às dificuldades em que eles viviam. Então Nicanor foi importante para ela, e é para mim também. Gosto dos poetas que não são grandiloquentes. Os que usam palavras simples, cotidianas, e com essas conseguem expressar sentimentos muito profundos. É o caso de Nicanor. Roberto Parra também. Ele é do teatro e escreveu minha obra favorita, “La Negra Ester”, que se passa no porto de San Antonio, cidade que fica ao lado de Valparaíso, e fala sobre os músicos que tocam nos bares de prostitutas. E é uma história que eu vivi de muito perto. Meu pai, Gonzalo Ilabaca, é pintor, e quando eu tinha seis, sete anos, escreveu um livro e fez uma exposição de desenhos sobre o bairro de prostitutas mais importante de Valparaíso. Eu o acompanhei em todo esse processo. Eu era uma criança de sete anos que me enfiava ali no meio, dançava em cima das mesas na frente dos marinheiros, conversava com a filha da dona… Me criei nesse mundo de Valparaíso que já morreu. Esse período em que os marinheiros chegavam a Valparaíso e passavam por lá acabou, agora só resta a nostalgia. Então para mim esse mundo de um artista que se mete em um bar de prostitutas para contar sua história é a história da minha vida. Por isso essa obra é tão importante para mim. Além disso, é um musical! E com muitas palavras cotidianas, com gírias. Para mim, é uma influência muito grande. Todos os irmãos de Violeta me influenciaram muito, e também Isabel e Ángel, com quem já toquei muitas vezes e são referentes. Minha mãe era fanática de Isabel Parra, e essa foi a primeira influência de canto que tive. Quando comecei a estudar canto, eu odiava o vibrato. Os cantores populares, de rádio, usavam muito isso, para tentar impressionar. Ainda usam (risos). Pelo menos por aqui, não sei no Brasil…

Ainda temos isso, sim. Já tivemos mais, mas continua, sem dúvida.
Então, os cantores românticos são muito: (imita um vibrato exagerado). Isabel Parra não fazia isso. Sempre me encantou a limpeza que ela tinha como intérprete. Uma voz muito clara, natural e espontânea. Aprendi a cantar escutando a música dela.

Poeta, dramaturgo… Já se nota que suas influências apontam para uma proposta que vai além do musical. E a dança é parte essencial das suas apresentações. O que você busca com essa variedade toda, especialmente a variedade cênica? Qual o conceito?
Um dos ícones que mais me influencia é o ícone da mulher latino-americana, a mulher que não separa a arte como uma criação mental e sim a vive como uma experiência de vida. Quando se vai à Guatemala, à Colômbia, se sente que as pessoas não estão apenas fazendo um objeto artístico. Quando elas fazem uma roupa, é algo que vão usar no dia a dia. Ela vai vestir arte, comer arte, criar arte. É a arte como alimento, como vestimenta, e é essa maneira integral de viver a arte que me interessa. Pode ter todo tipo de gente no meu show: pessoas mais visuais, ou mais sensoriais, ou mais racionais. Então eu gosto de ter todo o tipo de informações na minha música. Muitas das ideias que me influenciaram não são necessariamente musicais. Podem vir de experiências, como passar quatro dias dançando numa festa popular, fantasiada de borboleta, não sei… Ao traduzir a experiência, essa coisa de dançar vestida de borboleta no deserto, quero levar as pessoas a esse mundo de desertos, tudo com o objetivo de apaixonar as pessoas do público e liga-las a esses valores, à magia das tradições populares que pode se perder com tanta tecnologia. Eu gosto do mundo do circo, por exemplo. O circo popular é cotidiano, toda cidade pode ter um. Ele é como o cinema: pode ter todas as artes incorporadas, é um trabalho coletivo, tem a essência da viagem. Ali você vai e come, ri, chora, se surpreende, tudo se mistura. Isso para mim é o ideal de uma obra musical.

O fato de ter vivido na Índia colabora para isso também, não? Afinal, é um país onde a cultura está toda interligada, não é natural separar a comida da dança, da festa, da roupa, da música ou do que seja.
Morei dois anos por lá. Primeiro morei com minha família quando eu tinha 12 anos. Fiquei lá por um ano, e foi quando comecei a me dar conta de que não existe apenas um mundo. Mas a Índia é outro mundo: um submundo, uma bolha de mundo que existe em outra parte. Depois fui ao México e conheci ainda outro mundo, e aí comecei a me dar conta de que todas as formas dos diferentes mundos são subjetivas. Não existe uma forma de mundo que domine tudo. E também não existe Oriente e Ocidente. Isso é mentira. Tenho tantas coisas em comum com um hindu como tenho com um alemão ou um grego. Isso me serviu muito para minha vida. Depois, de 2009 para 2010, passei mais um ano lá para estudar canto. O que mais aprendi foi a linguagem da improvisação, e nos códigos da Índia, isso quer dizer que existem formas para improvisar que podem ter longa duração. O modo de viver o tempo é diferente. Uma canção pode durar um minuto ou uma hora. Isso me aportou muito musicalmente.

Você convidou Renata Rosa, outra cantora de personalidade muito forte. Por mais que o trabalho dela seja sólido, não é muito conhecido do público brasileiro. E você não só conhecia como até tocou uma canção dela – tanto com ela no palco, em São Paulo, como com sua banda, em Caxias do Sul. Como vocês se conectaram?
Um dia, eu estava trabalhando no computador e me chegou uma mensagem da Lola, do Perota Chingo (um quarteto formado por homens e mulheres de diferentes nacionalidades), dizendo para eu escutar “Morena”, da Renata Rosa. Uma canção muito lenta, muito triste, terrível. No mesmo dia, minha irmã me mandou uma mensagem recomendando a mesma canção, dizendo “olha que lindo isso”. No mesmo dia, de dois lugares diferentes me chega esse tesouro que é Renata Rosa e eu começo a ouvir e ouvir. Li o pouco que há sobre ela, e senti que ela é uma mulher empoderada, poderosa, que compilou a música da sua região e conhece os luthiers velhinhos, os velhos que tocam instrumentos. E ela tem a corporalidade, a dança, é assim que ela vive a música. Ela me interessou muito por ser assim: investigadora, compiladora, mas também porque aborda tudo isso de uma maneira muito criativa. Podem misturar poética e tradição, e seus músicos não são 100% tradicionais. Nos vídeos dava para ver músicos rastafári, sei lá, havia uma simbiose – estamos falando de gente que ouviu música tradicional na infância, ainda ouve, mas que no mesmo dia pode ouvir Lhasa de Sela ou Björk. Essa forma tão livre de Renata Rosa ver sua música me conquistou, e acho que essa é uma visão que eu e ela compartilhamos. Para as pessoas que são muito tradicionais, isso pode ser chocante. Isso aconteceu comigo no Chile. Mesmo músicos mais ligados à tradição me vieram com cobranças: “Como você toca esse ritmo X e usa essa roupa Y? Eles não andam juntos”. Ou “Esse é um ritmo de celebração dos mortos e você o usa para falar da vida”. No fundo, essas regras não me interessam. Quero viver o folclore de forma livre, tal como ele nasce em mim. É essa liberdade que vejo em Renata.

Conversei uma vez com um músico de chamamé que me disse que o pior erro que podem cometer os novos músicos do estilo é querer tocá-lo como ele sempre foi tocado. “O que não evolui acaba morrendo”, ele dizia. Mas muitos preferem entender o folclore como um patrimônio imutável.
O folclore está sempre ligado ao nacionalismo, e esse está sempre ligado às regras, à rigidez política. E como a política, ele quer se aproveitar da imagem do povo. É um assunto delicado. Por exemplo, a cueca, que é um ritmo tradicional da zona central do Chile, foi proclamada a dança oficial do país durante a ditadura, e por isso os trajes da dança passaram a ser sempre nas cores da bandeira. E no fim, o que temos que conseguir é desmilitarizar o folclore, porque se eu quero fazer folclore não vou me vestir com as cores da bandeira, isso é uma estupidez. E as pessoas do campo que fazem o folclore não nasceram vestindo-se de branco, azul e vermelho. Quem vai tocar a cueca que se vista da forma que quiser! Por um tempo fui aluna de Margot Loyola (nota: compositora, música e pesquisadora do folclore chileno), e ela dizia que tinha que se reconhecer o hip hop como folclore chileno. Ela morreu no ano passado, bem velhinha já (nota: faleceu prestes a completar 97 anos), então as pessoas diziam que ela estava louca por causa da idade (risos). Mas essa é a coisa mais lúcida! Porque essa é a poesia mais vigente. O hip hop é o que está contando como é a vida no Chile de hoje, que está na rua, que tem essa poética do cotidiano. Então obviamente pode ser folclore chileno, por que não?

Claro. O folclore é a música que se comunica com as pessoas. É daí que vem o “folk” da expressão, afinal. Mudando um pouco o assunto: eu estive no Chile duas vezes, e foi uma dificuldade brutal encontrar discos à venda. Loja de disco mesmo, não encontrei nenhuma! Em uma ou outra livraria havia CDs, e só. E isso em grandes cidades. As pessoas já nem sabiam se existiam lojas assim ou não.
O formato físico já não faz diferença aqui.

Certo. E para você, uma artista com tantos discos, qual é o sentido de continuar lançando um álbum? O lado artístico é compreensível, claro, todos já sabemos. Mas um artista precisa sobreviver. E se as pessoas não compram um disco – um produto nada barato para fazer – qual é a razão de continuar editando-os?
É um fardo. Eu tenho seis discos editados. Ou melhor, publicados, porque não estão todos em catálogo. Uma noite dessas, eu me peguei pensando no que teria que fazer para reeditar todos, porque não posso pagar a reedição dos seis. E selo algum irá reeditá-los, porque aqui não se faz isso. Além disso, já não há mais lojas de distribuição nacional por aqui, acabaram todas. Como você disse, sou muito visual, por isso o físico me encanta. Por outro lado a cultura de internet é massiva no mundo, mas não é tudo. No Chile, pelo menos, existem pessoas que simplesmente não têm acesso à música pela internet, principalmente no universo mais popular chileno. Nesses lugares, a compra de um disco é uma oportunidade de educação. Estamos vivendo uma crise de educação no país. Então eu prefiro ter um disco físico, que possa chegar a essas pessoas. Se ficamos só com a internet, ok, mas assim a música chega apenas a quem já tem certo nível de educação. Ou veja o caso dos mais velhos, que só escutam discos físicos. Se a música do dia a dia não virar CD ou vinil ou cassete, eles vão continuar ouvindo músicas feitas até os anos 90 e só. Então a mim me interessa estar conectado com todo tipo de pessoa, e não só conectada com a web. E há outra diferença: a música que vem pela internet é geralmente escutada com fones de ouvido, em um espaço íntimo. A música física é um espaço familiar, ressoa pela sala, é compartilhada em uma festa. Por isso luto para ter discos.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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