O “Amor Geral” de Fernanda Abreu

por Renan Guerra

Encerrando 12 anos de silêncio, Fernanda Abreu lança um novo trabalho inédito, “Amor Geral” (2016), certamente seu disco mais íntimo e lírico. Depois do lançamento de “Na Paz” (2004), primeiro disco que Fernanda produziu através de seu próprio selo, Garota Sangue Bom, ela ainda colocou no mercado seu “MTV Ao Vivo”, em 2006, e de lá pra cá foram 10 anos de silêncio. Esse hiato, atrelado a sua não presença virtual, tornam a cantora uma ilustre desconhecida para toda a geração ‘internet’. Algumas pessoas até sabem que ela era uma das vozes da Blitz ou lembram-se de “Rio 40 Graus”, mas os mais novos não tem noção de que Fernanda é pioneira no uso de samples, nem que ela era uma das estrelas fundamentais de qualquer coisa que pudéssemos chamar de “música pop” no Brasil do começo dos anos 90.

É quase inacreditável pensar que uma artista que estava sempre a frente em questões de referências e experimentações no cenário pop tenha ficado tão receosa frente à internet e à incerteza do mercado fonográfico. Nesse sentido, “Amor Geral” é como o pagamento de uma dívida, pois esse olhar positivo de Fernanda precisava ser lançado sobre a atualidade. Não que seus 10 anos distante do mundo pop nacional tenham sido “fáceis”: durante esse tempo ela passou por um longo fim de relacionamento (“Foram uns cinco anos de crise no casamento (…). Foi desgastante, mas importante passar por aquilo”, ela contou por o EGO) e pela perda traumática da mãe, que com um tumor no cérebro, de difícil localização, ficou alguns anos em coma, e é como uma dedicatória a ela que vem a bela canção “Antídoto”, onde a cantora pede saídas para o sofrimento.

“Fiquei sem compor durante uns 5 anos”, contou ela em entrevista ao Zero Hora, mas, finalmente, a inspiração surgiu e ela assina nove das dez canções do álbum (a única que não traz sua assinatura é “Double Love – Amor em Dose Dupla”, dos velhos parceiros Fausto Fawcett e Carlos Laufer). É nessa busca da felicidade que “Amor Geral” se encaminha e, por isso mesmo, faz tanto sentido a jornada pessoal da artista, pois é nesses percalços que surge espaço para canções positivas que não soam piegas ou autocomplacentes. Assim, “Amor Geral” traz canções dedicadas a esses momentos íntimos, como “O Que Ficou”, para seu ex-marido Luiz Stein, ou “Valsa do Desejo”, para seu novo namorado Tuto Ferraz.

Em meio a confissões amorosas há aquilo que marca a trajetória de Fernanda: a mistura de ritmos como funk, rap, samba e pop, num amálgama que flerta com a sua estética dos anos 90, mas sem soar datado. Destacam-se aqui “Outro Sim”, poderoso single que fala de persistência em tempos de ódio (“Não é fácil aceitar alguém e ser aceito pelo outro também”, diz a letra, que poderia integrar o manifesto “Temperança”, lançado em janeiro pelo Scream & Yell); “Tambor”, ao lado do ícone Afrika Bambaatta e “Double Love Amor em Dose Dupla”, funk sensual sobre a liquidez das relações modernas. “Amor Geral” ainda abre espaços para diálogos com a nova geração, como os cariocas Qinho (com quem ela divide “Por Quem” e “O Que Ficou”) e Donatinho (que marca presença em “Saber Chegar”); além disso, traz múltiplos produtores (sete no total!), que trabalharam por mais de dois anos ao lado da cantora para construir essa sonoridade “quebra-cabeça” do disco.

No todo, “Amor Geral” versa sobre o amor como saída para as desilusões do nosso tempo. A própria Fernanda considera (em texto presente no release oficial) que “num momento em que o mundo parece andar pra trás, desprezando e atropelando o respeito às liberdades de expressão sexual e afetiva, às formas alternativas de família, às diferenças culturais e religiosas, à tolerância no convívio social e no trato pessoal, apresento “Amor Geral” como uma espécie de antídoto. Love is the new money!”. Nada resume tudo isso de forma tão certeira quanto a faixa título, espécie de vinheta final do disco, em que num canto falado, Fernanda reitera:

“E sabendo que vamos morrer, sentimos fome de viver
Não é essa a função do amor?
É não deixar esmorecer essa fome de viver
De sobreviver em meio à pancadaria da infelicidade à granel”.

Acompanhado do lançamento de “Amor Geral”, Fernanda pretende colocar todo seu catálogo nas plataformas digitais e correr atrás de todo o tempo desperdiçado. A cantora ficou à distância observando o ruir da lógica comercial das gravadoras e, até receosa, decidiu só agora lançar seus discos em formato virtual. Enfim, será sanada a falta de “SLA Radical Dance Disco Club” (1990) ou “SLA 2 – Be Sample” (1992) na web. Ficamos ainda na esperança de uma hora ela upar todos seus videoclipes em alta qualidade para o YouTube, já que Fernanda era uma estrela da MTV anos 90 e o mundo precisa ter acesso a essas preciosidades (inclusive ao look “bustiê de frigideiras” dela no primeiro VMB, em 1995). Chega mais, Fernanda!

“Amor Geral” por Fernanda Abreu

EU – O OUTRO
“Amor Geral” é um álbum fortemente autobiográfico onde o tema é o amor. Centrado não em mim, mas no outro. O outro como ponto de partida e o amor como ponto de chegada. Afinal são as pessoas que nos fazem sentir vivos e amados (ou desamados). É um disco sobre a vida onde o amor, que parece um tema banal, se afirma como a força fundamental que não deixa esmorecer a nossa fome de viver.

BRASIL/2016
No cenário de indiferença, cinismo, consumismo, intolerância e ódio que marca os nossos dias atuais, o amor é a mais bela e eficiente forma de resistência. A resposta mais poderosa. Num momento em que o mundo parece andar pra trás desprezando e atropelando o respeito às liberdades de expressão sexual e afetiva, às formas alternativas de família, às diferenças culturais e religiosas, à tolerância no convívio social e o no trato pessoal, apresento “Amor Geral” como uma espécie de antídoto. Love is the new money!

O DISCO
Produzido no eixo RJ-SP, urbano por natureza, o disco seguiu musicalmente esse sentimento do eu-coletivo. Convidei vários produtores (já que cada faixa pedia arranjos e sonoridades diferentes), músicos, compositores, técnicos e amigos para contribuírem na gestação do álbum. Como capitã do navio conduzi essa longa viagem (dois anos e meio de trabalho) ao lado dessa tripulação espetacular. Aprendi muito nesse processo riquíssimo!

LETRAS, RITMOS E MELODIAS
01 – OUTRO SIM (Fernanda Abreu/Jovi Joviniano/Gabriel Moura)
Produzida por Wladimir Gasper
Faixa de abertura que sintetiza o sentimento do álbum. Uma espécie de faixa-manifesto. Convidei Wladimir Gasper (pseudônimo de Pedro Bernardes) de quem sou fã do trabalho há tempos. Passamos muitas noites no seu estúdio na Lapa entre subgraves, vocoders, teclados e bons papos.

02 – TAMBOR (Fernanda Abreu/Jovi Joviniano/Gabriel Moura)
Produzida por Sergio Santos
“Alô Fernanda, sabe quem está aqui no Estúdio? Afrika Bambaataa! Vem pra cá!”. Foi assim que Sergio Santos começou a produzir essa faixa. Em seguida, eu já estava no meu estúdio Pancadão de frente para o pai do Funk Carioca, criador da clássica e emblemática música “Planet Rock”, o icônico Bambaataa. A faixa é uma homenagem ao Tambor, expressão primeira da cultura negra e da comunicação entre os homens.

03 – DELICIOSAMENTE (Fernanda Abreu/Alexandre Vaz/Jorge Ailton)
Produzida por Liminha
A letra saiu de primeira inspirada na delícia de se apaixonar. Fui pro Estúdio Nas Nuvens e Liminha começou a produção gravando o baixo e… pronto! A música já tinha uma cara. Mostrei pro meu amigo e DJ Memê, que por sinal acompanhou todo o processo do disco, e ficamos dançando o resto da noite.

04 – SABER CHEGAR (Fernanda Abreu/Donatinho/Tibless/Play)
Produzida por Liminha
Donatinho me mostrou essa música no camarim de um show. Da letra original restou o refrão. Gosto da melodia e do arranjo e, apesar da letra falar da imprevisibilidade e da falta de controle quando o assunto é amor, a “vibe” é positiva mostrando que tudo pode valer a pena… É só saber chegar!

05 – ANTÍDOTO (Fernanda Abreu)
Produzida por Rodrigo Campello
Numa das madrugadas tristes que passei pensando na condição terrível em que minha mãe se encontrava (num coma há anos), peguei o violão, deitada na cama, e comecei a tocar uns acordes que já vieram acompanhados de melodia e letra juntos. Nunca tinha me acontecido isso antes. Meio Chico Xavier. Assustada, liguei pro meu irmão, Felipe Abreu, parceiro e fiel escudeiro em todo o processo do disco pedindo sua opinião. Ele aprovou. 🙂

06 – O QUE FICOU (Fernanda Abreu/Thiago Silva/Qinho)
Produzida por T.R.U.E
Thiaguinho Silva, baterista e compositor me mandou uma melodia no piano que me inspirou de cara. Escrevi a letra pro Luiz Stein, que foi meu marido por 27 anos e é pai das minhas duas filhas. Qinho entrou na parceria e de quebra trouxe Gui Marques. Juntos produziram a faixa inaugurando a dupla T.R.U.E.

07 – DOUBLE LOVE AMOR EM DOSE DUPLA (Fausto Fawcett/Laufer)
Produzida por Sergio Santos
Única musica do álbum que não é de minha autoria. Quando Fausto e Laufer me mostraram essa música, achei que se encaixava como uma luva na onda do disco. Aliás, é impossivel fazer um disco sem meus parceiros mais constantes!

08 – POR QUEM (Fernanda Abreu/Qinho)
Produzida por Tuto Ferraz
Mandei a letra pro Qinho que dias depois me devolveu com a música. Mais uma letra tentando driblar a dureza de uma separação. Digerir, administrar e computar esse momento com amor e leveza é sempre um desafio. Tuto Ferraz, minha dupla na vida, acertou em cheio.

09 – VALSA DO DESEJO (Fernanda Abreu/Tuto Ferraz)
Produzida por Tuto Ferraz
Inspirada no meu momento amoroso e apaixonado, escrevi essa letra e comecei a criar a melodia a cappella dançando uma valsa em casa. Fui pra SP e pedi ajuda pro Tuto, que sentou ao piano e criou essa harmonia linda e densa que, somada ao arranjo de cordas, criou a atmosfera que eu queria.

10 – AMOR GERAL (Fernanda Abreu/Fausto Fawcett/Pedro Bernardes)
Produzida por Sergio Santos
Vinheta final, espécie de epílogo. Sintetiza a onda musical do disco misturando eletrônica com timbres e sons orgânicos. Como não podia deixar de ser, o samba aparece aqui, nas entrelinhas como parte do meu DNA. Samba urbano.

Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites You! Me! Dancing! e Bate a Fita

Leia também:
– “Na Paz” flagra Fernanda Abreu reverenciando o passado sem esquecer o futuro (aqui)

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