O melhor disco ao vivo de todos os tempos

por Marcelo Costa

O melhor disco ao vivo de todos os tempos (grifo compartilhado com The Daily Telegraph, The Independent, BBC, Q Magazine e a revista Rolling Stone, entre dezenas de outras publicações) completou 46 anos na semana passada (16 de maio de 2016). Após lançar a ópera rock “Tommy”, em maio de 1969, Pete Townshend decidiu se concentrar em um pedido de sua gravadora, que, para combater a febre de gravações piratas de shows que circulavam pelo mercado, queria um disco ao vivo oficial do The Who.

Para isso, Townshend escalou um membro da equipe do The Who para gravar os shows do segundo semestre de 1969, e, no final do ano, tinha em suas mãos 38 concertos da banda gravados. Nascia um problema, daqueles felizes, mas que competia com o tempo curto na rotina de uma banda em seu auge: como selecionar o melhor de 38 shows sendo que cada um deles ultrapassava duas horas de duração? Ouvindo todos, um a um?

Assustado com o tamanho da encrenca, o líder do The Who não pensou duas vezes: mandou queimar (!!!!) todas as fitas dos 38 shows e marcou uma nova sessão de gravação que deveria registrar os shows do fim de semana do dia dos namorados na Inglaterra: no sábado, 14 de fevereiro de 1970, o The Who se apresentaria diante de estudantes no refeitório da faculdade de Leeds, e no dia 15 tocaria no salão da prefeitura de Hull.

Na hora de escutar as fitas gravadas, Pete começou pelo show em Hull, mas as seis primeiras músicas não tiveram o baixo de John Entwistle, o que fez com que o guitarrista pulasse para a gravação de Leeds, e selecionasse dali as canções que iriam compor o tal álbum ao vivo. “Não discuti com ninguém o que colocaríamos no disco e não sei bem por que decidi não incluir nenhuma música do álbum ‘Tommy’”, relembra Pete em sua autobiografia. A capa foi inspirada em um bootleg dos Stones, “Live’r Than You’ll Ever Be“, lançado no final de 1969.

Gravado no dia 14/02/1970, “Live at Leeds” chegou às lojas três meses depois com apenas seis músicas e um quarto das duas horas da apresentação, o que bastou para ser saudado como obra prima por todas as publicações da época. “Nenhum de nós na banda estava preparado para a resposta esmagadoramente positiva a ‘Live at Leeds’. Tínhamos imaginado que ele seria um disco de entressafra, para acalmar fãs e gravadora, e ele nos catapultou a outro nível”, analisa Pete. Pequenos ajustes foram feitos em estúdio, e vale conferir esse trabalho de comparação entre um bootleg da apresentação e a versão final remixada por Pete.

Apesar de ser um disco avassalador, brutal e barulhento (“Que inspirou a revolução do heavy metal que logo se seguiu”, diz Pete), o retrato de uma banda em seu auge, “Live at Leeds” apenas atesta a grandiosidade do Who na época. Afinal chega a ser sintomático que o momento mais barulhento dos Beatles seja uma canção que tentava superar o Who (“Helter Skelter”, de 1968) e é sempre agradável lembrar-se da vitória mais emocionante de um time visitante sobre o dono da casa: os Rolling Stones sendo goleados em seu próprio picadeiro pelo Who em 1968 (não à toa, Mick Jagger reteve por 28 anos a gravação oficial de “Rock and Roll Circus”).

Atestado de grandeza, “Live at Leeds” é um dos registros mais incendiários do rock por exibir uma banda matadora quebrando absolutamente tudo que vê pela frente. Logo na abertura, com “Heaven and Hell” (canção de titulo apropriado cujo registro ao vivo havia sido lançado em compacto), o massacre da condução de bateria de Keith Moon, virando enlouquecidamente, briga por espaço com os riffs sujos de guitarra de Townshend e com a levada de baixo de John Entwistle. Quando a voz melódica de Roger Daltrey entra é como se uma clareira de luz do sol rompesse o céu cinza da tempestade sônica.

Para comemorar os 25 anos do concerto, o Who lançou em 1995 uma versão que estendia o tracking list de seis canções para quatorze, tirando do limbo momentos sublimes daquela noite em Leeds, como “I Can’t Explain”, “Happy Jack”, “I’m a Boy”, “A Quick One, While He’s Away” e “Amazing Journey/Sparks”. Em 2001 foi a vez de lançar a apresentação completa, contendo a integra do que o The Who tocava da ópera rock “Tommy” ao vivo na época (20 das 24 canções do álbum de estúdio). Em 2010, comemorando 40 anos do lançamento, um pacote luxuoso juntava a integra do show em Hull, para alegria dos fãs. O refeitório em que “Live at Leeds” foi gravado ganhou uma placa azul em 2006, definindo o local como marco histórico.

Conseguir captar a emoção de um show é algo complexo, mas o rock tem umas boas duas dezenas de grandes registros, dos quais merece citação “At Folsom Prison” (1968), de Johnny Cash; “Absolutely Live” (1970), do The Doors; “Live at Fillmore East” (1971), da The Allman Brothers Band; “Made in Japan” (1972), do Deep Purple; “Before the Flood” (1974), de Bob Dylan & The Band; “Alive!” (1975), do Kiss; “The Last Waltz” (1978), da The Band, “Live Rust” (1979), de Neil Young & Crazy Horse; e “It’s Alive” (1979), dos Ramones, fechando com “Live at Leeds” uma lista pessoal de 10 álbuns incontestes.

Este registro do The Who, porém, se destaca por flagrar uma banda absolutamente impecável pegando o ouvinte pelos ombros e chacoalhando-o sem parar. Não deixa de ser incrível o fato que o registro continue fresco, potente, melódico, tão pop e ao mesmo tempo tão violento quanto naquela noite de sábado, 14 de fevereiro de 1970, em Leeds. “Nossa intenção era simplesmente arrebatar os fãs”, diz Pete Townshend em sua autobiografia. A energia foi tanta que eles foram além e gravaram o melhor disco ao vivo de todos os tempos… 46 (54) anos atrás.

O tempo passa, os grandes discos ficam.

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

Leia também:
– Pete Townshend: Até deuses da guitarra têm dúvidas, e erram, e seguem em frente (aqui)

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4 thoughts on “O melhor disco ao vivo de todos os tempos

  1. Mac, só uma correção: “Tommy” não é tocado na íntegra. Ficam de fora “Cousin Kevin”, “Underture”, “Sensation” e “Welcome”.

  2. mac, me permita dar pitaco em sua lista pessoal e incluir dois discos maravilhosos: eric clapton´s rainbow concert e 4 way street (c,s,n & y). e alfinetar: pq nao temos nenhum disco nacional ao vivo com relevancia? eu pensaria no Cantoria 1 e 2 e no Enquanto a tregua nao vem, da Plebe. mas concordo com vc, mesmo na versao compacta o live at leeds é o mais fodao de todos! uma abraço!

  3. Pitacos oportunos (lembrei do “Last Waltz”!) e baita cobrança massa, Bruno! Eu incluiria chutando, assim de cabeça, num Top 10:

    – “Opinião”, de Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti (1965)
    – “Gal Fa-Tal” (1971)
    – “Doces Barbaros”, Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia (1976)
    – “Transversal do Tempo” (1978), Elis Regina
    – “O Tempo Não Para” (1988), Cazuza
    – “Música para Acampamentos” (1992), Legião Urbana
    – “RDP ao Vivo” (1992), Ratos de Porão
    – “Filmes de Guerra, Canções de Amor ” (1993), Engenheiros do Hawaii
    – “Vamô Bate Lata” (1995), Os Paralamas do Sucesso
    – “Bebadachama” (1997), Paulinho da Viola

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