Entrevista: Cuatro Pesos de Propina

por Leonardo Vinhas

Da série “peculiaridades uruguaias”: só no país austral uma banda de roupagem predominantemente ska traria um ideário que mistura filosofia oriental, queixumes punk e frases imperativas de autoajuda. Esse é o caso da Cuatro Pesos de Propina, ícones de um pequeno, mas fiel culto que permite à banda viver se autogestionando com relativo sucesso desde 2004.

A bem da verdade, o ska serviu de base para seus primeiros anos. Gradativamente, o octeto de Montevidéu foi abrindo o leque em seus três discos de estúdio. “Surcando” (2013), último álbum de inéditas, é bem mais variado e sólido que o debutante “Se Está Complicando” (2007), e mesmo que o antecessor, “Juan” (2010). Apesar dessas diferenças, em todos eles se nota a vocação pop e festiva de suas composições, praticamente todas assinadas pelo vocalista e violonista Diego Rossberg, único argentino da banda. Também se nota o ideário em que se busca uma alegria genuína, e não entorpecida por festas, e isso envolve também o reconhecimento da dor e da tristeza. Atípico, para dizer o óbvio.

Ao vivo, a banda ganha em volume e dinâmica sonora (quase todos cantam, e bem, e há muitas trocas de instrumentos, com o baterista Tato Bolognini tocando flauta, o guitarrista Gastón Puente pegando uma tuba, e por aí vai). Por isso, “Morto pero Vivo”, lançado em CD e DVD em 2015, é um registro mais fiel da personalidade da banda, e talvez a melhor maneira de entrar em contato com seu trabalho pela primeira vez. Que o digam os brasileiros que viram a pequena turnê da banda em maio de 2016: em três shows no Rio Grande do Sul (Pelotas, Garibaldi e Porto Alegre) e um na capital paulista, o grupo conseguiu colocar brasileiros e uruguaios aqui residentes para dançar, pogar, e até cantar juntos.

Méritos sejam dados também a Francisco Fattoruso, notável baixista uruguaio que produziu “Surcando” e “Morto pero Vivo”. Ele soube fazer mais que “profissionalizar” a mixagem e masterização – na verdade, deu a banda uma sonoridade que marca um claro “antes” e “depois”, e que certamente será parâmetro para o que vem pela frente. Após o show paulista, Diego Rossberg recebeu o Scream & Yell no camarim – possivelmente, o camarim mais silencioso e tranquilo que já vi em meus 17 anos de jornalismo musical. Surpreendemente calmo e circunspecto para quem, minutos antes, exibia uma energia intensa no palco, o abstêmio compositor comentou a autogestão da banda, seu ideário, suas propostas musicais e a experiência brasileira.

O último lançamento de vocês é um CD e DVD, “Muerto pero Vivo”. Em tempos de YouTube, e com todos os altos custos para a produção de um DVD, qual é a razão para vocês terem escolhido esse formato?
Bem, é um material que as pessoas compram para apoiar a banda, porque sabem que o Cuatro Pesos de Propina é uma banda que gerencia a si própria. Nós nos demos o prazer de poder resumir o que a banda é ao vivo, porque nós temos três discos de estúdio, só que ao vivo é nosso ponto forte. Nosso objetivo era mostrar isso, não só com um bom show, gravado em um lugar muito bonito de Montevidéu, que é o Teatro Verano do Parque Rodó, mas também com entrevistas com a banda, imagens de arquivo…

Já que você tocou no assunto: é possível viver de música sendo um artista independente no Uruguai. Pergunto por que outros artistas de seu país que deram entrevistas ao nosso site dizem que é praticamente impossível…
Não, não é. Em Cuatro Pesos, cada um tem sua profissão. Quase todos ligados à música, muitos professores. Mas é difícil, por isso é necessário tentar ir para outros mercados, como Argentina e Brasil, para expandir um pouco.

E como foram as outras datas da turnê brasileira?
Foram muito boas, uma surpresa para nós! Você viu o que aconteceu aqui no Sesc [Pompeia]? Nunca tínhamos vindo, não sabíamos nada, e tinha gente cantando as letras. E isso é graças à internet. Então está ótimo!

A mistura de sons era apenas insinuada no primeiro disco. “Juan” abriu um pouco mais, porém “Surcando” foi um grande salto nesse aspecto. Um quarto disco de inéditas vai procurar expandir essa linha? Já existe material novo sendo composto?
Não se sabe. É preciso que se vá testando como estão as vontades, e também nós temos a necessidade de não repetir fórmulas. Em “Surcando” estávamos atentos ao que necessitava cada canção e as levávamos para onde acreditávamos que teríamos que levá-las.

Entre vocês, o material recente os deixa mais satisfeitos?
Alguns dos companheiros meio que renegam os anteriores pela maneira que soam e como foram gravados. Eu, como autor das canções, gosto de tudo: do novo e do velho. O que sim, acontece, é que as letras do material mais novo refletem um pouco mais o estado em que estamos vivendo, então elas são cantadas com a energia do presente. Mas tudo é lindo.

Existe uma melancolia muito evidente, mas também se observa a forte vontade de viver. Esse paradoxo está em quase todo seu trabalho.
Isso é algo meu. Nesse caminho, eu tento conectar-me com meu ser e refletir a essência dessa energia única, e para isso é preciso basear-se em todas as mágoas que são trazidas, inclusive de outras vidas, então existe, sim, melancolia e tristeza, mas no fundo com a convicção de que cada um é parte de uma unidade e é nessa direção em que vamos. Inclusive com fé.

“Dor” deve ser a palavra mais frequente nas suas letras. Você fala muito em reconhecer e aceitar a dor. Isso é necessário para viver e seguir em frente?
Sim, claro. A dor é como o amor: é parte de Deus. Então, trata-se de iluminar cada vez mais essa escuridão, esse medo, essa dor, para que ela se unifique com a luz. Mas na hora de refletir o que se acontece, é necessário refletir sobre a vida. Não é como se… Veja, há uma letra [da canção “No Trate de Entender] que diz (cantando): “hay tristeza y alegría en mi…” Negar isso seria negar a si próprio.

Nesse aspecto espiritual, e também no musical, você vê outras bandas uruguaias que possam estar no mesmo plano que vocês? Há “bandas irmãs” de Cuatro Pesos, digamos assim?
No que se refere a conteúdo e letras, me parece que ninguém. Quanto à música e ao formato de banda, pode ser. La Vela Puerca, No Te Va Gustar, Once Tiros…

Hoje vocês tocaram aqui “O Tempo Não Pára”, de Cazuza, com a letra vertida para o espanhol pela Bersuit Vergarabat. Então é justo perguntar se a música brasileira é uma influência.
(Enfático) Não.

De modo algum?
De modo algum. Veja, meu pai me ensinou bossa nova ao violão quando eu estava aprendendo, mas não posso dizer que foi uma influência. É que a letra dessa canção me parece tremenda, de uma intensidade enorme, e, por mais antiga que seja, segue atual. Então [inclui-la no repertório] era como um agradecimento por estar aqui, e para citar a essa pessoa tão importante que foi o Cazuza. No Uruguai ele não teve muita repercussão, e mesmo nas cidades do Sul o pessoal não reagiu tanto à canção. Aqui em São Paulo, acho que foi onde vi o máximo de pessoas agitando com esse som. Mas é uma grande canção. Grande canção!

Como a letra está vigente, vamos falar um pouco da situação política. Ainda que Cuatro Pesos nunca tenha se posicionado de forma partidária, sempre abordou questões e posturas do dia a dia. E tanto aqui n o Brasil como nos países vizinhos, parece estar vindo uma onda neoconservadora com muita força.
Tudo vai por aonde tem que ir. Antes me preocupava mais com isso, e agora não é que não me preocupe, mas são ciclos, e somos assim, ninguém vai poder nos dar a solução. Nem a direita nem a esquerda nos deram. É necessário propiciar a si próprio para apontar soluções. Claro, há políticas que se propõem a ajudar mais, porém me parece que a salvação não está aí.

– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.

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