Crítica: “Hopelessness”, o desolador grito político de ANOHNI

por Renan Guerra

Antony Hegarty já tinha uma sólida carreira ao lado do “The Johnsons”, com quatro discos, entre eles o premiado “I Am a Bird Now” (2005), e colecionava inúmeras participações e colaborações com artistas como Björk, Marina Abramovic e Hercules & Love Affair quando, em meados do ano passado, resolveu assumir sua persona ANOHNI (assim mesmo, estilizado em letras garrafais) falando abertamente sobre sua transsexualidade e prometendo um disco ao lado de Oneohtrix Point Never e Hudson Mowhake, dois nomes essenciais da atual música eletrônica experimental.

Indicada em 2016 ao Oscar de melhor canção original, por “Manta Ray”, ao lado de J. Ralph, a cantora fez um explícito boicote ao evento e passou a falar cada vez mais sobre suas escolhas políticas e sobre a importância disso em suas atitudes artísticas. Com isso, suas músicas, que anteriormente falavam sobre amores, dores e dúbias sexualidades, gdanharam fortes contornos sociais, como em “4 Dregrees”, canção dançante e explosiva que versa sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas lançada em solidariedade a Conferência do Clima de Paris, a COP21, que aconteceu em dezembro de 2015.

Estava selado: a poesia lancinante de ANOHNI lançava-se sobre a política mundial.

O cenário se tornou ainda mais assombroso com o lançamento de “Drone Bomb Me”, um doloroso relato de uma menina atingida por mísseis lançados por drone, dolorosamente estampado nos olhos lacrimantes de uma entregue Naomi Campbell, protagonista do videoclipe da faixa.

O primeiro álbum de ANOHNI, “Hopelessness”, lançado no início de maio de 2016, a leva por camadas sonoras que ela já havia testado em suas colaborações com Björk e Hercules & Love Affair, porém aqui utilizando experimentos mais distintos, que contrapõem sua voz orgânica (quase lírica) com a frieza matemática das batidas eletrônicas. Essa sonoridade desconexa e complexa advém da produção dedicada de Oneohtrix Point Never e Hudson Mowhake, que também colaboraram em algumas composições do disco.

O Guardian classificou “Hopelessness” como “o grande álbum de protesto dos últimos muitos anos”, o que já ratifica a dimensão desse trabalho, porém há uma clara distinção entre aquilo que chamávamos de álbum de protesto lá nos idos dos anos 60/70 (discos repletos de canções que utilizavam memórias do passado e do presente na tentativa de mudar / melhorar o futuro) e isso que ANOHNI nos apresenta agora, e que pode ser definido em uma palavra: esperança. “Hopelessness” é árido, doloroso, completamente desesperançado.

A desesperança é exposta de forma direta na faixa “Obama”, um delicado poema que fala sobre a decepção com os grampos e as espionagens norte-americanas, expostas no escândalo do WikiLeaks. Esse ‘big brother’ norte-americano acaba permeando toda a trajetória do disco, costurando temas como tortura, opressão e preservação ambiental. Essa persona que observa todos os nossos passos ganha vida ainda sobre o olhar ironicamente paternal cantado em “Watch Me”, que fala sobre um “daddy” que nos observa enquanto vemos pornografia ou em nossas conversas familiares, numa sanha de nos proteger do terrorismo ou dos abusadores infantis.
Essa tensão e medo constante de nosso tempo é captado de forma certeira pelos versos de ANOHNI e, especialmente, pela produção delicada. Cada beat desconstruído e distorcido nos dá a gama desse cenário inóspito. E ANOHNI não nos apresenta um olhar complacente, do tipo “eles são nossos algozes e nós meras vítimas indefesas”: não, ela acerta no cerne das “nossas culpas” quando pergunta “How did I become a virus?”, na faixa-título do disco. E, num desânimo despiedoso, entoa na penúltima faixa: “I don’t care much about you / I don’t give a shit what happens to you / Now we blew it all away / Hopelessness / I feel the hopelessness.”

No todo, os personagens que permeiam “Hopelessness” são tão distintos e, mesmo assim, tão interconectados, desde o presidente norte-americano até os torturadores de Guantánamo, todos sob esse manto de proteção e segurança cada vez mais falho, interposto a nossa constante e considerável “virtualização”. Isso tudo é resumido na gloriosa “Marrow”, que encerra o disco relembrando que todos, agora, somos norte-americanos. Não importa se brasileiros, chineses ou tailandeses, a cultura dominadora nos suga e nos incorpora nesse círculo de autodestruição.

E, no final das contas, é como se este fosse um disco para dançarmos sobre os escombros. Sem nenhuma saída. Atordoados. Dancemos.

Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites You! Me! Dancing! e Bate a Fita

Leia também:
– Antony exibiu em São Paulo (em 2015) um espetáculo muito pessoal (aqui)

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