O novo disco político de PJ Harvey

por Marcelo Costa

Polly Jean Harvey está de volta. E continua afiada. Se “Let England Shake”, seu oitavo álbum, lançado em 2011 e vencedor do Mercury Prize (PJ é, até hoje, a única artista a ganhar duas vezes o importante prêmio britânico, sendo que na segunda, em 2011, ela derrotou Adele), debatia como a Inglaterra havia se envolvido em diversos conflitos internacionais desde a Primeira Guerra Mundial (e toda dor, traumas e sujeiras resultantes da decisão), o recém-lançado “The Hope Six Demolition Project” amplia o universo de desesperança de Polly Jean, que agora narra histórias dramáticas das viagens que fez para três lugares: Kosovo, o Afeganistão e Washington DC.

O álbum “The Hope Six Demolition Project” é um amplo projeto artístico que ainda conta com um livro de poesias, “The Hollow of the Hand”, que PJ escreveu entre 2011 e 2014 durante as viagens acompanhada do cinegrafista, fotógrafo de guerra e parceiro de projeto Seamus Murphy, um documentário, que ainda será lançado, e sessões de gravação transformadas em objeto de arte: o álbum foi composto e gravado em sessões abertas ao público como uma instalação artística da Somerset House, em Londres. Durante 45 minutos por dia, o público assistia, através de um vidro, PJ e os produtores Flood e John Parish além dos músicos convidados trabalharem no álbum.

O registro aconteceu entre 16 de janeiro e 14 de fevereiro de 2015, com PJ recebendo o apoio de seus colaboradores tradicionais: John Parish tem participação ativa no disco tocando vários instrumentos enquanto Mick Harvey (Bad Seeds), Terry Edwards e James Johnston (ambos do Gallon Drunk), Mike Smith (colaborador de Damon Albarn no Gorillaz e outros projetos) e Alain Johannes (QOTSA) participam de várias faixas do disco. A própria PJ se desdobra tocando guitarra em cinco das 11 canções, sax em quatro, violino em “Near the Memorials to Vietnam and Lincoln” e harmônica e auto-harp em “The Ministry of Social Affairs”.

O resultado deste processo diferenciado é, musicalmente, um dos melhores álbuns da carreira de Polly Jean Harvey (e olha que a competição é dura), ainda que a temática (polêmica) das canções esteja dividindo opiniões, muito porque a compositora optou por reportar (em um sentido próximo do jornalismo) os fatos que ouviu e observou, muitas vezes da janela do carro, muitas vezes nas próprias palavras das pessoas que a guiavam nesse “tour turístico”, como se você, caro leitor, a levasse para um passeio por sua cidade, e fizesse comentários sobre algo que ambos estavam vendo, e isso tudo retornasse, tempos depois, como uma canção (crítica).

É mais ou menos isso que acontece em “The Community of Hope”, segundo single do álbum e primeira faixa do disco, uma canção diretamente ligada ao título do projeto, por flagrar PJ e Seamus Murphy sendo conduzidos pelo famoso repórter Paul Schwartzman, do The Washington Post, aos lugares mais sombrios da capital dos Estados Unidos. “Passei três horas com ela no carro e não sabia quem era ela”, relata Schwartzman em texto escrito em março deste ano, 20 meses depois do “passeio”, no momento em que ele recebe o vídeo de “The Community of Hope”, que abre com uma imagem sua, de óculos, no espelho retrovisor do carro.

A letra de “The Community of Hope” foca na decadência do distrito Ward 7, em Washington, especialmente sobre as falhas do programa Hope IV, que foi criado com o intuito de revitalizar habitações públicas, demolindo e reconstruindo loteamentos habitacionais do pós-guerra seguindo os princípios do Novo Urbanismo para a indústria imobiliária. “Esse forte programa de habitação de reconstrução de comunidades se tornou vital”, explica o urbanista Douglas Farr no livro “Urbanismo Sustentável”, mas, por outro lado, há fortes críticas de gentrificação tanto quanto de privilégios com base na capacidade de cada região para gerar renda para a cidade (ou seja, se não gera renda, recebe menos privilégios, o que soa igual a abandono).

Desta forma, o passeio de PJ por Washington DC guiado pelo jornalista Paul Schwartzman flagra um bairro absolutamente decadente: “Esta é apenas a cidade das drogas”, canta Polly Jean em certo momento além de descrever moradores de rua e drogados como zumbis e as escolas do bairro como chiqueiros (“shit-hole”). Ao ouvir as primeiras frases da canção (“Aqui está o projeto de demolição Hope IV, que se estende até Benning Road, conhecida como ‘o caminho da morte’. Pelo menos é o que me disseram”), Schwartzman, que na época estranhou o silêncio da artista sentada no banco de trás do carro, observou: “Ela estava prestando muita atenção durante o nosso trajeto”.

Como era de se esperar, a comunidade local não recebeu bem a canção, e vale muito prestar atenção nos comentários do texto de Paul Schwartzman no Washington Post, como este: “Privilegiada estrangeira branca, musicista e poeta, é levada para conhecer a pobreza de um bairro pobre de Washington DC por um privilegiado jornalista branco. Ela transforma a experiência em canção. Ele em uma peça para o caderno Estilo de Vida. Ambos ganham dinheiro. Vergonhoso”. Outra pessoa observa: “Se uma pessoa do bairro tivesse guiado PJ nesse tour, provavelmente ela não teria comparado um drogado com zumbis, porque eles têm nome e pessoas que os amam”.

Talvez nesse segundo comentário possa se vislumbrar um fragmento interessante a discutir: PJ não conta o que viu, mas sim o que pessoas viram e falaram, e isso diz muito sobre a sensação de se viver em uma falsa idealização de comunidade que apenas finge ignorar todas as diferenças de classes, credos e cores. Neste ponto, PJ coloca Schwartzman na berlinda, porque é o olhar dele que narra a história que ela canta. E, assim como ele, milhares de pessoas observadoras do mundo não ultrapassam as manchetes de textos no Facebook e em capas de jornais, mas se dão ao direito de, apenas através destas manchetes, terem certeza de que entendem o mundo, como um todo, e aquele fragmento de “verdade” em particular.

Por isso é importante ressaltar: não há um tom acusatório em “The Community of Hope”, e sim alguém anotando o que outra pessoa descreve do cenário que observa de uma cidade que ainda irá inspirar um bloco de canções do álbum: “River Anacostia” é sobre o “rio esquecido”, como é apelidado o Rio Tietê deles, que inicia seu curso no Condado de Prince George’s, em Maryland, percorrendo um trajeto de 13,50 km até à cidade de Washington DC. A canção abre com um lamento vocal blues e vai crescendo sinuosamente até encontrar “Wade in the Water”, um spiritual tradicional (já gravado por Odetta, Bob Dylan, Mavis Staples e Tedeschi Trucks Band, entre muitos outros) que evoca a época em que os escravos entravam no rio para despistar os cães farejadores (algo impossível de ser feito hoje em dia).

Entre as melhores canções do álbum estão “Near the Memorials to Vietnam and Lincoln”, que observa a movimentação cotidiana de trabalhadores e crianças num parque que homenageia a guerra sob um arranjo suntuoso que une guitarra, violino, acordeom, mellotrom e harmônica; já “The Ministry of Defence” é conduzida por uma tonelada de riffs de guitarra e saxofone que tentam desenhar o caos de um prédio bombardeado. PJ lista tudo o que vê (“grafites em árabe, merda humana, seringas, laminas de barbear, uma mandíbula, um fantasma de uma menina que corre e se esconde”) para concluir: “É assim que o mundo vai acabar”. A narrativa trágica ganha sequencia na densa / tensa “A Line in the Sand”, que abre com uma frase forte (“Como parar os assassinatos? Já deveríamos ter aprendido”) para contar: “Eu vi uma família comendo a pata congelada de um cavalo”.

Conduzida por um grande arranjo de sax (base e solo), “Chain of Keys” é um blues arrastado que flagra uma mulher de Kosovo que guarda as chaves das casas dos vizinhos que partiram, caso eles voltem (“Os vizinhos não vão voltar”, diz a letra). Outro dos destaques do disco, “The Orange Monkey” soa como uma faixa do Arcade Fire fase-“Neon Bible”, da letra cantada em coro galopante no começo até o coro vocal na segunda metade. “Medicinals” é talvez a canção mais PJ Harvey do álbum, e contrapõe a sabedoria indígena (esquecida) dos remédios feitos com plantas medicinais com “um novo analgésico para os povos nativos” que entorpece uma torcedora do time Washington Redskins numa cadeira de rodas: o álcool.

“That’s What They Want”, um bluezaço do gaitista Jerry “Boogie” McCain lançado em 1956, introduz e funciona com base para “The Ministry of Social Affairs”, que mantém o tema original da canção de McCain como foco: a sedução do dinheiro (“Money honey”). PJ usava a passagem da Bíblia em que Jesus expulsa os cambistas do Templo como que dizendo que devemos fazer o mesmo com os políticos que, hoje em dia, não ajudam as pessoas. O arranjo evolui com uma linha insinuante de sax, que entorta o arranjo e leva o ouvinte, cambaleante, para o trecho final do álbum, aberto com “The Wheel”, primeiro single do disco, que sugere que, tal qual uma roda, as guerras são um ciclo fadado a acontecer sempre (para nosso desespero). Na letra, PJ observa quatro crianças brincando em balanços de um parquinho abandonado e as imagina desaparecendo diante da chega dos 28 mil soldados sérvios.

Para fechar “The Hope Six Demolition Project”, uma coda tristíssima chamada “Dólar, Dólar”, a frase que PJ, de dentro do carro, ouve uma criança pedir e, sem que possa fazer algo enquanto observa ela sumir no retrovisor, atesta: “Todas as minhas palavras foram engolidas”. Se a cantora abre o disco como a passageira de um carro que apenas anota as observações de seu guia, sem emitir juízos, na última canção do disco ela “participa” ativamente da ação, pois ainda que não faça gestos, se sente tocada pela imagem, pela voz que ouve gritando “Dólar, Dólar”, e se sente impotente diante da cena, que ela irá carregar dolorosamente consigo dali em diante.

Em seu segundo álbum político (seguido), PJ salta 100 anos para atestar que as atrocidades da Primeira Guerra Mundial que ela pesquisou e transformou no tema central de “Let England Shake” infelizmente continuam acontecendo nos dias de hoje, ainda que muita gente finja não ver – não à toa, alguns críticos apelidaram o disco de “Let American Shake”. De maneira jornalística, “The Hope Six Demolition Project” descreve o cenário de um mundo doente, refém do capitalismo cego, da falta de humanidade das pessoas e da crueldade de governantes. É um disco tão potente musicalmente quanto doloroso tematicamente, lançando no ar uma porção de questões que merecem discussão e reflexão. É possível ansiar mais de uma obra de arte?

– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne

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