Psicodália 2016: Viagem ao útero do Psicodália ou como dançar uma revolução

Texto por Cristiano Castilho
Fotos por Walter Thoms

Me chame de Pulga. Daqui a pouco você vai saber mais sobre mim, ou não, mas o que interessa agora é esse sujeito cabeludo e chapado tocando “Dê Um Rolê” em frente ao laguinho. “Não se assuste pessoa/ se eu lhe disser que a vida é boa”. O engraçado é que você sente quando o Psicodália começa. Acabou de começar. Porra, o cabeludo está tocando Novos Baianos chapado pra cacete. Seus óculos escuros querem cair do nariz, e há os dedos sujos de terra e os pés encardidos num sol peludo de sábado à tarde. Poderia até ser chamado de mendigo caso estivesse tentando ser quem é em Curitiba ou em outra cidade inventada, mas aqui é só mais um cara em comunhão com uma felicidade estranhamente estendida, que não te deixa de ressaca tampouco te cobra quando não está presente.

“Boa tarde, pessoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaal”, anuncia uma jornalista rechonchuda que surge do nada com seus clichês engatilhados: câmera na mão, fones no ouvido, colete preto para bloquinhos e canetas e uma falta de sensibilidade maior do que a bunda do piá que acaba de entrar no lago. “Vou pedir para vocês gritarem ‘Psicodália’ bem alto, tá?” Os violões silenciam, o baseado quase apaga, alguns riem do desconforto. Há um pequeno embate entre nosso violeiro-fã-de-Novos-Baianos-potencialmente-mendigo e a repórter, que tem jogo de cintura quase suficiente. A gravação antinatural acontece. Há outra realidade imensa gritando na sua frente e o que você quer é se submeter ao óbvio vomitado? Pensei em dizer isso a ela depois, mas fui dar um rolê porque eu sou Pulga, sou amor da cabeça aos pés.

Babava por uma cerveja. Uma Brahma de R$ 4,50 geladinha servida num copinho estilizado do em que dois bichos, o que parece ser um urso e um gato, e dois humanos, dividem instrumentos e cumprimentos. Sou Pulga e quero ser mais bicho por causa do copinho. Qual a porra do problema em tomar banho frio? Qual o problema em não tomar banho? “Meu corpo, minha sentença”, ouvi alguém falar no caminho até aqui. No bar ganho uma atenção inesperada, de novo. É um serviço, mas há um acordo. Saca só: quem te serve é a mesma pessoa que canta Novos Baianos. A mesma que não tolera a violência, o sexismo, o preconceito, o Beto Richa, o Alckmin, a PM, o Cunha. É a mesma que toma cerveja. O que ela precisa fazer é passar o laser de uma maquininha que parece um pequeno aspirador de pó em seu cartão magnético, entregar sua bera, dizer ‘obrigado’ e ‘próximo’ nesta ordem, isso quando a conversa não engata pra valer e cria uma fila da qual ninguém reclama.

Pego minha brahminha e com V. e M. sigo em qualquer direção. Passa um pouco do meio dia, e os melhores shows irão acontecer à noite. Há diversos campings na Fazenda Evaristo, em Rio Negrinho, um vale com a temperatura de uma panela de pressão no interior de Santa Catarina: Secos & Molhados, Os Mutantes, Camping dos Jovens. É engraçado você ouvir pessoas perguntando, “ei, Pulga, onde cê está morando”?, para se referir ao lugar em que você armou a barraca. As voltas à toa com V. e M. servem para ambientar a cabeça, fugir do sol, sentar um pouco na grama e encontrar uma poeta.

Quem vejo ao lado do Palco do Sol é a Alice Ruiz, viúva de Paulo Leminski. Veste roupas leves, tem o cabelo cinza embolado e fuma cigarro de palha. Alice venceu dois prêmios Jabuti de Poesia. Sua fama de arisca desvela-se quando um amigo de um amigo dela retoma cumprimentos formais, talvez em sinal de respeito exagerado. “Nós já fomos apresentados”, assevera Alice, tragando em seguida. Ela repergunta meu nome, “Como é mesmo?”, e eu repito: “Pulga, meu nome é Pulga.” Penso que seria bacana dizer que gosto muito do seu poema tal, mas nunca ali Alice Ruiz. Só Leminski: “Ameixas/ame-as ou deixe-as”.

As nuvens aglutinam-se num céu cinza aparentemente impenetrável, mas não chove nunca. Vim de excursão e paguei R$ 420 no ingresso, por seis dias de Psicodália, para ver outras 4.999 pessoas. Economizei o ano todo e não acho caro por aquilo que o festival me proporciona, dentro e fora de mim. Trouxe lonas pretas e alaranjadas pensando na possibilidade da chuva. Com V. e M., tomo um comprimido rosa em forma de porquinho e vamos em busca de outra brahma para então assistir ao show dos Vulcanióticos, um grupo de música-teatro cuja mensagem e performance são avassaladoras. Já flutuando em frente ao palco, vejo o fim do show-manifesto: todos os integrantes pelados e cobertos com uma espécie de lama cinza. Eles se abraçam, nós nos abraçamos e as luzes brilham como uma Sirius no céu limpo. Estamos muito felizes.

Esqueci de contar que à tardinha rolou um campeonato de caipirinhas, para “degustadores e jurados.” Também tem disso, o imponderado somado à criatividade quase o tempo todo. Perdoem a falta de cronologia, mas o tempo no Psicodália volta a ser apenas uma convenção. Logo depois de encontrar Alice Ruiz e pegar mais uma brahminha, estávamos exatamente no meio dos dois palcos principais. À esquerda, a Nação Zumbi passava o som. À direita, a Banda Mais Bonita da Cidade fazia seu show. Parecia o contrário. Poder versus afetividade barata, manifesto de caranguejos dançantes antenados contra condescendência. Nem tínhamos tomado o porquinho ainda.

Acaba o show da Nação Zumbi e quero muito comer um pão com ovo, tomate e queijo. R$ 6,50. Eu trouxe comida. Fiz sanduíches no pão de forma branco para economizar. Estou desempregado e tal. Mas nunca devemos passar vontade, no Psicodália e na vida. Quem me atende é o bom e velho Felipe. Lembro que ele também trabalhou no festival do ano passado. Cabelos compridos desgrenhadinhos, pele cor de laranja e uma calma invejável. Peço mais uma brahminha antes de ir observar a noite em frente ao lago, onde vagalumes iluminam pontualmente o som ao redor.

De novo o tempo. Num evento como esse, em que sua existência é celebrada, há um delicioso conflito: não se sabe ao certo quando umdiaacabaeoutrotermina. Porque, quando não há música, há pessoas gritando por gritar, celebrando Cartola com flautinha e violão, pintando a cara como índios que vão para uma missão só de paz. Sentimos o último ronco do porquinho antes de assistir ao show de Francisco el Hombre, banda cujo vocalista tem a voz de um Geddy Lee apaixonado por Brian Molko. Tocam um cover de Manu Chao, e fico aficionado pelo guitarrista de vestido verde. Dou descanso aos meus all-stars velhotes e deito no saco de dormir. A barraca tem teto, mas consigo ver estrelas.

2

Bate 9 horas e o calor faz todos saírem de suas tocas em forma de iglu como ursos que acabam de repente seu período de hibernação. O despertar da comunidade, mais ou menos na mesma hora, cria todo um ritual. Neste dia, a Rádio Kombi toca o “Yellow Submarine” de cabo a rabo, então tomo banho frio no escuro cantando “Only a Northern Song.” Meu nome é Pulga e meu beatle favorito é o Harrison. Fiz um amigo na fila do banho. Ele me emprestou um cigarro e conversamos enquanto limpávamos as remelas. Só iria reencontrá-lo dois dias depois, no caminho para uma brahminha. Nos abraçamos como se sentíssemos saudades daquilo que não aconteceu. No caminho de volta à barraca, homens sem camisa e meninas de biquíni equilibravam shampoos e sabonetes e calcinhas e cuecas e toalhas debaixo do braço, enquanto a tirolesa abria um zíper no céu azul lá de cima: “zzzzzzzzzzhhhhhhhhhhiiiiiiiiiuuuuu.”

V., M. e eu colocamos um papel na boca às 17h30. Meia hora depois estávamos no cinema do Psicodália, que exibia uma mostra de um britânico chamado Norman McLaren. Sentado em um engradado de cerveja azul virado de ponta-cabeça, vi um vídeo em que os passos rítmicos de um sapateador se transformavam em som de videogame. Quadradinhos coloridos se uniam e se dispersavam conforme a música, num cenário que mudava de cor a todo instante. Depois, uma animação com um ator de verdade refletia sobre a Guerra Fria com a ajuda de uma flor alaranjada e sapeca. Em outro filme, um casal de dançarinos transcendia, e deixava rastros de seus passos com a ajuda de uma música belíssima. V. estava no chão olhando a lona branca do cinema, eu queria ser Gene Kelly e Pina Bausch ao mesmo tempo e M., incrédulo, se perguntava “que que é isso”?

O céu começava a se mexer quando um trator pilotado por um garoto com cara de imigrante polaco passou por nós num dos muitos caminhos da fazenda. Cinco meninas nos convidaram para participar da corrida lisérgica-aleatória. Um rapaz muito insistente seguiu o veículo numa subida desumana e com a nossa ajuda se atracou à carreta. Aplausos!

Pouco antes do pôr do sol dou um beijo numa palhaça. Em frente ao lago, deito na grama e olho para o céu. O que vejo é um buraco azul lutando contra nuvens cinzas. Quando criança, me ensinaram a ver carneirinhos em nuvens fofas e branquinhas, agora vejo formas no negativo disso. É o que está atrás da nuvem que realmente importa.

Tento me concentrar naquele azulzinho, mas um sujeito com sotaque carioca parece ter caído do disco voador errado. Conversando com M., diz que veio de avião e que comprou uma barraca no aeroporto. Está sozinho, é músico e acha Mozart inútil. Não vi sua cara, só ouvi sua voz. A nuvem cinza acaba com o feixe de azul. Sai, bad.

V. e eu caminhamos aleatoriamente pela fazenda. Descobrimos uma menina que carregava luzes no pescoço e isso foi impressionante. Fiquei intrigado com uma figura de madeira encostada no que parecia ser uma pista de bocha abandonada: parecia o sol da bandeira do Uruguai, mas sustentava uma careta sisuda e enigmática. Algo parecia me consumir por dentro, e andar era difícil. Não eram passos bêbados. Caminhávamos sobre uma geleia de morango em temperatura ambiente. De longe, ouvimos o show de Steppenwolf e a celebração de “Born to be Wild” ao vivo, aquele tipo de música que parece pertencer a algum outro lugar temporal-afetivo, que parece ter saído diretamente do jogo Rock N’ Roll Racing para um palco num festival psicodélico em que o céu se abre de vez em quando. Durmo como um bebê recém-amamentado.

3

O único ritual da vida real que mantenho aqui é cagar pela manhã. Logo antes do banho. Então estou lá sentado, apreciando o momento, quando leio na parte interna da porta de madeira uma poesia dedicada à Vaca Psicodélica. Quem escreveu foi Israel Reis, em 2012. Aí, desço os olhos e leio isso

“Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.” É Guimarães Rosa.

Vou ao acampamento de V. saber se ele está vivo. Deito com a barriga para cima após beber duas cuias de chimarrão. Há formigas no chão e o dia brilha. Cogito cochilar, mas F., um amigo de V. de 20 anos ou menos, comenta sobre os discos d’Os Mutantes. Faz um paralelo interessantíssimo sobre porque “Acabou Chorare”, de 1972, não representa mais a Tropicália, e sim um outro momento muito brasileiro, que aconteceu graças a João Gilberto. Com meus óculos escuros procuro imagens no fundo das nuvens, mas o que ouço são discussões bem embasadas sobre a sexualidade e a criação de Allen Ginsberg e outros poetas beats, sobre a loucura bem-vinda de Hunter Thompson, os Hells Angels, e “O Teste do Ácido do Refresco Elétrico”, do Tom Wolfe. Sempre andamos em boa companhia.

Estou com saudades do bom e velho Felipe e de seu pão com ovo. Ressaca da forma como a conhecemos não existe, mas um cafezinho também iria bem. Eles enchem o copo até a altura em que o urso-gato faz um acorde no violão. No caminho até Felipe, ouço na Rádio Kombi, a mesma que tocou “Yellow Submarine” inteiro e que promove festinhas temáticas às 4h20, que A BANDA SALADA DE BATATA PRECISA DE UMA GUITARRA EMPRESTADA.

À noite, M. e eu tomamos um comprimido preto que, descubro depois, tem entalhada em uma de suas faces a carinha do Mickey. V. desaparece. Provavelmente está sentado na grama pensando no que seria a vida se ela fosse sempre assim. Me decepciono com o show do Cidadão Instigado. Está arrastado e insosso, as músicas do disco novo não acontecem. O que acontece é Elza Soares.

Se em 2015 todos choraram com a melancolia agridoce de Arnaldo Baptista, em 2016 o Psicodália ajudou a ressuscitar a mulher do fim do mundo. M. e eu já sentíamos uma brisa maravilhosa quando vimos Elza e seu vestido roxo e prateado sentada numa espécie de trono. Nada de arrogância, era devoção. Quase toda a banda que gravou seu último disco estava lá, botando gasolina naquela fagulha interminável. Num momento particularmente emocionante, todos entraram em uma espécie de formação militar e a reverenciaram da maneira tão amável que o exército jamais irá entender.

Dançamos para uma rainha sentada antes de embarcar numa rave pirata promovida pela Confraria da Costa, antes de sentir a batata da perna rasgar durante a festa com músicas dos balcãs promovida pela rádio, de bailar no saloon ao som de Luis Caldas. Tieta do agreste/lua cheia de tesão. Não há restrições no fim do mundo. E ao contrário do ninguém é de ninguém que simboliza a potencial boa balada nas cidades inventadas, aqui todo mundo é de todo mundo.

4

É o último dia. Olho para o céu e lembro de uma palestra que vimos não sei quando, à beira do lago, sobre o cosmos. Quem falava era um homem-moça, cabeludo, de vestido, barriguinha peluda proeminente e unhas cor-de-rosa. Por uma hora, ficamos a maior parte da manhã e da tarde sentados observando o nada, o futebol improvisado em que ninguém joga contra ninguém e a recreação adulta: homens e mulheres se atracam em posições que dariam um novo kamasutra. Perante o cosmos, um dia não é nada, você não é nada, então desencana.

Encontramos outro vencedor do prêmio Jabuti com um baseado na mão, e conversamos por muito tempo sobre o mundo, o jornalismo, o mercado, a Elza. Rimos mais do que argumentamos. Seu filho está ali, tomando provavelmente a décima nona brahminha do dia. Ele divide o beck com o pai como se divide um abraço. É ele quem avisa sobre uma festa secreta que irá homenagear Flávio Basso, o Júpiter maçã. É ele quem, mergulhado em “Easy Rider”, exibido no cinema na noite anterior, nos avisa que devemos nos proteger dos caipiras armados que tentaram impedir Denis Hooper e Peter Fonda de festejar o mardi gras em Nova Orleans e etc.

O maior show anuncia o fim. Naná Vasconcelos abre um buraco na fazenda enorme, transporta a plateia para o rio Amazonas em minutos, dribla o som ruim e vira uma entidade poderosa e imponente. Divide o público em duas metades, e comanda uma missa xamânica, em que que a veneração é pelo que está exatamente no espaço entre nós. Porque apesar da presença constante, nosso deus é multiforme. Tem a cara de um apache e de Villa-Lobos, emula sons da África e do Brasil escravo ainda enlutado. São 10, 15? minutos de um transe hipnótico. Não há espaço para mais nada dentro da minha cabeça, então desfaleço física e psicologicamente ao tentar entender o tamanho daquilo e sigo para a barraca para respirar e pensar no que acabamos de presenciar, um show antológico porque analógico ao extremo, uma comunhão natural em que a hóstia era a mistura de olhares.

Caminhando em direção ao Camping dos Jovens, ouço o baile moderno da Nômade Orquestra, cerejinha deste cookie. Há o chiado da plateia, músicas infinitas e acordes-bomba. Dentro da quentura da barraca, gargalho sozinho. Me sinto no útero de algo muito poderoso e me pergunto, como já se perguntaram tantos aqui: do que vale uma revolução se não podemos dançá-la?

– Cristiano Castilo (@criscastilho) é jornalista.

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14 thoughts on “Psicodália 2016: Viagem ao útero do Psicodália ou como dançar uma revolução

  1. Ótimo texto, representou bem o que significa o Psicodália, sem dúvida o melhor festival desse país. Por mim iria todo ano, mesmo sem saber as atrações.

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