Grace Jones, um ícone fundamental

por Renan Guerra

Com 67 anos, Grace Jones resolveu lançar o seu livro de memórias com o irônico título “I’ll Never Write My Memoirs” (2015). Ainda sem previsão de lançamento em português, a biografia já rendeu muitas notícias para os sites que gostam de frases fora de contexto, gerando uma enxurrada de matérias com títulos como “Grace Jones fala mal de cantoras pop”, “Grace Jones critica Beyoncé e Rihanna” e outras coisas assim.

O ponto é que a jamaicana tem histórias para contar e muito a ensinar: uma modelo negra andrógina que conquistou artistas do calibre de Andy Wahrol e Keith Haring, que fez discos fundamentais para o pop e participou de filmes como “Conan – O Destruidor” e “007 – Na Mira dos Assassinos”. A biografia “I’ll Never Write My Memoirs” perpassa todas as peripécias de Jones por festanças alucinadas no lendário Studio 54, por sua amizade com os artistas da pop art, as gravações ao lado de Schwarzenegger, seu namoro com o astro fisiculturista Dolph Ludgren, suas polêmicas na televisão e até sua recusa em gravar ao lado de Lady GaGa.

Apesar de sua importância estética para a cultura pop, com sua figura negra, forte e andrógina, que quebrava padrões e mostrava sua sensualidade exalante de forma opulenta (Jones até chegou a fazer um polêmico ensaio ao lado de Ludgren para a Playboy, em 1987), esse texto visa compreender a importância musical de Grace Jones para o pop, para a música eletrônica e para qualquer construção de “diva” que as novas gerações tanto propagam.

O visual de Grace é fundamental para o power dressing dos anos 80 de gente como Cher e Annie Lennox, tendo reflexos posteriores em uma leva de artistas como Björk, Róisín Murphy, The Knife, M.I.A. e Lady GaGa. Além disso, suas sonoridades são fundamentais para o repertório de artistas como Moby, Massive Attack, LCD Soundsystem, Grimes e mais um bando de gente. Para passear pelas múltiplas facetas de Jones selecionamos 10 faixas que servem como um portfólio de sua importância musical:

01- “Slave To The Rhythm”
O disco homônimo “Slave To The Rhythm” (1985) traz uma das capas mais icônicas da carreira de Jones, com sua cara se expandindo através de recortes. Esse álbum também pode ser considerado icônico pelo fato de mesclar a disco music aos ritmos new wave, numa composição de “cantos falados” e conversas de bastidores. A faixa-título vai e volta dentro do disco, em múltiplas facetas, inclusive sob o título de “Ladies and Gentleman: Miss Grace Jones”, uma versão mais sensual. Dançante, envolvente e quase hipnótica, essa é uma canção que não fala do ritmo da dança, mas sim do ritmo do trabalho e nos leva para uma repetição “escravizante” que remete ao clássico “Tempos Modernos”, de Chaplin. Toda a composição desse disco, cheio de recortes e falas, soa como um prelúdio de dois mundos completamente distintos: o som usual nas músicas de drags e “bate-cabelo” e dos samples e vinhetas dos discos de hip-hop.

02- “I Need A Man”
Lançada em 1975, esse foi o primeiro single de Grace, que tentava passar da carreira de modelo a cantora. Uma canção simples, que fez um sucesso modesto na época, mas que sacramentou desde o início a relação da artista com a comunidade gay (fato que se tornou mais forte ainda quando a banda Man 2 Man gravou um cover da canção nos anos 80, tornando ela novamente um hit gay nas pistas de dança). “I Need A Man” é a face mais singelamente pop da artista, feita para as pistas, para rebolarmos como se estivéssemos no Studio 54.

03- “La Vie en Rose”
A faixa é um dos maiores clássicos de Édith Piaf e geralmente recebe covers que obedecem o seu ritmo e sua construção, porém Grace não teve medo de fazer uma versão de mais de 7 minutos da faixa, com ares de disco music, porém flertando com a bossa nova e outros ritmos latinos. Editada numa versão de pouco de mais de três minutos, a versão se tornou um dos maiores hits da carreira de Jones. Com um francês não lá muito ortodoxo, o que encanta na faixa é a ousadia e a força de Grace em desconstruir uma canção que já frequenta o nosso imaginário de outras formas.

04- “Love Is The Drug”
“Love Is The Drug” era uma faixa maravilhosa do Roxy Music que ganhou toda a força new wave da fase anos 80 de Grace Jones. Há que se relembrar que o Roxy Music é uma das principais referências do new wave e Jones simplesmente inseriu a faixa mais profundamente dentro dessa formatação do gênero. Lançada originalmente no disco “Warm Leatherette”, de 1980, a canção se tornou um sucesso na Inglaterra em 1986, quando recebeu um remix que acentua seu caráter new wave e que assimila toda uma sonoridade típica dos anos 80.

05- “Do or Die”
Lançada no disco “Fame”, de 1978, “Do or Die” é uma faixa tipicamente disco dos anos 70, porém traz uma percussão que caracteriza essa “latino-disco” tão típica de Grace. O clipe original da canção foi retirado do programa italiano “Stryx”, produzido em 1978, no canal Rai 2. O controverso programa tinha como temática principal o inferno e trazia cenários extravagantes, que remetiam a Idade Média, mas tudo misturado com certa dose de sensualidade, explícita no vídeo de Grace, que define a androginia da cantora. Na época o programa rendeu inúmeros protestos na Itália e foi cancelado pela emissora, mesmo assim é de lá que ainda hoje restam vários videoclipes de Jones.

06- “Love On The Top of Love”
Lançada no final da década de 80, no disco “Bullettprof Heart”, a música reúne inúmeros maneirismos da década passada, mas adianta tantos outros da década posterior: com coros de mulheres negras e batidas de hip-hop, “Love On The Top of Love” poderia facilmente servir para performances das Club Kids dos anos 90. O curioso é que o videoclipe advindo da faixa também traz inúmeras referências que se tornariam usuais nas mãos de outras artistas pop, como Madonna.

07- “Corporate Cannibal”
Lançada em 2008 como single do disco “Hurricane”, essa canção traz uma Grace extremamente conectada com tudo que aconteceu na música eletrônica nas últimas décadas, emulando especialmente o trip hop dos anos 90 (curiosamente a cantora foi uma das escolhidas pelo Massive Attack em 2008 para participar do line-up construído por eles para o Meltdown Festival). Escrita ao lado de Adam Green (ex-Moldy Peaches), Ivor Guest e Marc van Eyck, “Corporate Cannibal” retorna a temas centrais na obra da artista: o homem perante a sociedade de consumo e nossa relação complexa com o universo do trabalho e as tecnologias modernas. A faixa, obviamente, não se tornou um sucesso popular, mas torna-se um marco na carreira de Grace, pois recoloca ela no posto de cantora de vanguarda dentro da música pop.

08- “Private Life”
Lançada em 1980 no disco “Warm Leatherette”, a faixa é como um Kraftwerk meets reggae, interpretada quase de forma declamada por Grace. “Private Life” é um cover da banda The Pretenders, que havia lançado a faixa no mesmo ano. A versão de Grace foi gravada com a banda jamaicana Sly and Robbie e foi celebrada por Chrissie Hynde, a autora da canção, que afirmou: “Como todos os outros punks de Londres, eu queria fazer reggae, e por isso escrevi ‘Private Life’. A primeira vez que ouvi a versão de Grace eu pensei ‘é assim que isso deveria ser’. É fato: este foi um dos pontos altos da minha carreira.” Como primeiro single lançado pela cantora na década de 80, “Private Life” marca o fim de sua persona disco e o surgimento de um visual mutante e cada vez mais andrógino. Curiosamente, o disco single dessa faixa foi lançado com um cover de “She’s Lost Control”, do Joy Division, como b-side, numa versão dub completamente distinta da original.

09- “My Jamaican Guy”
Outro reggae que flerta com a música eletrônica, “My Jamaican Guy” foi escrita por Grace pensando em Tyrone Downie, pianista do Bob Marley and the Wailers. A faixa é quase toda escrita em patois, uma língua crioula usual na Jamaica que tem como base o inglês. Um grande sucesso de sua carreira, essa faixa delimita bem a complexidade rítmica adotada pela artista, que mescla o reggae a todas as suas outras influências. Visualmente, seu single tinha como capa uma impactante imagem idealizada pelo designer e fotógrafo francês Jean-Paul Goude, amigo e parceiro de trabalho usual da artista (ele é responsável pela maioria das escolhas estéticas da artista na década de 80). Curiosamente, o início da música foi sampleado por vários artistas desde o seu lançamento, indo de gente como LL Cool J até La Roux.

10- “I’ve Seen That Face Before (Libertango)”
A música é uma sobreposição de “Libertango”, clássico de Astor Piazzolla, com uma faixa reggae composta por Jones e Barry Reynolds. Falando sobre a noite parisiense, a canção é marcada por seu triste acordeom, que acompanha as batidas dub de forma paradoxalmente complementar. A faixa é considerada por muitos um dos momentos mais altos da carreira de Jones. Curiosamente, a gravação original conta com uma fala em francês, porém a cantora fez outras duas versões: uma em espanhol, intitulada “”Esta Cara Me Es Conocida” e outra versão na qual a parte em francês é recitada em português! “I’ve Seen That Face Before” foi trilha do longa “Busca Frenética” (1988), de Roman Polanski e, além disso, conta com um clipe de delicadeza poderosa:

Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites You! Me! Dancing! e Bate a Fita

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